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Correio da Manhã

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CERCAL: UMA FAMÍLIA DE ENDIREITAS

O dicionário define-os como ‘ortopedistas sem diploma’. Um puxão ou um jeito brusco tanto servem para a dor ciática como para um osso fora do lugar. Em pleno Alentejo, uma família exerce o mister há várias décadas
11 de Maio de 2003 às 17:59
CERCAL: UMA FAMÍLIA DE ENDIREITAS
CERCAL: UMA FAMÍLIA DE ENDIREITAS FOTO: Paulo Arez
Endireitas ou amanhadores. O nome pouco interessa, o importante mesmo é que, ao que dizem, eles conseguem, com meia dúzia de puxões, “colocar ossos e músculos no lugar, acabando com as dores”.
No Alentejo existem endireitas famosos, procurados por gente de todo o País. Alguns são fiéis depositários de conhecimentos antigos, como é o caso de uma família do Cercal, em Santiago do Cacém, que integra, desde há várias décadas, ‘ortopedistas sem diploma’ (a definição consta do dicionário).
António Ramos, mais conhecido por António dos Pereiros, é um de três irmãos amanhadores (assim são conhecidos os endireitas por estas bandas). Com 78 anos, já tratou de “milhares de pessoas”, desde “Trás-os-Montes até ao Algarve”. Sentado à mesa da taberna revela que tudo começou quando, ainda jovem, guardava animais no monte, precisamente no sítio dos Pereiros, donde lhe vem a alcunha. “Havia animais que desmanchavam ou partiam ossos e eu punha-os no sítio”, conta. No entanto, enquanto o seu pai foi vivo, António não se arriscava a ir além dos bichos. O progenitor “tratava das pessoas” e, nessa altura, restava-lhe observar e aprender.
Por volta dos 20 anos teve a sua oportunidade. António dos Pereiros começou a exercer e, à semelhança do pai, do avô e do bisavô, rapidamente ganhou fama. Ainda hoje, apesar da idade, “aparece diariamente gente para se tratar com ele”, garantem os populares.
Para o endireita, não há segredos: “É uma questão de jeito”. O que dá mais trabalho é “o ombro deslocado porque leva tempo e é preciso alguma força para o colocar no sítio”. Apesar do cepticismo da comunidade médica, António dos Pereiros afiança que até já tratou “muitos médicos”.
Tradição familiar Para não fugir à tradição familiar, António tem um irmão igualmente hábil na arte de “consertar ossos”. Manuel dos Pereiros, de 70 anos, ensaiou a prática, quando ainda era criança, num “passarinho com a perna partida”. Depois, mais crescido, ensaiava noutros garotos: “Quando algum vomitava porque tinha o esterno deslocado, eu tratava de pô-lo no sítio”.
As queixas são várias, desde a “dor ciática” às hérnias que, segundo afiança Pereiro, com o jeito certo se evitam operações. É tudo uma questão de dar “o puxão certo, ouvindo-se em seguida um estalo quando a vértebra encaixa no seu lugar”. Por causa da inflamação, há que colocar “vinagre quente e álcool”.
Além de António e Manuel, outro irmão partilha da sapiência. Vive igualmente no Alentejo, no concelho de Ourique, e tem também fama de “bom amanhador”.
Mas a arte não é bem vista pela comunidade médica. E à conta disso, os endireitas não gostam muito de falar sobre os seus segredos porque, asseguram, “pode dar problemas”. Até porque alguns amanhadores já se viram a braços com a Justiça. Os mais antigos ainda se recordam de um caso, nos anos 60, de um tal José Pinto; um amanhador de Estremoz que se sentou no banco dos réus. Segundo reza a história, em tribunal, o acusado resolveu pôr as coisas em ‘pratos limpos’ de forma drástica: pegou numa galinha e deslocou-lhe os ossos, de tal forma que o galináceo não conseguia mexer-se. E lançou o desafio à ciência: haveria algum médico capaz de voltar a pôr a galinha a andar? Como ninguém se mostrou capaz de tal feito, José Pinto pegou na ave e ‘endireitou-lhe’ os ossos. Face à correria da galinha, perfeitamente restabelecida, o juiz ilibou o acusado.
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