Museu do fado disponibiliza on-online arquivo sonoro com 30 mil registos
Conta-se em poucas linhas a história de vida de Zé Bacalhau. Tipo castiço, nascido em Oeiras em 1880, filho daquele que, à data, era conhecido, na zona, como o velho ‘Bacalhau de Oeiras’, é a ele que lhe é atribuída a autoria do famoso ‘Fado Bacalhau’, composição repescada por dezenas de fadistas ao longo do século XX até aos dias de hoje. Da morte de Zé Bacalhau, cantador, guitarrista, poeta, jornalista e taberneiro em Alcântara, também não rezam grandes relatos. Sabe-se que terá falecido sem grande glória em 1935 e descobriu-se há pouco tempo que deixou escondida (ou perdida) uma gravação do ‘Fado Bacalhau’ na sua própria voz, uma pérola da história do fado. O registo original foi encontrado em tão mau estado que foram necessários sete dias de restauro, mais de 70 horas de trabalho, para recuperar apenas vinte segundos de gravação.
Ora, é precisamente esse histórico registo sonoro do ‘Fado Bacalhau’ que em breve poderá ser escutada por todos – apaixonados, curiosos ou estudiosos da canção de Lisboa – no novíssimo e inovador Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado, já acessível a partir do site do próprio Museu (www.museudofado.pt). Este arquivo é a primeira coleção áudio disponível online a partir de um dos maiores acervos de fonogramas existentes no País. Identificados estão já mais de 30 000 repertórios associados ao fado, dos quais três mil estão já disponíveis para audição. É a democratização em definitivo do fado, da sua história e das suas memórias. Além do fado é possível encontrar também outros géneros musicais como música brasileira e repertório de teatro de revista.
Raridades
Para escutar no Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado estão algumas raridades e descobertas que apanharam de surpresa até a diretora do próprio Museu. "Surpreendeu-nos muito descobrir gravações em que se ouve a voz da Júlia Florista, uma figura tão falada na história do fado e cuja voz ainda não tínhamos escutado. Neste momento, temos doze gravações disponíveis, sendo que algumas delas até estavam na posse de um senhor inglês", revela Sara Pereira. "Temos também várias gravações do hino nacional, a maioria delas feitas por atores e temos vários registos do ‘Fado do 31’ da ‘Revista do 31’ de 1913, um fado que ilustra bem aquele período conturbado da República", adianta aquela responsável que destaca ainda no arquivo gravações de Armandinho (o pai da guitarra portuguesa), de Artur Paredes (pai de Carlos Paredes) e também de "fadistas de talento indiscutível que, apesar de terem gravado, por algum motivo não entraram na história do fado", lembra. São nomes que surgem ao lado de outros que dispensam apresentações como Alfredo Marceneiro, Beatriz Costa, Vasco Santana ou Amália Rodrigues, que aqui tem quase 60 registos anteriores a 1950.
Cumprindo um dos compromissos estratégicos do Plano de Salvaguarda da candidatura do Fado à Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade (UNESCO), o Arquivo Sonoro Digital do Museu do Fado disponibiliza online os registos de fados gravados desde o início do século XX. "São verdadeiros resgates de gravações que andavam perdidas no tempo", lembra Sara Pereira.
O trabalho de restauro é de uma minúcia e cuidado extremos, quase uma obra de filigrana. "Alguns dos discos que temos de tratar têm mais de cem anos. Chegam-nos às nossas mãos muito danificados, partidos e alguns casos até colados. Primeiro têm de ser limpos através de uma máquina única em Portugal com produtos especiais e só depois é que podem ser reproduzidos", explica Pedro Félix, técnico que lidera a equipa responsável pela recuperação das gravações. É ele que tem a delicada tarefa de acolher nas mãos discos em estado de quase degradação absoluta e dar-lhes uma segunda vida. Muitos dos suportes físicos que chegam até si vêm de uma época em que o vinil ainda estava longe e os discos eram constituídos por materiais tão variados como o carvão ou o papel. "O trabalho mais complicado que tivemos até agora foi de facto o ‘Fado Bacalhau’. Era o único disco e único exemplar em que o compositor interpretava o fado da sua própria criação. Sendo único investimos mais algum tempo. Duas pessoas estiveram a trabalhar durante sete dias mais de dez horas por dia só para recuperar os primeiros vinte segundos", conta.
Doações
Desenvolvido através de uma parceria entre o Museu do Fado (Câmara Municipal de Lisboa – EGEAC) e o Instituto de Etnomusicologia (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa), o Arquivo Sonoro Digital só é possível graças à colaboração de várias entidades, particulares e colecionadores. Muitos dos repertórios identificados estão na posse de outras instituições como a RTP, o Museu da Música ou o Museu do Teatro, mas também na posse de colecionadores e particulares, nacionais, mas também muitos estrangeiros. "Há tempos recebemos um email da Alemanha de um senhor que tinha visto o nosso arquivo e que tinha consigo dois discos da Ercília Costa. Eram faixas que nós não tínhamos e é assim que o arquivo vai crescendo", conta Sara Pereira. "Todo o acervo do Museu do Fado na sua maioria é fruto de doações de particulares. Desde a sua abertura ao público que o museu foi angariando as coleções que ilustram o percurso dos artistas e que estão na suas próprias mãos, nas mãos de herdeiros, de familiares ou particulares. Ninguém hesita em ceder-nos o seu património em prole deste projeto coletivo", conta. "Pelos nossos contactos há muitos colecionadores que têm em sua casa cem ou duzentos discos e que estão dispostos a cedê-los para digitalização", acrescenta Pedro Félix.
Esta é a primeira vez que uma instituição disponibiliza em Portugal e em acesso livre a sua coleção fonográfica. "E só assim é que faz sentido desde que salvaguardadas todas as questões com a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). Este é um passo importante na defesa do nosso património", afiança Sara Pereira.
Espalhados
Em grande parte da primeira metade do século XX, os discos em Portugal eram gravados por técnicos que vinham de propósito do estrangeiro para executar a tarefa, o que quer dizer que muitas das gravações de fado feitas, na altura por cá, andarão ainda espalhadas pelo velho continente. Esses técnicos vinham sobretudo de Inglaterra, França e Alemanha e andavam pelo Mundo a fazer gravações para as diferentes companhias. Eram uma espécie de produtores ambulantes. "Por cá usavam espaços como o teatro Taborda, salas de espetáculos ou mesmo escritórios para fazerem os seus registos fonográficos", explica Pedro Félix.
Depois da gravação, faziam uma cópia que entregavam aos representantes locais das empresas para que estes escolhessem quais os números de catálogos que gostavam de ver editados. "Mas os masters (originais) eram levados para os países de origem dos técnicos", explica ainda aquele responsável. "Em Portugal as coisas ainda estavam muito atrasadas. Por cá não existiam estúdios, fábricas de discos ou técnicos e o tal modelo de gravação ambulante não vai existir em Portugal até aos anos 40, embora nos anos 30, com o aparecimento das rádios, se tenha tornado possível fazer algumas gravações nos estúdios das emissoras", lembra ainda Pedro Félix. Só a título de curiosidade os estúdios profissionais como nós os conhecemos hoje, cheios de botões, é algo que só acontece no pós-guerra.
Perdidos na guerra
Se é verdade que à medida que se vai avançando na pesquisa, na investigação e na recuperação das obras perdidas parece ser cada vez mais difícil encontrar novos registos, o facto é que infelizmente também há gravações que se terão perdido para sempre. "Com a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, muitos dos arquivos na Alemanha foram destruídos e as fábricas bombardeadas. Perderam-se muitos masters e documentos que nos ajudariam na própria datação dos registos", desabafa Pedro Félix.
A datação é, de resto, uma das grandes dificuldades na elaboração do Arquivo Sonoro Digital uma vez que alguns dos fonogramas são bem do início do século. "A primeira grande datação é feita visualmente. Através dos códigos inscritos nos discos dá para perceber se ele é acústico ou elétrico, ou seja, se é anterior ou posterior a 1927. Depois dessa primeira triagem são cruzadas outras informações, através do número de catálogo e de matriz e depois através da biografia do intérprete ou compositor. Contudo, há sempre uma margem de erro de cinco anos."
Muitos dos discos gravados acusticamente antes de 1927 são maioritariamente oriundos do teatro de revista. "Temos cerca de 150 revistas representadas no nosso arquivo em que os cantores mais gravados são sobretudo atores. É um fenómeno curioso que vem corroborar aquilo que a história do fado já vinha defendendo, que o teatro teve um papel fundamental na promoção do fado desde finais do século XIX e também na primeira década do século XX. Era o teatro que, em função dos êxitos obtidos nos seus palcos, ditava quais os discos que passavam à gravação", remata a diretora do museu, Sara Pereira.
E agora chega de texto. Faça-se silêncio para se ouvir... cantar o fado.
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