O restauro da estátua do Terreiro do Paço, em Lisboa, procura o bronze-escuro original descrito nos registos da inauguração
Quando, em agosto próximo, à estátua de D. José I forem retirados os tapumes que a ocultam, o tom com que o tempo a marcou voltará a brilhar. O mito da cidade de Lisboa, que há séculos questiona qual a cor original dada à estátua equestre na data da sua inauguração, em 1755, promete manter-se, até porque, explicam técnicos e historiadores, "há poucas certezas". Dourada, na imaginação popular, negra, segundo relatos de viajantes ingleses, e verde, graças à erosão do tempo, a obra é peça-chave para entender a reconstrução da cidade à luz dos poderes da época e da destruição causada pelo terramoto.
O restauro atual, orçado em 490 mil euros, e cuja coordenação científica e financiamento estão a cargo do World Monuments Fund (organismo internacional que intervencionou a Torre de Belém e o Mosteiro dos Jerónimos), mais do que recuperar a estátua, da autoria de Machado de Castro sob desenhos de Eugénio dos Santos, pretende conservá-la.
COM VISTA SOBRE O TEJO
Quem ali trabalha não pode sofrer de vertigens. A uma altura de 14 metros do solo ergue-se o último dos andaimes que cobre o conjunto, composto pelo cavalo e a figura do rei, colocado sobre um elaborado pedestal em pedra. "Qualquer metal sofre efeitos da erosão e, neste caso, o vento e a proximidade do mar causam enorme desgaste. O trabalho que fazemos é de limpeza e de contenção desse processo químico e mecânico", frisa José Ibérico Nogueira, coordenador do projeto da WMF-Portugal.
Apesar da vista deslumbrante sobre o rio Tejo, os técnicos ao serviço da WMF pouco se distraem. Paciência, precisão e minúcia são os instrumentos que carregam nesta obra, que obriga a muito trabalho manual. Só para ter uma ideia, há quem se dedique a limpar todo o gradeamento que rodeia o pedestal com algodões embebidos em álcool e acetona para retirar gorduras.
Um estudo inicial ao estado da estátua permitiu analisar todas as patologias e o levantamento gráfico, em que se usou uma técnica que cruza feixes de laser e cujo resultado é próximo ao de uma radiografia, detetou os problemas que afetam a pedra e o metal e permitiu ver para dentro do plinto, analisando a estrutura. Um microjato de água limpou a pedra e a precisão dos técnicos faz o mesmo no cavalo e no rei.
A liga de que é composta a peça foi também alvo de apurado estudo. "Especulou-se muito sobre a cor original, mas hoje sabe-se que, do ponto de vista químico, a liga, que se pensava ser de bronze, estará mais próxima do latão almirantado, usado pela Marinha em peças polidas, e que tem coloração dourada. É uma liga de cobre, zinco e também chumbo, com alta capacidade de resistência à salinidade", nota Ibérico Nogueira.
Segundo Miguel Figueira de Faria, historiador da Universidade Autónoma, que acompanha o restauro, "a estátua equestre de D. José I deverá ter tido a cor natural da fundição acrescida de polimento metódico que lhe terá conferido um dourado puxado do cobre existente na respetiva liga metálica", e diferente do dourado da folha de ouro, usado nas estátuas francesas. A hipótese do desequilíbrio dessa liga, diz, "poderá ter resultado na formação de uma patine escurecida que justifica a denominação pela qual ficou conhecida, ainda no séc. XVIII, nos relatos dos viajantes ingleses: ‘black horse square’ (a ‘praça do cavalo negro’)". Já o tom verde resulta da erosão do tempo.
DEMOLIÇÕES E CENÁRIOS
Pioneira sobre vários ângulos, a estátua de D. José I "foi a primeira representação equestre de um rei em espaço público", modelo "que vem desde a Antiguidade Clássica" e que "acabou por ser consagrado pela experiência francesa, com a Praça Real que incluía uma estátua ao centro, e depois teve expressão internacional de que Lisboa é o exemplo mais acabado, a par da praça de Copenhaga", diz o historiador.
A estátua simboliza também "a mudança de paradigma no contexto do iluminismo", diz, "num momento em que a atenção da expressão monumental da cidade começa a passar dos grandes momentos da religiosidade para a laicização das manifestações artísticas". As figuras alegóricas de um elefante e um homem com penas representam as vitórias na Ásia e na América. Já a Fama e o Triunfo ali colocados remetem para o imperialismo do País.
Mas o que os peritos mais destacam é a técnica da fundição num só jato, "na altura considerado mais notável do que o próprio lado criativo", nota o historiador. Os 35 mil quilos de metal foram derretidos em 28 horas e vertidos em apenas sete minutos para a forma de gesso.
"Foi muito inovador o processo de fazer uma peça única, comandado pelo tenente-coronel Bartolomeu Costa, e fundido no arsenal do Exército", acrescenta Ibérico Nogueira. Realizado pela primeira vez numa peça desta dimensão, esse trabalho "foi importante até por questões comerciais, de valor do país na indústria do armamento, pois com esse conhecimento foi possível fazer canhões de fusão com grande dimensão".
E para responder à pompa, também o transporte da estátua, que demorou quatro dias a percorrer a distância entre o arsenal do Exército, à Graça, e a praça do Comércio, encerra episódios inauditos. Foi aberta uma rua e o carro de transporte puxado por mil homens, pois a figura real não poderia ser deslocada por animais. "Por norma a garantir total segurança na condução da estátua equestre, foi necessário demolir algumas casas térreas e barracas pertencentes a particulares, mas não só.
A Igreja de N.ª Sra. do Paraíso também sofreu danos, sendo que em 1778, três anos após a inauguração da estátua equestre, ainda a Irmandade daquela igreja requeria ao intendente das Obras Públicas que fosse re-edificado o que naquela igreja havia sido demolido", revela a historiadora Cristina Dias. "De igual modo, durante vários anos se queixaram os particulares que pretendiam ver as suas casas reconstruídas, sendo que algumas nunca chegariam a ser reerguidas", acrescenta.
Inaugurada a 6 de junho de 1775 – aniversário do rei –, a estátua foi colocada numa praça inacabada, onde cenários em madeira representaram as fachadas e o arco triunfal. O marquês de Pombal, que colocou um medalhão com a sua efígie no pedestal, descerrou a estátua enquanto a família real assistiu escondida na nova Alfândega.
"Criou-se a ideia de que havia uma certa opressão por parte do marquês de Pombal ao rei e que este assistiu à inauguração da estátua escondido, com medo de que o marquês se sentisse ofuscado, mas isso tinha a ver com o ritual francês, a que esta inauguração obedeceu", nota Miguel Faria. "O rei não estava presente porque isso seria uma infração ao ritual. A estátua representava o rei na própria cerimónia."
OS SIMBOLISMOS MARCADOS NO TERREIRO DO PAÇO
Erguida no centro do Terreiro do Paço, a estátua de D. José I "representa a dimensão quintimperial de Portugal e a ideia da Lusitânia como nova Roma. É uma mensagem que enaltece Portugal e a sua dimensão mítica", diz José Manuel Anes, antigo grão-mestre da Grande Loja e doutorado em Antropologia das Religiões.
"Todo o enquadramento tem uma analogia com um templo maçónico", simbolismo que os homens do séc. XVIII dominavam, diz. "A rua da Prata é a Lua, a do Ouro o Sol e a rua Augusta a via do meio. O Cais das Colunas acentua a dimensão do templo, tal como o conjunto dos arcos da praça, cujo número remete para os arcanos do Tarô."
NOTAS
RESTAURO
A WMF financia 370 mil euros, a que acrescem 80 mil da Câmara de Lisboa e 40 mil de privados.
BALAS
Nesta intervenção foram detetados 14 tiros de bala marcados na estátua, ainda não datados.
LIMPEZA
A primeira ‘limpeza’ à estátua foi feita em 1926. Em 1983, foram retirados três mil litros de água de dentro do cavalo.
MODELO
D. José I não posou para Machado de Castro: o rosto do rei foi desenhado à imagem de um medalhão e as mãos são as do próprio autor.
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