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Correio da Manhã

Domingo
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O português na cadeira de Sacco e Vanzetti

Celestino Madeiros foi condenado à morte por um homicídio nos EUA. Antes da execução, quase salvou os dois anarquistas.
Leonardo Ralha 23 de Agosto de 2015 às 16:00
FOTO: D.R.

O primeiro a morrer não foi Sacco e muito menos Vanzetti. Logo após as 12 badaladas de 23 de agosto de 1927, há precisamente 88 anos, o gangster Celestino Madeiros, de 25 anos, nascido nos Açores, emigrado para os EUA e condenado à morte por homicídio, precedeu os anarquistas italianos na cadeira elétrica da penitenciária estadual do Massachusetts.


Ao contrário dos protagonistas do que é considerado por muitos um dos maiores erros jurídicos do século XX, Madeiros nada disse antes de se tornar o primeiro português executado desse modo. Também não tinha nenhum familiar ou amigo presente.


É natural que Celestino, um homem de poucas palavras, estivesse cansado de esperar pela execução da sentença, punindo a morte de James E. Carpenter, de 79 anos, caixa do banco Wrentham National, a 1 de novembro de 1924. Condenado por homicídio em primeiro grau, após dois cúmplices chegarem a acordo com o Ministério Público, o português já teria sido percorrido por milhares de volts não fosse a possibilidade de ser a testemunha principal do eventual novo julgamento de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, condenados à pena capital por matarem a tiro dois homens noutro assalto, em 1920. Até à última hora houve esperança de que Madeiros salvasse os anarquistas que motivaram manifestações (e atentados) nos dois lados do Atlântico. Afinal, ele garantia ter participado nesse último crime.

Depois de cinco adiamentos da execução, alguns dos quais comunicados minutos antes da hora em que seria suposto morrer, o gangster português passou as últimas horas de vida a dormir. Relatos da imprensa norte-americana dão conta de que estava "estuporado" ao aproximar-se da cadeira elétrica. Recusou a extrema-unção do reverendo Michael Murphy, com quem passou muito tempo nos anos anteriores, mas não as fartas refeições prisionais, comidas com deleite mesmo quando Sacco e Vanzetti faziam greve de fome.


Saiu da Cela 1 do corredor da morte às 00h02, ladeado por dois guardas prisionais. Bastaram-lhe 13 passos para chegar à sala de execuções. E nem então alterou o comportamento. "Sem olhar para ninguém, e sem nada dizer, Madeiros sentou-se, impassível. Não reagiu quando os guardas se encarregaram de colocar os elétrodos", descreveu o repórter do ‘The Boston Daily Globe’, que horas depois chegou às bancas com a manchete ‘Madeiros, Sacco, Vanzetti died in chair this morning’ (‘Madeiros, Sacco, Vanzetti morreram na cadeira esta manhã’). Era 00h03 quando Robert Elliott, executor oficial do Massachusetts, aplicou uma corrente elétrica de entre 1400 a 1900 volts que fez estremecer o corpo do condenado. Repetiu o procedimento três vezes, até que às 00h09 foi decretado o óbito. Seguiu-se o sapateiro Sacco, de 36 anos, que gritou "longa vida à anarquia!" e despediu-se com um "adeus, mãe" meio em inglês e meio em italiano, e, por último, o peixeiro Vanzetti, de 39 anos, que garantiu estar inocente desse e de qualquer outro crime, mas perdoou os seus executores.


VINDO DOS AÇORES

Também nascido num país europeu empobrecido, Celestino acompanhou pai, mãe e irmãos na viagem de barco para os EUA aos três anos. O ‘Peninsular’ saiu da ilha de São Miguel e chegou a Ellis Island, em Nova Iorque, passagem obrigatória para quem chegava, a 1 de setembro de 1905. Dois dos nove filhos dos agricultores de Vila Franca do Campo, que se instalaram em New Bedford, morreram ainda nos Açores, um afogado e outro de febre, e outros dois nos EUA, de tuberculose.


Também o futuro criminoso teve problemas de saúde. Começou a sofrer ataques de epilepsia em bebé, repetidos diversas vezes por semana. Com o passar do tempo tornaram-se menos frequentes, mas mais violentos, seguidos de estados depressivos. Passava dias trancado no quarto.


Na adolescência desapareceram, por artes mágicas, as dificuldades de visão que contribuíram para o mau aproveitamento escolar. Aos 14 anos, numa altura em que já fora a tribunal de menores por assaltar apartamentos, abandonou de vez as aulas, sem passar da quarta classe.

Órfão de pai, teve de procurar sustento. Mas nunca conseguia manter um emprego mais do que um mês. Antes dos 18 anos já estava associado a gangsters, e na altura em que Sacco e Vanzetti foram detidos e acusados de terem morto o responsável pelo pagamento de salários de uma fábrica de sapatos, e o guarda que o protegia, Celestino obteve dinheiro suficiente para viajar quase dois anos, com uma artista de circo. Percorreu os distantes Texas, México e Minnesota, até regressar de bolsos vazios.


Habituado a viver de expedientes como os peditórios da fictícia American Rescue League, imitação do Exército da Salvação que fingia recolher verbas para filhos de militares – foi detido por fazer-se passar por tenente e ficou em liberdade condicional –, o mais próximo que esteve de um emprego fixo foi um negócio de construção de garagens, em 1923.


Como o salário não lhe chegava, mudou-se para o Bluebird Inn, estabelecimento gerido por cabo-verdianos que contrariava, entre outras, a Lei Seca. Motorista de dia e porteiro à noite, enfrentou de pistola em punho 12 italianos que queriam levar uma empregada do estabelecimento. Mas teve de partir após um tiroteio com o patrão, insatisfeito por o açoriano tentar fugir com a sua mulher.


INSANIDADE POR PROVAR

"Quase como se estivesse a compensar os males que a natureza e a sociedade lhe fizeram, Madeiros acumulava armas cada vez mais maiores e melhores", escreveu o investigador Herbert B. Ehrmann, no livro ‘The Untried Case’. Infelizmente, na manhã de 1 de novembro de 1924 terá usado o revólver de calibre 45, a que às vezes recorria quando via moscas pousadas no tecto do quarto, para matar James E. Carpenter, de 79 anos, quando o caixa bancário tentou acionar o alarme.


Apanhado pela polícia enquanto dormia, admitiu que foi uma sorte ser apanhado de surpresa, pois debaixo da almofada tinha a arma pronta a disparar. Quando dois dos cúmplices o indicaram como autor dos disparos, conseguindo assim evitar a pena de morte, Madeiros viu-se perdido e tentou uma fuga audaciosa da prisão de Dedham. Às 03h35 de 22 de janeiro de 1925, quando o guarda Thomas J. Brannan fazia uma ronda, levou três ou quatro pancadas na cabeça e caiu ao chão, levantando-se a tempo de dominar o prisioneiro, que serrara as grades e servira-se da perna de um banco como arma. "Se estivesses no meu lugar farias o mesmo. Queria pôr-te inconsciente, trancar-te na cela, pegar nas chaves e fugir", explicou ao agredido.

Ainda piores resultados teve a estratégia do advogado de defesa, Francis J. Squires, que procurou provar a insanidade do cliente. Diversas testemunhas insistiram na epilepsia de Celestino e nos antecedentes de doenças mentais na família, mas o juiz não se convenceu, indicando que as capacidades mentais do réu lhe permitiam distinguir entre bem e mal. O júri condenou-o à morte por homicídio em primeiro grau, mas o julgamento viria a ser repetido em 1926, com igual veredicto, pois o magistrado esqueceu--se de informar os jurados da presunção de inocência.

CONFISSÃO BOMBÁSTICA

A 26 de agosto de 1926 já estavam a limpar e a pintar as celas no corredor da morte da penitenciária estadual, em Boston, e Madeiros preparava-se para ser o 27º a morrer na cadeira elétrica no Massachusetts. Mas não se Frederick G. Thompson, advogado dos anarquistas italianos, o pudesse evitar. O português tornara-se essencial após ter feito chegar a Nicola Sacco, na cadeia de Dedham, um pequeno papel com uma enorme confissão: "Por este meio confesso ter estado no crime da companhia de sapatos de South Braintree e que Sacco e Vanzetti não estiveram nesse crime."

Num depoimento de 143 páginas relatou a sua participação no crime, com abundância de detalhes, mas sem identificar os cinco cúmplices, embora tenha ficado implícito que se trataria do gang de Joe Morelli, de origem italiana e parecido com Sacco, o que explicaria que o sapateiro tivesse sido identificado por testemunhas. De nada valeu, apesar de o advogado salientar que nem uma eventual recompensa justificava que Madeiros dissesse algo que o incriminava ainda mais: "Onde é que ele iria gastar o dinheiro? Na cadeira elétrica? Isso é ridículo."


Ao fim de mais de um ano de adiamentos, Madeiros morreu no mesmo dia que Sacco e Vanzetti. "Um Calvário precisa sempre de um ladrão", disse um dos defensores da inocência dos italianos, meio século mais tarde ilibados por Michael Dukakis, então governador do Massachusetts. Caído no esquecimento, Madeiros foi sepultado em campa rasa, no cemitério de Pine Grove, em New Bedford.

MÃE TEVE ATAQUE NO JULGAMENTO E NEM SOUBE DA EXECUÇÃO

Entre a família de Celestino, ninguém teve mais destaque na imprensa do que a mãe, Maria Faria Madeiros. A açoriana sofreu um ataque epilético e foi retirada do tribunal a 19 de maio de 1925, ao saber que o filho fora condenado à morte. Dias antes, a viúva, então com 60 anos, testemunhara que vários parentes tiveram problemas mentais. Como voltou a perder os sentidos ao visitar o filho no corredor da morte, a 10 de agosto de 1927, a família escondeu-lhe a data da execução.

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