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Nasceram no corpo errado

Ainda em crianças sentiram que não deveriam ser quem tinham nascido. Graças à Medicina, podem mudar de sexo

09 de dezembro de 2012 às 15:01

Madalena tinha três anos quando pediu pela primeira vez à mãe e à madrinha "uma pilinha de presente". O pedido repetiu-se ao longo da infância. "Elas pediam-me para eu parar com aquilo porque era uma menina e eu calava-me, mas não percebia por que é que não podia ter uma se todos os rapazes tinham." Também se revoltava quando a obrigavam a vestir saias e vestidos, a usar laços e lacinhos.

"Uma vez a minha mãe vestiu-me uma saia aos quadrados com dois bolsos de lado. Estava tão irritada que meti as mãos nos bolsos e os empurrei até rasgar. De outra vez, vestiu-me uma camisa de dormir e rasguei-a de cima a baixo. Chorei quando me furaram as orelhas e me puseram umas argolas de ouro. Assim como sempre fiquei triste por a minha mãe não me deixar andar de tronco nu como o meu pai nem ir atrás dele explorar as ravinas, ir à pesca e à caça, ou nadar para longe."

Madalena, de 22 anos e natural de uma terra pequena no centro do País, está a caminho de se tornar Tomás no sexo, mas na cabeça já o é há muito. Desde sempre, acredita. "Fisicamente sou uma mulher mas nunca foi assim que me senti. Até quando sonho, sonho em mim no masculino. Sempre soube que nasci no corpo errado, aquele corpo não era eu."

UMA EM 100 MIL

Estima-se que (dados europeus) um homem em cada 30 000 sente que é uma mulher e uma menor proporção de mulheres sente que é um homem (uma em cada 100 mil). "Em Portugal, a tendência é a oposta. Há mais mulheres (60%) a quererem ser homens do que no resto do Mundo", explica o cirurgião João Décio Ferreira, que até 2010 era o único médico a realizar as cirurgias de mudança de sexo em Portugal. Autor de uma técnica cirúrgica inovadora em todo o Mundo, Décio Ferreira já não integra o Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital de Santa Maria, mas continua a operar no privado.

Só em 2012 operou 19 transexuais no Hospital de Jesus (todos eles de mulheres para homens), em Lisboa. Por outro lado, desde a criação da unidade de Reconstrução Genito-Urinária e Sexual no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, em Setembro de 2011, "já terminaram o processo três pacientes de mulher para homem e uma paciente de homem para mulher, e neste momento há 16 pacientes aptos para cirurgia e outros 16 que ainda não têm o processo na Ordem dos Médicos concluído", refere o director, Celso Cruzeiro.

ESPELHO INIMIGO

Tomás está agora a iniciar o processo, a fazer as avaliações de diagnóstico – a primeira das muitas fases que os transexuais passam até às operações finais –, mas os pais ainda lhe chamam Madalena. Na adolescência começou por se interessar por raparigas e questionou-se se seria lésbica. "Quando contei à minha mãe que gostava de raparigas, ela desmaiou. Naquele momento percebi que não queria desiludir a minha mãe e aí começou a pior fase da minha vida. Comecei a vestir-me de forma mais feminina e a tentar namorar com rapazes, mas não gostava deles, era só para manter as aparências. Ao mesmo tempo tinha relações com mulheres. Mas olhava-me ao espelho e odiava-me. Quando veio a menstruação senti-me a pior pessoa do Mundo, estava ali aquilo que me identificava com a mulher que eu não queria ser."

Anos mais tarde viu um documentário que lhe mostrou a luz. "Estava ali tudo o que eu era. Percebi que não tinha culpa do que sentia, que havia uma explicação científica." A alma apaziguou, mas não o coração. "No meu último ano do ciclo comecei a namorar com uma rapariga e foi com ela que comprei o meu primeiro ‘strap on’ (cinto com pénis artificial). Foi com ela que me senti homem pela primeira vez, mas apesar disso ela nunca me conseguiu dar um orgasmo. Andei com outras raparigas, mas sempre achei que me usavam como cobaia. Todas eram heterossexuais mas queriam a experiência de ter uma rapariga."

Depois de uma tentativa de suicídio, com uma caixa inteira de Xanax que o deixou no hospital, resolveu aceitar a segunda oportunidade para viver. Tem hoje uma relação estável, de dois anos, com uma colega da universidade, onde todos o tratam por Tomás. "Foi ela que mais força me deu para seguir em frente. Não aguento não ter concretização sexual (apesar de a minha namorada ser maravilhosa e de eu amar aquilo que fazemos) porque não me sinto à vontade com o meu corpo."

António, que nasceu Paula, também não terminou o processo. "Ainda só fiz a mastectomia [retirar o peito] e o facto de não ter efectuado as cirurgias genitais afecta a minha vida. O simples facto de não poder utilizar um urinol gera alguns constrangimentos e para mim ainda é difícil pensar num envolvimento sexual", motivo pelo qual é solteiro. Na adolescência refugiou-se nos estudos, enquanto Salvador, antes Sofia, se escondia do mundo nos livros.

"Também não tinha espelhos em casa e evitava ao máximo o contacto com os outros." Henrique, quando ainda era Tânia, "dizia que era um menino e urinava de pé. Mas na faculdade é que foi complicado, porque tirei o curso de Educação Física onde tinha de frequentar os balneários das raparigas, apesar de me sentir rapaz". Henrique começou em 2004 o processo de transformação. Já fez entretanto 18 cirurgias. "As principais foram a mastectomia, a histerectomia [ressecação dos ovários e vagina] e a metoidioplastia [formação de um pequeno pénis]. As outras foram apenas retoques", conta o professor. Há 14 anos conheceu a mulher com quem vive. "Ainda não tinha iniciado o processo, mas como me assumia como homem ela sempre me viu como tal."

Aliás, quando foi a julgamento para mudar o nome [desde 2011 que não é necessário passar pelo tribunal, basta um relatório psiquiátrico], o juiz perguntou à companheira de Henrique se não se sentia lésbica por estar com ele. "Tive vontade de lhe partir a cara." As situações constrangedoras sucederam-se, no entanto, antes da mudança. "Quando ainda tinha nome feminino e aspecto já totalmente masculino era olhado nos bancos, nos contratos de emprego, nas fronteiras e nos hotéis como um bicho raro." Sobre a intimidade do casal, é peremptório: "Agora é que tenho os órgãos genitais certos. Dou prazer e finalmente posso ter prazer."

REJEIÇÃO DO PÉNIS

"Corro atrás da minha grande sorte porque ganhei um grande e miserável prémio quando nasci. Durante a minha gravidez a minha mãe recebeu a notícia de que o bebé que esperava era uma menina e por isso preparou a minha chegada com roupas, acessórios e brinquedos de menina. No momento em que nasci, algo de surpreendente aconteceu: na realidade, nasceu um rapaz", explica Denise, que veio ao mundo Cristiano.

"Limitei-me a conviver com todas aquelas coisas femininas que tinham comprado para mim e me faziam sentir como uma princesa num reino encantado. Vivi assim até ter três anos." Entre os seis e os 17 anos, "em frente ao espelho rejeitava ver o meu pénis e escondia-o entre as nádegas para poder olhar por mim abaixo e não ver uma coisa que não estava ali a fazer nada. Agarrava os meus seios para poder sentir o seu tamanho e dar-lhes um aspecto mais grandioso". Depois de passar por uma bulimia nervosa começou a roubar à mãe a pílula na esperança das hormonas femininas. Neste momento está a ser seguida pela psiquiatra Zélia Figueiredo, já mudou de nome no registo ("é o meu segundo dia de aniversário"), mas falta-lhe o dinheiro para as cirurgias necessárias no privado. Há cinco anos começou a trabalhar como operador logístico, ainda com o nome e roupas de homem, numa fábrica onde a maioria é do sexo masculino.

"Tive medo de ser despedida quando mudei de nome, mas fui informar a administração que me passava a chamar Denise. Em menos de meia hora a notícia espalhou-se pela fábrica mas sempre andei de cabeça erguida, tanto lá como na minha terra, em Santa Maria da Feira. A rejeição dos outros só me dá mais força para continuar."

As relações amorosas nunca foram satisfatórias. "Sempre me senti atraída pelo sexo masculino, mas sempre que me envolvia com um homem ele não me tratava como mulher, e eu queria ser respeitada como a mulher que sei que sou. Os rapazes com quem me envolvia eram homossexuais e viam em mim um homem. Decidi dar um tempo nas relações, agora só quero ter alguém quando mudar os genitais", conta a também caloira de Direito no Porto.

Ema, antes Jorge, já tem o processo completo. Em criança não deixou de subir às árvores do Alentejo natal como os meninos da sua idade, mas eram "os cabelos compridos e os vestidos de menina" que a apaixonavam. "Os meus irmãos chamavam-me de mariquinhas porque tinha muitos tiques femininos, mas como a minha mãe morreu muito cedo não tinha ninguém com quem partilhar o que sentia." Aos 22 anos iniciou o processo. "Fisicamente fiquei muito bem e ter ficado uma mulher tão perfeitinha ajudou as pessoas em Portalegre a verem-me como tal. No fundo, hoje sou um ídolo aqui, as pessoas dão-me os parabéns pela coragem. Para mim, aquilo que fiz foi simplesmente corrigir um erro da natureza, tal como há pessoas que nascem sem braço ou perna, eu nasci no corpo errado."

Na mesa de operações de Décio Ferreira retirou os genitais masculinos que substituiu pelos femininos e colocou próteses mamárias. "Vivo com o meu namorado, que já me conhecia. Antes da cirurgia tínhamos relações anais e eu tinha prazer mas não orgasmo. E sempre achei que também nunca iria ter um orgasmo depois da operação, mas a verdade é que tenho. Na altura não queria saber se o órgão novo funcionava ou não, queria apenas livrar-me do pénis e ganhar uma vagina. Mas funciona muito bem, o clitóris está lá, o médico usa um sistema tão bem feito que até lubrificação nós temos. O meu namorado tem prazer e eu também. A minha vagina é muito perfeitinha, até a minha esteticista o diz", conta. Hoje, com 29 anos, está a terminar o curso de Serviço Social e é empregada doméstica. "Sempre gostei muito de cozinhar e de manter tudo limpo, trabalho em 12 casas."

MILAGRE DE NATAL

Rodrigo nasceu Sara há 28 anos. Durante a infância, todos os anos pedia ao Pai Natal para acordar no corpo do rapaz que sentia que era. "Vivia em segredo à espera de acordar e já não ser uma menina. Tinha esperança de que durante a noite alguma coisa mudasse." Quando o peito começou a crescer, usava "umas fitas para o apertar e não se notar na roupa". Também fazia a barba, que não tinha, para estimular o crescimento dos pêlos. "Foi aí que contei à minha mãe. Ela chorou muito, mas agora apoia-me. Quando escolhi ser Rodrigo ela até me sugeriu o nome Manuel, que achava mais bonito. Isto acabou por melhorar a nossa relação, antes era bruto, triste, escondido. Agora assumi-me e estou bem comigo e com os outros."

Rodrigo, que trabalha na empresa do pai, teve agora autorização para começar a prova real de vida – viver como homem perante a sociedade, passo necessário antes de avançar para cirurgia. Durante quatro anos namorou com uma rapariga a quem nunca contou que também ele era uma mulher. "Disse-lhe que tinha um problema no pénis e fazíamos sexo com uma prótese, que eu levo comigo para todo o lado. Tenho outro mais pequenino, que funciona como um tubinho, para urinar de pé, mas esse não dá para penetrar."

O LUTO DOS PAIS

"Geralmente, a rejeição ao transexual começa pela família, seja pelos pais ou pelos irmãos. A maioria dos pais reage inicialmente de forma negativa ao estatuto de transexual do seu filho. Os pais necessitam, na maioria dos casos, de atravessar um período de luto pela perda da imagem do seu menino ou menina... Não se trata da perda de um filho, mas sim da perda de uma idealização. Só após este processo conseguem aceitar e receber nas suas vidas o ‘novo’ filho ou filha", garante a psicóloga clínica Íris Monteiro, especialista em transexuais.

Nuno, antes Isabel, de 30 anos, não vê os pais desde Maio. "A minha mãe não aceita a situação. Acho que é um caso sem retorno, que nunca me vai ver como rapaz. Penso que ela até compreende a situação, mas tem vergonha de ser minha mãe. Com o meu pai nunca falei sobre isto, mas ele sabe pela minha mãe. No fundo, não falamos sobre o elefante na sala." Os pais de Nuno têm ambos formação superior e vivem numa grande cidade. Nuno vive noutra. "Como não tenho irmãos, sinto-me isolado e sozinho, sem grande apoio, mas sei que estou no caminho certo."

Foi há dois anos, com o apoio da namorada de então, que decidiu procurar o corpo certo. "Durante muitos anos achei que tinha de me conformar, até porque escolhi uma carreira muito exposta e era importante vingar profissionalmente." Também se deve ao trabalho o facto de ainda só ter feito a mastectomia. "Como não posso faltar ainda não avancei com a mudança genital, mas quero fazê-la com a maior brevidade possível. Sinto-me sempre um pouco limitado porque por muito que queira ainda tenho o sexo com que nasci. Desde que eu e a minha namorada da faculdade terminámos já me senti atraído por outra pessoa, mas ela quando soube que eu nasci mulher afastou-se."

Vítor já retirou o peito, o útero e os ovários, reconstruiu o canal da uretra, fez a reconstrução do pénis, mas falta-lhe a faloplastia [formação de um neopénis de tamanho e forma semelhante o mais possível a um pénis de homem em erecção; à custa de retalhos de pele e tecidos vários da própria pessoa e colocação de prótese, se necessário, para obter a rigidez semelhante a uma erecção normal] –, o que tem afectado a sua vida íntima com a companheira.

"O facto de ainda não estar totalmente concluído afecta-me sentimental, emocional e sexualmente. O que nós queríamos era que fosse tudo mais rápido para que os nossos sonhos se tornassem realidade", conta o homem que nasceu Filipa no interior do País. Marco casou há dois anos. "A mulher que está comigo conheceu-me como Vanessa, no início do processo, por isso sempre soube de tudo. As pessoas que trabalham comigo nem todas sabem, mas sinto que não devo ter um rótulo do que fui. O que lá vai ficou para trás porque sou uma nova pessoa." Junto da mulher cumpriu um sonho de ambos: têm duas filhas gémeas, concebidas por inseminação artificial.

"É a única coisa que os transexuais masculinos não podem fazer de forma natural: ser pais. Por isso normalmente adoptam ou a mulher faz inseminação com esperma doado", explica Décio Ferreira, que já foi ao casamento de muitos daqueles a quem mudou a vida e também a uns quantos baptizados.

"Concluir o processo é a felicidade total. O corpo que nunca tinha sentido como meu havia desaparecido. Os homens conseguiram corrigir o terrível erro da minha gestação. Todo o sofrimento que passámos é inteiramente compensado", explica Joaquim, que desde os quatro anos – ainda Carla – dizia para a mãe: ‘Este sexo não é meu, não quero este sexo para nada’. Ainda assim, por falta de "conhecimento sobre transexualidade", só iniciou o processo aos 43 anos.

"Fui aguentando ao longo da vida devido aos valores com que fui criado. A minha mãe era extremamente crente e religiosa, o meu pai era um homem muito ‘ditador’. Criei um mundo só meu até mudar de sexo." Já Alexandre, quando deixou de ser Margarida, não mudou só de nome. "Foi uma mudança radical a todos os níveis, até de cidade mudei para não me apontarem o dedo. Nasci de novo, num sítio novo, num trabalho novo, com novos amigos. Comecei do zero." "Desistir não existe no nosso vocabulário. É tratar ou morrer porque a escolha é essa mesma: viver ou morrer", explica, por seu lado, Hugo. "Tenho a minha vida de volta, apesar de nunca ter precisado do espelho para saber quem era. Não era a Rita, nunca fui."

AS VÁRIAS FASES DO PROCESSO DE MUDANÇA DE SEXO

De acordo com as Normas de Tratamento da Associação Internacional Harry Benjamin de Disforia de Género, o processo de reatribuição sexual envolve cinco elementos clínicos fundamentais: elaboração do diagnóstico (avaliação clínica), psicoterapia, teste real de vida, tratamento hormonal e tratamento cirúrgico.

"Num transexual verdadeiro as certezas são evidentes. Como todos nós temos certezas de pertencer ao género feminino ou masculino. No transexualismo isto também não é uma escolha, não é uma opção de estilo de vida, os transexuais não escolhem a forma como são, nascem assim. Trata-se é de uma minoria cuja identidade sexual está em desconformidade com o corpo, isto é, o seu sexo psicológico (o nosso ‘verdadeiro sexo’) é oposto ao biológico", explica a psicóloga Íris Monteiro.

No Hospital de Jesus, a mudança de sexo pode ficar em sete mil euros com comparticipação do Estado. Décio Ferreira não cobra honorários de cirurgião a quem não tem seguro.

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