George Orwell foi um dos mais importantes analistas do autoritarismo político no século XX. Mas Orwell não é apenas implacável com os ditadores; também não poupa aqueles que, cobarde e voluntariamente, se submeteram a eles. As ditaduras acontecem nas melhores famílias, parece dizer-nos o escritor; o que não acontece nas melhores famílias é a longa submissão dos filhos à longa tirania dos pais.
Orwell teria gostado de Henrique Galvão. Isto porque Galvão é um raríssimo português – e o objecto de estudo perfeito para esta biografia de Francisco Teixeira da Mota.
Começa por sê-lo na atitude de desafio e independência face a um regime ao qual poderia ter pertencido sem esforço. Fatalmente, cedo se desiludiu com o que via: o abismo crescente entre as palavras grandiloquentes da elite política e os actos mesquinhos ou desumanos dessa mesma elite.
Para esse desencanto muito contribuiu a vivência em África: o continente forneceu a Galvão uma largueza de horizontes – quer no sentido físico, quer no espiritual – que não se ajustava à estreiteza do Estado Novo e dos seus servidores. E África ofereceu-lhe também a condição degradante em que viviam e trabalhavam os nativos.
Passo a passo, desencanto atrás de desencanto, crescem em Galvão aquelas qualidades de "independência, iniciativa e imaginação" que o colocam em rota de colisão com o regime.
PÁGINAS NOTÁVEIS
São notáveis as páginas deste livro sobre os períodos de encarceramento de Galvão; como igualmente notáveis são as descrições dos actos célebres que imprimiram o nome de Galvão na história de Portugal – e até do século XX: o rapto do navio ‘Santa Maria’ e o desvio do avião da TAP para inundar Lisboa de panfletos anti-salazaristas. Foram dois actos que abanaram as estruturas bafientas do Estado Novo e colocaram o país no centro da discussão mundial.
Repito: Henrique Galvão é uma figura que George Orwell teria gostado de conhecer. Não apenas porque Galvão representa essa figura atípica de homem que não se submete a um poder autoritário; mas porque Galvão entendeu por experiência própria – tal como Orwell, aliás – que a luta fundamental do século XX não era entre o comunismo e o fascismo; mas entre a liberdade e a tirania. Neste particular capítulo, demonstrou uma lucidez – e uma intransigência – que o seu amigo, e posterior inimigo, Humberto Delgado não preservou até ao fim.
Como o próprio Galvão várias vezes refere, a sua luta não era apenas "antifascista"; era "antitotalitária", leia-se "antifascista" e "anticomunista", uma posição de grande inteligência e modernidade.
A indisponibilidade de Galvão para substituir uma tirania por outra pode não lhe ter granjeado amigos – nem à direita, nem obviamente à esquerda; mas preservou-lhe uma coerência que poucos – muito poucos – poderão reclamar na história da oposição portuguesa ao salazarismo. D
Autor: Francisco Teixeira da Mota
Editora: Oficina do Livro (401 páginas)
LIVRO: ‘IDADE MÉDIA – BÁRBAROS, CRISTÃOS E MUÇULMANOS’
Persiste a ideia de que a Idade Média foi um período de trevas em que a civilização Ocidental se afundou na ignorância. Um erro. Com este primeiro de quatro volumes, a equipa de Eco mergulha na complexidade de um período que acabaria por gerar a modernidade europeia.
Organização: Umberto Eco
Editora: Dom Quixote
Tradução: Bonifácio Alves (760 páginas)
LIVRO: ‘MEMÓRIAS DA II GUERRA MUNDIAL ’
Muito se escreveu sobre Churchill. Tanto que, às vezes, esquecemos o muito que Churchill escreveu. Injusto. As memórias da Segunda Guerra são um dos grandes monumentos da literatura do séc. XX – perfeitamente comparável, na ambição e no tom, à obra clássica de Edward Gibbon sobre a queda de Roma.
Editora: Texto
Tradução: Manuel Cabral (1072 páginas)
CINEMA: ‘NOS IDOS DE MARÇO’
Leitores de Maquiavel vão gostar do último filme de George Clooney: apesar da sua sensibilidade ‘liberal’, leia-se esquerdista, Clooney mergulha nos ensinamentos do florentino para oferecer uma história sobre a perda da inocência ideológica e o início da hipocrisia como cimento da política moderna.
Realizador: George Clooney
Iintérpretes: George Clooney, Ryan Gosling e Marisa Tomei
Em exibição nos cinemas
FUGIR DE...
‘LARRY CROWNE’
Pergunto por que motivo já não vou ao cinema como antigamente. Verdade que a ficção televisiva está superior a qualquer produto de Hollywood. Mas são filmes como ‘Larry Crowne’ que me afastaram das telas: uma comédia romântica, com dois actores talentosos (Tom Hanks e Julia Roberts) e uma história pretensamente inspiradora sobre os recomeços – académicos, amorosos, existenciais – em plena meia-idade. Um susto.