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Crime sem perdão

O assassinato do transexual brasileiro, no Porto, é um filme de terror onde os bons e os maus se confundem. Retrato da Oficina do crime.

05 de março de 2006 às 00:00

Afrase é dita com convicção. “A maioria dos cerca de 70 miúdos são bons. Puros. O que tem estragado esta casa são os jovens que a Segurança Social manda para aqui. Alguns com um historial de violência muito grande.” A frase é de um funcionário da Oficina de São José (OSJ). Uma instituição ao mesmo tempo respeitada e temida pelas pessoas que moram na pacata Avenida Alexandre Herculano, no Porto.

É temida porque dá abrigo a alguns jovens “marginais” que estão sempre prontos para provocar desacatos. Respeitada, porque “toma conta e ajuda” órfãos ou crianças com pais sem meios para “lhes dar de comer.” E também porque lhes proporciona a oportunidade de estudar.” De ser alguém na vida.

É isso, aliás, que explica que dali já tenham saído muitos adolescentes preparados para caminhar na vida com os seus próprios pés. “Saíram doutores, engenheiros, advogados e trabalhadores indiferenciados que são apreciados pelos patrões”, contou à Domingo uma mulher que solicitou o anonimato. A mesma mulher que se recusa a acreditar que haja “anjos” das oficinas que, na semana passada, tenham participado no assassinato do transexual e sem-abrigo brasileiro Gilberto Júnior, conhecido por ‘Gisberta’ ou ‘Gis’.

Dito isto, esta mulher de convicções deixa escapar o veredicto.“Isso deve ter sido obra dos outros. Dos demónios que o Tribunal de Menores manda para ali”, acrescenta, enquanto se vira para o edifício onde está sedeada a Oficina, desde 1880. Mas quando lhe é pedido que dê a cara, a resposta vem pronta: “Não. Eu moro aqui e não quero ter problemas. Se fosse dantes, nem me importava que me tirasse uma fotografia. Agora, não.”

Outro dos vizinhos dos ‘anjos e demónios’ recorre com frequência à encadernação e tipografia da OSJ e fala com emotividade do ‘antes’. “Do tempo em que os jovens órfãos e carenciados não eram contaminados pelos gandulos que sabe-se lá de onde é que vieram. Antes, eram educados. Sabiam que tinham de o ser para não serem castigados. Ainda lá estão muitos. Quando, de manhã, vão para a escola em fila indiana vemos logo quem são. São os que respeitam as ordens dos monitores e não se metem com ninguém. Os outros, não. Fogem da fila e metem-se com toda a gente. Há tempo vi um roubar a mala a uma senhora. Quando a mulher gritou, atirou a mala para o meio da rua e fugiu a rir-se.”

A QUESTÃO DOS CASTIGOS foi logo a seguir mencionada. E apoiada com um exemplo vindo de dentro. “Dou-me bem com um funcionário que deu uma estalada a um dos internos, que o tinha ameaçado com uma cadeira. Apanhou logo um processo disciplinar. Não sou adepto da violência contra as crianças, mas nunca ninguém me conseguiu explicar que mal faz uma valente palmada no rabo.” Ao lado, um colega de trabalho também tem uma história para contar. Uma história que começa com um aviso: “Não ponha o meu nome no jornal.” Porquê? “Há tempos, a mulher de um amigo meu foi de tal forma assediada na rua que chegou a casa a chorar. A queixa que fez não deu em nada. Aquilo só vai melhorar se tirarem de lá os que os tribunais lá depositam.” E como não podia deixar de ser a morte de ‘Gisberta’ também foi tema de conversa. “A maioria dos funcionários só sabe o que vê na televisão ou que lê nos jornais. Ninguém diz nada. Lá dentro parece que ninguém fala do assunto.”

NOUTRA LOJA da rua da Oficina de São José, o gerente nunca deu por qualquer desacato provocado pelos internos da instituição, opinião que foi manifestada pela maioria das pessoas contactadas pela Domingo. “Têm medo dizer a verdade”, explicou um empregado que assegurou assistir quase todas as manhãs às provocações dos jovens. Por isso deixa um recado ao bispo do Porto. “Se ele manda mesmo nas oficinas tem de substituir o director. O padre Alberto [Tavares] já tem mais de oitenta anos [85] e já não tem mão naquilo.”

Confrontados com as opiniões de pessoas que moram na zona há mais de 40 anos, os funcionários que aceitaram falar com a reportagem da Domingo – nenhum deles se quis identificar – destacaram a função social da OSJ e o ‘mal’ que há muito tempo lhe está a ser feito por algumas “ervas daninhas”. “De quem foi a ideia de trazer para aqui jovens complicados e com antecedentes por violência, droga ou furtos? Se, como tudo indica, foi o Estado é o Estado que tem de se responsabilizar pelo facto de haver jovens que queiram imitar os maus exemplos. A Oficina não é uma casa de correcção nem um reformatório”, referiu um indivíduo que não quis dizer que função ocupa na OSJ, escutado atentamente por um interno que trabalha fora da instituição.

Quanto à morte de ‘Gisberta’, ficam algumas interrogações no ar: “Foram só os miúdos da Oficina que estiveram envolvidos? Alguém pode acreditar que crianças de 11, 12 e 13 anos tenham sido capazes de matar uma pessoa? Não é possível que durante as noites que passou no prédio abandonado essa pessoa tenha sofrido outras agressões?”

A ‘Pires de Lima’ é uma das escolas frequentada pelos internos que participaram nos maus tratos a ‘Gisberta’. A Domingo tentou obter delarações de algum elemento do Conselho Directivo. Estavam sempre em reuniões que se prolongaram pela noite dentro. O mesmo sucedeu com os elementos da comissão administrativa que gere as Oficinas.

Maria José foi a única vizinha da instituição que aceitou ‘dar o nome’. Mas só permitiu que lhe fosse tirada uma fotografia, “sem mostrar a cara.” “Nunca tive qualquer problema com os jovens”, referiu, enquanto servia um café a um monitor da OSJ. E frisou que conhece “de vista todos” os internos que estão envolvidos na morte do transexual brasileiro. “Alguns, por vezes, passavam por aqui. Brincavam comigo e nunca me trataram mal. Quando soube o que aconteceu fiquei surpreendida. Acredito que foi um acidente. Foi uma brincadeira que correu mal.” Por isso, caso o mais velho (16 anos) seja condenado a pena de prisão, ela assegura que o irá visitar: “Uma vez meti-me com ele. Coloquei-me ao lado dele e disse-lhe que já estava mais alto do que eu. Riu-se muito. Se ficar preso vou lá dar-lhe algum ânimo.” Tinha cara de anjo.

RADIOGRAFIA DA TRAGÉDIA

VIOLÊNCIA GRATUITA

No dia 18 de Fevereiro ‘Gis’ foi visitado por três ou quatro rapazes. Agredido à pedrada, à paulada, com murros e pontapés, ficou com lesões graves. No dia seguinte os miúdos voltaram. E voltaram as agressões, dessa feita com requintes de malvadez, já que ter-lhe-ão introduzido um pau no ânus. “Chegaram a queimá-lo com cigarros.”, conta o padre Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade. Gravemente ferida, humilhada e sem forças, a vítima foi outra vez abordada na segunda-feira, quando moribunda foi agredida pela terceira vez, por mais crianças que não perderam a oportunidade de lhe darem mais uns quantos pontapés.

PAIS PREOCUPADOS COM A SITUAÇÃO NA OFICINA

“QUERO OS MEUS FILHOS FORA DE SÃO JOSÉ”

Desde Outubro do ano passado que, todas as semanas, Maria e David viajam mais de 300 quilómetros para passarem “duas ou três horas” com os dois filhos (8 e 12 anos) que um juiz do Tribunal de Vila Franca de Xira lhes “tirou”, por “não irem à escola”, e que a Segurança Social enviou para a Oficina de São José, no Porto. Por isso, desde que souberam do caso ‘Gisberta’ só têm uma preocupação: “Não queremos os nossos flhos numa instituição que tem internos capazes de matar uma pessoa. Disseram-nos que o transexual que morreu tinha sida e temos medo. Uma das crianças que esteve envolvida nas agressões é amiga de um dos meus filhos. E o ‘Marco’ (nome fictício) tem uma infecção numa orelha, provocada por alguém que lhe tentou fazer um buraco para lá meter um brinco”, contou Maria Carvalho.

Até agora todas as tentativas deste casal para falar com os directores da Oficina foram em vão. “Disseram-nos que não estava lá ninguém. Mais: “Nem nos deixaram passar da porta”, acrescentou David Sereno. Mesmo assim, prometem não desistir.

“O ABISMO ATRAI ABISMO” (Padre Lino Maia, Presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, 58 anos)

Lino Maia considera que o Estado deve procurar outros locais para depositar jovens com antecedentes criminais.

- Como está o ambiente na Oficina?

- Está mais calmo, depois de uma primeira reacção de dor e espanto. Houve um alívio quando se soube que os jovens envolvidos no caso não voltariam à instituição.

- Por ficarem libertados de um grupo difícil. Sem eles é mais fácil que tudo regresse ao normal.

- Concorda com o silêncio dos responsáveis da instituição?

- Pode agravar um bocado o ambiente. Mas dentro de 20 dias será dada a conhecer a posição oficial da comissão.

- Que espera encontrar?

- Que esta e outras instituições não têm condições para acolher jovens com antecedentes criminais. A Oficina foi criada para crianças pobres, sem rectaguarda familiar, com dificuldades de carácter financeiro e afectivo. Quando estes jovens se juntam aos que têm antecedentes criminais, isso provoca turbulência.

- Por estarem numa idade difícil – 10 a 13 anos – e já se terem envolvido em muitos problemas.

- O grupo envolvido na morte do travesti estava junto há muito tempo?

Essa foi uma situação que demorou uma semana. Tenho informação que três ou quatro meteram-se com o rapaz. Depois a informação circulou e foram-se juntando mais. Não foi o mesmo grupo que esteve no caso do princípio ao fim. Um monitor referiu que o líder do grupo era um indivíduo de 18 anos que não está nas Oficinas. E que teria sido essa pessoa que matou o cidadão brasileiro. Isso não se confirma. Alguém que assistiu ao depoimento de alguns dos jovens ficou horrorizado com o que ouviu. Ficou com a certeza de que eles estão envolvidos neste caso. São doze jovens da Oficina e um do Centro Juvenil de Campanhã.

- Manifestaram arrependimento durante o interrogatório?

- Não tenho essa informação. Eles nunca pensaram que poderiam ser denunciados. Foram denunciados pelo mais novo. O jovem que ainda está nas Oficinas. Depois de saber que tinha acontecido a morte, ele demonstrou muito nervosismo na escola e acabou por contar tudo a uma professora.

- Que razões poderão ter estado na base do que sucedeu?

- Jovens a viverem num internato, alguns com antecedentes complicados, encontraram um homem que socialmente também não é um modelo. Por vezes, as situações difíceis atraem comportamentos condizentes. O abismo atrai o abismo.

- O bispo do Porto anunciou que vai ser feito um inquérito...

- Sem querer antecipar-me, considero que tem de ser analisado o facto de a Segurança Social recorrer a instituições como a Oficina de São José para deixar jovens complicados. Precisamos de casa de correcção para estas situações.

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