Entrevista ao cirurgião pediátrico
Saíram há dias os resultados do acesso ao Ensino Superior, e mais uma vez foi preciso ter média de 17 ou 18 valores para entrar num curso de Medicina.
Dezoito vírgula qualquer coisa…
Quantos bons médicos se terão perdido?
Para mim, é uma forma absurda de escolher pessoas. Daí o título do livro, ‘Ser Bom Aluno não Chega’. A profissão de médico não é melhor ou pior do que qualquer outra, mas é diferente, ou tem que ser diferente. Quem vai para Medicina tem de ter uma posição quase de sacerdote. Por isso é que há muitos anos propus que, não sendo um método infalível – não conheço nenhum que o seja -, tivessem de fazer voluntariado social, para demonstrar a ligação às outras pessoas. Quem tivesse uma nota razoável, tendo demonstrado que se interessava pelos outros e até aceitava sacrificar-se, ficaria em competição e a faculdade diria quantas vagas tem para preparar correctamente as pessoas. Também não é entrar de qualquer maneira, pois é preciso que a faculdade tenha condições para garantir que os alunos que lá entram ficam bem preparados. O número não é ao acaso e tem de ser controlado. Houve um erro muito grande, porque quando eu entrei na Ordem dos Médicos estabeleci ‘numerus clausus’ muito limitado, porque tinham entrado oito mil médicos assim da noite para o dia. Mas disse uma coisa de que todos se esqueceram: era preciso actualizar o número de entradas em Medicina em função das necessidades do País.
Um médico que não tenha empatia com o paciente não pode ser um bom médico?
Pode ser um excelente cientista, um investigador fantástico, mas acho que não pode ser um bom médico. É a minha opinião. Para ser médico é preciso gostar de ajudar os outros.
Não sei se tinha o hábito de seguir uma série televisiva muito popular nos últimos anos, chamada ‘Dr. House’…
Vejo muito pouca televisão.
O protagonista era um médico de diagnóstico com grande desprezo pelos pacientes e a quem só interessava o desafio que eles colocavam.
Isso é um disparate completo. O doente precisa de ouvir, de conversar, de se abrir. Não é esta coisa de chegar, pedir análises e ir embora. Se conhecermos o doente é muito mais fácil e rápido tratá-lo. Se estou sempre a ver um doente pela primeira vez, tenho de ir ver todos os antecedentes, tudo o que se passou antes.
Neste momento o acesso à profissão recompensa quem tem 20 a Matemática.
É muito importante ter uma boa nota de entrada, mas só é preciso ter 14 ou 15. Não é preciso 18,5. Acima de tudo, é preciso ser uma pessoa humana e com determinadas características. E tem de ser um aluno com um mínimo de qualidade. Bem sei que as notas eram menos elevadas na minha época do que agora. No meu curso houve um que teve média de 17 e três que tiveram média de 16.
Relata no livro que sentiu a vocação para ser médico aos 11 ou 12 anos, quando estava a ir para a escola e viu um homem no chão…
Tinha sido atropelado.
Nessa altura sentiu a impotência de não o conseguir ajudar. No entanto, sendo filho e neto de médicos, acha mesmo que poderia ter sido engenheiro ou padre, como chegou a pensar?
Padre nunca, pois seria um mau padre e não estaria interessado nisso. Engenheiro era uma boa hipótese, pois queria uma coisa em que realizasse. Esta coisa de tratar sem executar não dava para mim. Por isso fui para cirurgia. Quis ter a sensação de que estava, de facto, a fazer qualquer coisa. Naquela altura senti a frustração de não saber fazer nada. Vi o homem, que provavelmente estava a morrer, a perder muito sangue, e pensei que no futuro seria capaz de resolver. Vir de uma família cheia de médicos não queria dizer nada, pois também tinha outras profissões na família. Não foi isso que me fez mudar de Engenharia para Medicina. Foi sentir-me impotente para ajudar aquela pessoa.
Ficou decidido naquele momento?
Decidi e depois fui estudando. Não havia ‘numerus clausus’, mas entre mil candidatos à cadeira de Anatomia chumbavam para aí uns 900. Aquele primeiro ano da Faculdade de Medicina era uma razia total. Quem acabava o primeiro ano, normalmente acabava o curso, que, naquela altura era demasiado teórico nos três primeiros anos. Cheguei a estar quase a pensar que ia desistir, pois estava farto de tanta teoria e gostava tratar de pessoas. Pensava: ‘Quando é que começo a sentir que faço alguma coisa?’
Em algum momento sentiu que poderia haver um abismo entre a sua vontade de ser médico e a capacidade para o ser?
Só pensei que teria de trabalhar bastante.Já tinha tido de trabalhar bastante no liceu, porque tinha de estar sempre no quadro de honra para ter isenção de propinas. A minha mãe ficou viúva quando eu tinha três meses, o meu irmão tinha três anos e meio e a minha irmã tinha dois anos. Eramos os três pequeninos. A minha mãe tinha sido criada, como era normal no princípio do século passado, para aprender música, cozinha, bordado e línguas. O que a safou foi saber muito bem francês e alemão, depois para ajudar os filhos foi tirar o certificado de Cambridge, porque a maioria dos livros de Medicina já eram em inglês.
Teve exemplos extraordinários, como a história do seu pai a operar um marinheiro enquanto fazia uma transfusão do seu próprio pé.
Achei isso espantoso. Naquela época havia um aparelhozinho, chamado jouvelet, em que se dava à manivela e o sangue saía de uma pessoa para outra. Normalmente era de um braço para outro braço, mas ele tinha de operar e teve de ser do pé. Mas o que eu acho mais importante foi não ter dito a ninguém. Só se soube porque o director, no dia seguinte, foi ver o processo do doente e, ao ver que tinha havido uma transfusão, perguntou quem tinha dado sangue. Ele disse: ‘Era meu, porque era o único compatível, mas tive de tirar do pé, porque precisava dos braços para operar.’ Não foi ostensivo. Se o director não tem dito nada, passava como uma coisa natural.
Da mesma forma, o seu antepassado Soares Franco, médico da Corte, operou-se a si próprio, retirando um tumor da pele do nariz com recurso a um espelho…
Confesso que me faz impressão. Nem sei que anestesia ele usou. Penso que nenhuma. Estou convencido de que eu não era capaz.
Diria que é mais metódico na sua prática de cirurgião?
Temos que estudar exaustivamente os doentes. Mas muitas vezes aquilo que vemos nos exames, mesmo muito aperfeiçoados, não nos dão as soluções todas. Uma coisa é fazermos a programação, que é muito importante, calculando os tempos para o que vamos fazer, e a ordem em que o faremos, mas às vezes, no meio daquilo, há algo de que não estávamos à espera. E temos de nos adaptar enquanto o doente está ali anestesiado.
Entre os desportos que praticou, especializou-se no tiro. Há algum paralelismo entre a precisão necessário para acertar no alvo e a precisão necessária nas cirurgias?
Uma coisa não teve nada a ver com a outra. Dediquei-me mais porque o meu pai foi campeão de tiro, e recordista de tudo e mais alguma coisa. Entusiasmei-me, e queria fazer o mesmo. Mas como ele praticou imensos desportos - foi, sem dúvida, o atleta mais completo que houve em Portugal – procurei fazer vários. Também fui campeão nacional de voleibol, pelo CIF, que é o meu clube de sempre, e de que neste momento sou o sócio número 1.
E é uma das raras pessoas a ser atleta olímpico na mesma modalidade que o pai.
Exacto. Competi no tiro, nos jogos de Roma, mas não ganhei medalha nenhuma.
A sua primeira cirurgia foi uma experiência marcante?
Não especialmente. Para começarmos a operar como primeiro cirurgião já ajudámos muito. Depois, quando fazemos a primeira operação, temos do outro lado alguém melhor do que nós, o que dá uma certa tranquilidade. E fazemos uma operação mais simples. Não nos põem logo algo muito complicado.
Qual foi a cirurgia?
Foi a uma apendicite. Costuma ser progressivo. Ajudamos, e quando eles vêem que já temos uma certa destreza manual – conseguimos dar o ponto ou separar as coisas como deve de ser -, somos nós que vamos começar mas temos do outro lado uma pessoa melhor do que nós. Se fizermos uma coisa que não está certa, ele diz "isso não é assim". A partir do momento em que operámos várias vezes, estamos à vontade e podemos ser nós a ajudar outros.
Nos seus tempos de internato, nos Hospitais Civis de Lisboa, os instrumentos cirúrgicos eram desinfectados em frasquinhos de álcool, e logo reutilizados. Como explica que não houvesse mais infecções hospitalares?
O álcool é um bom desinfectante. Lavávamos as coisas depois de termos usado, e metíamos nos frascos. Depois, quando vinha o próximo doente, tirávamos. Sinceramente, sempre me espantou que não houvesse mais infecções. Os antibióticos foram fantásticos, mas hoje em dia são cada vez mais perigosos, porque se está a abusar deles, e os bichinhos habituam-se. Estamos a dar armas às bactérias.
O que o levou a optar pela pediatria?
Por um lado, gosto muito mais de crianças do que de adultos, sinceramente. São de uma espontaneidade e afectividade enormes, e não têm segundas intenções. Depois, a minha irmã tinha ido especializar-se em enfermagem pediátrica nos EUA, era professora na Escola de Enfermeiras do Instituto do Cancro, e casou-se com um pediatra. E ainda outra coisa importante: tinha começado a fazer cirurgia pediátrica, e quando voltei de me treinar em Inglaterra, pensei que não fazia muito sentido operar adultos outra vez. Continuei a operar adultos, até hoje, na parte estética, mas só porque gostava. A minha profissão era, fundamentalmente, operar crianças. Quando voltei de Inglaterra, pedi ao meu avô [Francisco Gentil], que era o director do Instituto Português de Oncologia, que se criasse uma unidade para tratar crianças com cancro. Eu era o cirurgião, e pedi a um pediatra de Santa Maria, o dr. Valença de Sousa, que viesse trabalhar comigo. Ficámos com uma equipa multidisciplinar, o que não havia no Mundo até então. O primeiro serviço americano com médicos e cirurgiões foi em 1962, dois anos depois de nós. Tínhamos coisas que considerava muito importantes, e que não eram costume: a presença dos pais junto das crianças, não usarem farda e sim a roupa de casa, trazerem o brinquedo favorito, e seren tratados pelo nome e não pelo número da cama. Na Estefânia a idade era até aos 10 anos e connosco era até aos 15… Criámos aquilo de tal maneira que quando a Sociedade Internacional de Oncologia Pediátrica definiu as condições e os parâmetros a que devia obedecer uma unidade, tudo o que nós estávamos a fazer estava lá. É uma unidade que funciona francamente bem e que tem gente muito dedicada. E a instituição tem boas condições, embora não se faça milagres.
Um pediatra sente mais forte a dor dos casos que não pode resolver?
Penso que não. Custa muito não poder resolver, seja a quem for. Sinceramente custa-me tanto que morra um adulto como que morra uma criança. Custa-me que eu não seja capaz de resolver o assunto, e às vezes não podemos mesmo. Quando pensamos que fomos nós que salvámos o doente, somos os maiores do Mundo. É fantástico. Quando temos dúvidas se fizemos tudo o que podia ser feito, ficamos muito em baixo. Há muitas maneiras de fazer as coisas e às vezes pergunto-me que poderia ter havido um melhor caminho. A Medicina não é Matemática, não é dois e dois são quatro. Temos que estudar o mais possível os casos, adaptá-los à pessoa, e depois temos uma orientação, que tem de ser ligada ao doente.
Sendo um homem de fé, sente que Deus está consigo no bloco operatório?
Devo dizer que no bloco nunca pensei nisso. Apenas pensava em que tinha de fazer o que era correcto fazer. Não estava ali a pensar que havia interferência divina. Não se me punha o problema metafísico.
Gosta de começar e terminar as cirurgias. Por alguma razão em especial?
Gosto de ser totalmente responsável por aquilo que faço. Se correr bem, muito bem. Se correr mal, fui eu e mais ninguém. Detestava a ideia de alguma coisa correr mal e pensar ‘se tivesse sido eu…’. Começo e acabo. Foi bom, foi mau, foi aquilo de que eu sou capaz. Não gosto de partilhar responsabilidades. Há coisas que temos de partilhar, mas não gosto de partilhar a cirurgia. Faço o primeiro golpinho e depois, se ficou bem cozidinho fui eu, e se ficou mal cozido fui eu também.
Também fez sempre questão de fazer com os pais dos pacientes?
Isso é fundamental. Antes da operação, explicar o que vamos fazer e porque vamos fazê-lo, até porque os pais têm de perceber o que se está a passar. Há um caso muito curioso, que é o das Testemunhas de Jeová, que não querem que se dê sangue, e há cirurgias em que a probabilidade é muito grande. Então resolvia o problema de forma simples. Falava com eles e dizia: ‘Meus caros senhores, pela vossa religião não podem receber sangue, mas pela minha tenho que dar. De maneira que há duas religiões em confronto. Vou fazer-vos a promessa de fazer tudo o que eu puder para não dar sangue, e vos respeitar a vocês, e aceitem que se eu vir que a criança morre, e para me respeitar a mim, dou sangue.’ Graças a Deus, correu sempre lindamente. Segundo a lei portuguesa, podemos recorrer aos tribunais para que os pais percam o poder paternal durante o período do tratamento. Isso é possível juridicamente, mas era uma violência muito grande. Sempre tentei fugir disso e consegui.
Testemunhou momentos de grande gratidão mas também certamente de raiva…
Isso depende das pessoas e não daquilo que nós fazemos. Cheguei à conclusão que, por vezes, os pais dos doentes por quem mais trabalhei foram os que me trataram pior, e aqueles por quem não fiz nada de especial ficaram eternamente gratos. E ainda hoje, no Natal, alguns enviam coisas. Mesmo os pais de crianças que morreram. Isso depende das pessoas e não do médico. Cada um tem a sua forma de reagir. Há pessoas por quem nos fartámos de lutar, e que depois são agressivos. É uma coisa que não podemos evitar.
É uma questão de ter a consciência limpa?
Só tenho de saber se fiz o que achava que devia ter feito. Se o fiz, é-me um bocadinho indiferente que digam bem ou que digam mal. Mas é evidente que gosto mais que digam bem.
Como é que se lida quando se chega à conclusão que não se fez tudo?
Isso é muito subjectivo... Como se lida? Da próxima vez tem de se fazer outra vez tudo o melhor que se for capaz. Quando temos dúvidas ficamos preocupados, e dormimos mal, mas depois chegamos à conclusão de que não há dúvida nenhuma de que temos de andar para a frente.
Bastante antes da primeira separação de gémeos siameses, fez cirurgias pioneiras, como a de um doente que tinha tumores no rosto e a quem retirou toda a pele dessa parte do corpo, colocando enxertos das coxas. Sente-se muito diferente nesses momentos do que quando faz uma operação que já realizou muitas vezes?
Quando vou fazer uma operação que nunca fiz estou sempre altamente preocupado se aquilo vai dar o resultado que ambiciono. Por isso é que faço essa cirurgia e por não ver alternativas. Esse doente, por exemplo, não tinha alternativa nenhuma e eu fiz uma operação que nunca tinha sido feita e que penso que nunca será. É um caso excepcional. Foi a única vez que vi num congresso médico pessoas a levantarem-se e a baterem palmas quando fiz a apresentação. E a primeira operação das irmãs siamesas custou-me os olhos da cara porque tive de ir a Inglaterra para ver o que se fazia naquelas circunstâncias. Sabia que se desse um passo em salto já não voltava atrás e poderia ter de sacrificar uma das duas ou dos dois. Na primeira operação demorei 12 horas. Na terceira, praticamente igual, demorei quatro. Porquê? Porque já sabia como era. Andei a estudar, por aqui e por acolá, e não consegui encontrar nada. Estava com uma ansiedade enorme, hesitava e ia muito devagarinho. Na outra, como já sabia como era, passou-se com uma facilidade muito maior.
Além das sete separações de siameses que fez teve de recusar muitos casos?
Recusar propriamente não. Houve três casos em que não operei porque só tinham um coração para os dois e o coração não dava para nenhum. Morreram ao fim de um ou dois meses. Não havia nada a fazer. Aquele coração não dava para nenhum deles mesmo que alguém dissesse "a gente deixa morrer um e dá o coração ao outro". Noutro caso de um siamês que operei, só o fiz porque o outro já estava morto. Da cintura para baixo eram um, mas tinham duas cabeças, dois troncos e dois corações. Ainda tentei salvar o outro, o que não consegui. Se ambos estivessem bem, não poderia operar. Teriam de viver assim enquanto vivessem. Tentei, com a consciência de havia 99 por cento de probabilidades de não resultar.
Como é que se mede o sucesso de um cirurgião?
Tenho a impressão que não se mede. Tentamos ter o menor número de insucessos possível, mas quando mais avançado é o cirurgião, mais complicações tem. É evidente que as intervenções simples correm todas bem. É essencial haver alguém que tome conta das coisas complicadas e não pode haver aquela ideia de "se houver risco não me meto nisso", pois o doente morre sempre. Há só uma coisa que acho pateta: as pessoas preocupam-se com a idade dos cirurgiões e não com o estado em que estão. Se uma pessoa estiver já com uma certa idade, mas sem a mão a tremer, a ver bem, com experiência, é muito diferente de estar gagá com 60 anos. Mas têm a mania de que com certa idade já não serve. Importante é saber se as pessoas estão ou não em condições. É claro que não há muitas pessoas bem nessas circunstâncias, mas as pessoas devem ser avaliadas por aquilo que são e não pelos calendários.
De todas as lutas em que se envolveu, há alguma de que se arrependa?
Em relação à luta, não. Em relação às suas consequências, sim. Sacrifiquei a família, a coisa que considero mais importante, por causa da Ordem dos Médicos. Tenho oito filhos, e agora já tenho 24 netos, mas a minha mulher e os filhos foram altamente sacrificados, porque nunca estava em casa. Arrependo-me de não ter sabido equilibrar as coisas. Sacrifiquei a família com o trabalho que fiz para mudar o Serviço Nacional de Saúde, o que não consegui... ainda. Continuo a lutar por isso. Se calhar não dá nada, mas não desisto. E já começa a aproximar-se um bocadinho da liberdade de escolha. Se perguntar a qualquer político importante se ele vai ao centro de saúde da área de residência, ele diz-lhe, se for honesto, que não, que vai ao médico que conhece.
Provavelmente irão mentir...
Serão 90 por cento, pelo menos. Não digo que não haja um ou outro... Mas o político vai ao médico que é amigo dele e em quem tem confiança. E eu gostaria que o nosso sistema permitisse ir onde nos sentimos melhor.
Curioso é que se for às urgências do Hospital de Santa Maria e do Hospital da Luz, estará uma tão congestionada quanto a outra.
Pois. Repare: quando comecei a trabalhar no Instituto do Cancro, às vezes perguntava aos doentes porque é que ali iam. Respondiam-me: "Ó doutor, eu venho a fonte limpa!" Achavam que ali no instituto era onde se tratava melhor. Agora vêm com argumentos perfeitamente falsos, de que não se pode escolher porque só há um médico a 30 quilómetros de distância. Por amor de Deus! Não vou invalidar a ideia por haver uma circunstância que impede.
Grande parte da população está no litoral...
Está nas grandes cidades, em zonas onde há médicos. Aliás, um dos grandes problemas deste sistema de saúde é a falta de apoio às pessoas que são da província, que muitas vezes são desprezadas. Para mim, tem de mudar o sistema, mas os políticos têm medo.
Existe todo um endeusamento.
Dizem que é a grande vitória da revolução. Lamentavelmente, não acho que seja uma grande vitória. Acreditei na Revolução no princípio, mas hoje em dia estou desconsolado. Olhamos à volta e isto não leva a lado nenhum. Havia um senhor, que morreu há pouco tempo, o Veiga Simão, ministro antes e depois do 25 de Abril, que dizia uma coisa muito importante: "É pena que, em vez de deixarem o Deus, Pátria e Família, e juntarem a Liberdade, tenham ficado só com a Liberdade e tenham arrumado o Deus, Pátria e Família." Tudo o que estava para trás foi destruído, em vez de deixarem o que estava bem e emendarem o que estava mal. Ficaram só com a liberdade, e ainda por cima liberdade mal entendida, e estragaram tudo.
O que procuram as pessoas que vêm ao seu consultório?
Sobretudo segundas opiniões. Como não têm dinheiro para serem operadas no privado, vêm cá perceber se o que lhes propuseram está bem ou não. Se digo que está bem, são operadas onde lhes sai mais barato, pois no privado é sempre mais caro. Outros, que têm confiança, vêm porque acreditam que ainda sou capaz de fazer as coisas, apesar de haver colegas a dizer "sabe, com aquela idade...". Felizmente, ainda há muitos doentes que não se desmotivam.
Quando fez a sua última cirurgia?
Há dois meses, mais ou menos.
Foi a quê?
Deixe cá ver... Era uma coisa de cabeça, uma plagiocefalia. Uma cabeça torta, digamos assim.
O bloco operatório ainda é um sítio onde se sente como um peixe dentro de água?
Sinto-me tão bem no bloco como em qualquer outro lado. Tenho é que operar onde haja condições. Por exemplo, normalmente opero crianças no Hospital da Cruz Vermelha e não no Hospital da Luz, porque não tem unidade de cuidados intensivos pediátricos. Nem todas as crianças precisam, mas se precisarem quero que esteja à mão.
Alguma vez tratou a sua própria família?
Tirei as amígdalas à minha mulher. Tratei uns cortes a um filhos, mas graças a Deus nenhum deles teve uma doença grave. E tenho três brilharetes, que foi operar três cães. Num caso era uma cadela com cancro de mama e correu tudo muito bem, mas a senhora que tomava conta resolveu dar-lhe uma pratada logo a seguir à anestesia e ela morreu. Outro era um cão de um ator muito conhecido em Lisboa, que tinha partido um ombro e que nenhum veterinário aceitava operar. Queriam abatê-lo, mas eu operei o cão e ficou bom. O outro era um pastor alemão fantástico, que eu tinha, com um chamado ectrópio da pálpebra. Numa rixa com outro cão tinha ficado com a pálpebra virada. Pedi a um oftalmologista para o operar, mas não ficou bem e então disse que tratava eu. Afinal, sou cirurgião plástico.
São tão inocentes quanto as crianças?
Gosto muito de crianças, porque os miúdos são muito espontâneos. Se eu entro e vejo um miúdo bem-disposto, acho logo que não tem nada grave. Se o vejo triste, fico preocupadíssimo, mesmo que não lhe encontre nada, porque deve ter qualquer coisa.
Neste caso da Leonor Afonso Cipriano, que acabou por morrer de cancro horas de a ir buscar à Alemanha, a menina era muito alegre.
A miúda era espantosa, com uma vivacidade e uma alegria de viver fantásticas. Simplesmente tinha uma situação gravíssima, e eu acho aquilo uma vigarice total.
Não acredita no tratamento com as células dendríticas?
Estão a fazer estudos no Mundo inteiro e ainda não chegaram a conclusão nenhuma. Em alguns casos até chegaram à conclusão de que não dá resultado e aquele senhor da clínica da Alemanha está a cobrar levar quatro vezes mais do que o valor normal. Em Louvaine, na Bélgica, onde estão a estudar aquilo, o tratamento completo custa à volta de 20 mil euros. Em Duderstadt, na Alemanha, custa perto de 80 mil. Portanto, há qualquer coisa aqui que não joga certo. Quem tiver alguém na família que está desenganado e que vai morrer, quer um milagre e vai à procura. Empenha a casa e faz tudo. Simplesmente, o milagre é uma vigarice. Alguns daqueles tratamentos até podem ser um bocadinho úteis nisto ou naquilo, mas nada está comprovado. Aquele senhor ainda não publicou os resultados que tem, para se poder comparar e avaliar se são ou não bons. Dito isto, a parte psicológica é fundamental: tive um doente, um pequeno madeirense que tinha um tumor num osso e chegámos à conclusão que não havia nada a fazer, pois estava espalhado pelo corpo todo. Não comia, estava a emagrecer, e dissemos que podia ir para a Madeira, descansar algum tempo, e depois voltava para continuar os tratamentos - sabendo nós que aquilo não tinha solução. Ele disse que queria ir a Fátima e, passados alguns dias, depois de voltar para Madeira, saiu uma notícia num jornal sobre o 'milagre de Fátima', pois o miúdo, de quem não me lembro do nome, já comia, engordara e estava bem-disposto, dizia que ia ficar curado... Passaram dois meses e veio uma noticiazinha, que tenho guardada, a dizer que tinha morrido. Mas viveu dois meses muito melhor. Não há dúvida nenhuma. Ele ia para lá e morria após os dois meses, mas morria magrinho e triste. Acreditou em Fátima e sentiu-se muito melhor. Valeu a pena, embora ache que não serviu para curar o miúdo. A parte psicológica é absolutamente fundamental. Tenho lá em casa recortes de jornais sobre aviões que foram fretados para ir às Filipinas, porque havia uns cirurgiões que operavam doentes sem abrirem a barriga. Tiravam os tumores sem abrir. Foram fretados aviões de propósito. É claro que só foram os três primeiros... Em desespero, quando nos dizem que já não há nada a fazer, vamos à procura do milagre que não existe.
O que sentiu ao entrar num avião para ir buscar uma criança moribunda?
Telefonaram-me às onze da noite a dizer que não deixavam a miúda embarcar se não houvesse um médico no avião. Já tinham corrido todos e não tinham arranjado nenhum. Disse que o mais que podia fazer era oferecer-me. O avião partia às oito da manhã e não ia encontrar nenhum colega. Não ia adiantar nada, pois não havia solução, mas pelo menos a miúda vinha morrer a Portugal. É mais simpático do que morrer na Alemanha. Aceitei ir, mas não tinha a ver com aquilo.
Não podia ajudar...
Foi uma amiga da família que me telefonou. Nunca tinha tratado a miúda, mas sabia que ela estava numa situação desesperada. Em Duderstadt, mandaram-na para um hospital em Frankfurt, porque não tinham condições. E, nesse hospital, não percebo porquê, não a deixavam sair sem um médico no avião. O que ela precisava era tão simples que a enfermeira dava conta perfeitamente. Eu não adiantava ali nada. Se ela tivesse de morrer no avião, não podia fazer nada. Não era para fazer a grande reanimação. Aceitei ir, mas estava fora do contexto.
Revela no livro que decidiu deixar o seu corpo à Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa, pois sabe como é difícil arranjar cadáveres para treinar os cirurgiões.
Hoje em dia não há. Eles trabalham com bonecos. Eu aprendi imenso a experimentar operações antes de as fazer nos vivos. Se fizer um disparate num cadáver, não há grande problema. Num vivo já é mais complicado... Achei que a única coisa em que ainda podia ser útil era oferecer o meu corpo. Mais gente devia fazer isso, assim como há pessoas que dão sangue. No fundo, qual é o interesse? Depois de estarmos mortos, para o que é que servimos? Para ir para debaixo da terra, ou para incinerar... Não se serve para nada.
A sua família aceita bem essa decisão?
Devo dizer que não estou nada preocupado. Não pedi autorização a ninguém. Tomei uma decisão que achei correcta. Sinceramente, não perguntei aos meus filhos, ou à minha mulher, se estariam interessados em que fizesse isso. Achei que devia fazer, e pronto. Aliás, a faculdade encarrega-se do enterro. Vão-me buscar, encarregam-se da incineração, e depois fico numa daquelas coisinhas cheias de cinzas. Ao menos ainda terei alguma utilidade.
Que herança deixa?
Sei lá. Só quero que não se arrependam de terem tido este pai.
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