Deixaram de estudar e de trabalhar. Até de comer. Perderam os amigos. Viviam apenas para alimentar um vício silencioso
Geralmente passa das duas da tarde quando João acorda. Está na cama e já vem a ressaca. Deitou-se às quatro ou cinco da madrugada, perdido com videojogos on-line. A essa hora, os jogadores são mais competitivos. E num jogo de guerra como o ‘Call of Duty’, a adrenalina é fundamental. "De dia, com os europeus, é demasiado fácil. À noite jogo com americanos, que têm um dom natural para a guerra. E têm uma ligação à internet mais rápida. Aquilo não pára. É balas por todo o lado". Tem 29 anos. É fisioterapeuta ocasional – se toca o telefone, João acaba por fazer um domicílio; senão, fica em casa, contra a vontade da mãe. "Se for um jogo bem jogado, o alheamento é total. A pessoa esqueceu as responsabilidades, os problemas. É um prazer muito semelhante ao de uma droga, do álcool. Orgástico quase". É um vício destrutível, reconhece. Mas mais forte do que ele. "Agora estou em pulgas, radiante, porque vai sair a nova saga do ‘Call of Duty’ – estou eufórico com a perspectiva do prazer que vou tirar deste jogo".
Tem a mesma namorada há 11 anos: "É uma mulher que ama demais", descreve João, reconhecendo a estabilidade que ela lhe dá. Tolera-lhe os vícios. "Sou uma pessoa com uma personalidade algo adicta, quer pela canábis como por videojogos e, muitas vezes, até pelo sexo".
Nunca se sabe se João não conhecerá Maria (ambos nomes fictícios). Talvez já se tenham cruzado no jogo ‘Travian’, que é outro do tipo MMOG (massively multiplayer online game), que conta com milhares de jogadores de vários países a competir simultaneamente. Maria evita ao máximo usar computadores. Por sua vontade, a dependência dos videojogos não há-de voltar a atormentá-la.
O INTERNAMENTO
Com excesso de peso, Maria, 23 anos, foi vítima de bullying – violência psicológica na escola – desde a infância. Aprendeu a isolar-se. E, aos 18 anos, quando se mudou de Viseu para Coimbra, para estudar Enfermagem, apanhou um choque. "Tinha problemas de auto-estima e de excesso de peso, o que me impedia de ser popular". A solução que encontrou foi refugiar-se no quarto da casa que partilha-va com outras universitárias. Navegava na internet. "Depois comecei a jogar ‘Travian’, no máximo uma hora e meia por dia. Até que, numa fase final, jogava sete ou oito horas diárias. Deixei de fazer refeições; o excesso de peso transformou-se em anorexia – passei de 70 kg para 48; mentia aos meus pais e colegas; estava intolerante; faltava às aulas da manhã e chumbei". Tudo isto em dois anos.
"A troca de mensagens entre jogadores estimulava-me. As minhas conquistas mereciam o reconhecimento dos outros. Comecei a acreditar que aquela personagem do jogo que eu idealizei era a pessoa que eu gostaria de ser. Era popular". Só que, em contrapartida, Maria estava psicologicamente desgastada, mas recusava-se a aceitar que os videojogos fossem um problema.
Até que sofreu as consequências da anorexia e de ter chumbado o ano, com os custos que tem numa universidade privada. "Os meus pais pensavam que eu tinha um distúrbio alimentar, fruto da má adaptação a Coimbra. E eu tive de lhes dizer, abertamente, o que se estava a passar".
Maria foi internada nas Casas de Santiago, em Belmonte. Durante três meses partilhou um quarto com beliches onde dormiam outras três raparigas – com problemas alimentares ou de drogas e álcool. Ali não se olha às diferenças, mas sim ao que os une a todos. Um vício. E a partir daí o seu percurso foi muito idêntico ao de Francisco, 33 anos. "Cheguei há três meses, angustiado, culpado, muito desacreditado em mim e deprimido", recorda.
Francisco (nome fictício) demorou a conseguir confiar nos colegas de quarto e nos terapeutas. Estava habituado a um único tipo de convívio. O que os videojogos, como o ‘Fallout’ (um RPG, role-playing game) ou o póquer on-line, permitia. "Todos os dias eu tinha de jogar. E quanto mais, melhor. É o mundo virtual: nós não estamos dentro do real. Eu era o maior. De início divertia-me com os videojogos, mas depois perdi totalmente o controlo". A vida real de Francisco acabou atropelada pelos jogos de azar. Passava os dias no casino, a somar dívidas. Já no tempo da escola ele havia trocado as suas prioridades: em vez de estudar, jogava; agora, em vez de se concentrar no trabalho, só pensava nos jogos. "Faltava, chegava atrasado. Era só desculpas. Não me alimentava. Desviei dinheiro do trabalho. E despediram-me".
Alexandra Tracana, directora das Casas de Santiago, explica que "todos os dependentes de videojogos acabam por estar em situações de distúrbios de impulsos e de dependência, acabando por destruir a vida – tal como acontece nas adições a substâncias como a heroína e a cocaína. Por isso, tentámos criar um hotel terapêutico com actividades e grupos de partilha comuns a todas as adições".
Explica o psiquiatra Luís Duarte Patrício, ex-director do Centro das Taipas, que o jogo provoca um mecanismo de articulação cerebral onde há uma gratificação imediata, que causa uma atitude de repetição. A pessoa insiste nesse comportamento. "Quando toma consciência de que isso lhe prejudica a vida – há sofrimento – e mesmo assim continua a fazê-lo, está perante uma dependência patológica".
REFÉM DOS MEDICAMENTOS
Um quarto com almofada branca e lençóis com padrão de quadrados vermelhos e azuis. Uma janela com vista para um monte com cabras a pastar. Chão de tijoleira. Uma casa de banho com polibã, sanita e lavabos. É a recordação mais imediata que António (nome fictício), 27 anos, tem do seu primeiro internamento, há dez anos. Sofria de um transtorno obsessivo-compulsivo – uma predisposição genética, no seu caso – que se manifestou por via dos videojogos.
Aos nove anos refugiou-se nos jogos de computador para não enfrentar os colegas de escola que o maltratavam. "Os videojogos traziam-me a sensação de bem-estar. Custava-me a sociabilização com as outras crianças. Achava-me lento e pouco inteligente". Nunca desabafou com os pais. O tempo passou e António descobriu os jogos RPG. "Gostava da sensação de ter uma arma na mão e de matar. Encarar o jogo como sendo real aumentava a minha auto-estima porque tinha uma gratificação imediata. E como não tinha amigos, através do jogo podia conversar com outros jogadores".
O internamento durou quatro anos. António saiu de um ambiente protegido para o mundo real. Deixou de jogar compulsivamente, tirou a carta de condução e entrou para a universidade, para o curso de Comunicação Empresarial. Contudo, o seu bem-estar depende de medicação. E foi por isso que se seguiram mais dois internamentos, inclusive aquele onde se encontra hoje, na Villa Ramadas.
Para o director terapêutico da Villa Ramadas, Eduardo Silva, é fácil detectar uma pessoa dependente dos videojogos. "O principal sintoma é o isolamento. Mais do que uma dependência física – apesar de numa fase avançada também existirem sintomas desta natureza –, é uma adição comportamental. Do nosso ponto de vista, a adição ao jogo é vista apenas como o sintoma de algo mais profundo com o indivíduo a nível psicológico e emocional que, neste caso concreto, se manifesta através de um comportamento obsessivo-compulsivo, sendo esse o verdadeiro distúrbio que se procura corrigir".
Aos 16 anos, Miguel Romão pode orgulhar-se de conseguir jogar controladamente, sem se esquecer dos amigos, da família, da namorada e da escola. Mas não foi sempre assim. "Já aconteceu baixar as notas. Tudo começou no 5º ano. De aluno de 70-80% passei para 50%. Fiquei tão viciado em videojogos e qualquer um servia – ia a festas em casa de amigos e ficava o tempo todo a jogar na consola deles". Miguel começou a perder o contacto com os amigos. Se ao início eles o puxavam para brincar, depois foram desistindo. "Uma amiga chegou a dizer-me que eu parecia um viciado. E eu reagi mal, como costuma acontecer quando nos dizem uma verdade que nos magoa". Depois de alertado também pela mãe, o adolescente falou com os amigos, que o fizeram "acordar" para a realidade e a desfrutar dos videojogos apenas em lazer.
Os professores "não podem, nem devem, substituir a família", mas têm a "obrigação" de alertar para os casos que julguem ser de abuso de videojogos, explica uma docente de Lisboa (que pediu anonimato). Os sinais são simples: "desconcentração nas actividades; isolamento da vida social da escola; sono – muito sono; esquecimentos vários; desmotivação geral". Mas não é seguro que se trate de um problema com os videojogos.
"Às vezes corremos o risco de se tratar de outro problema e, como tal, temos de agir com prudência. Assim, o contacto com o encarregado de educação é vital, perguntando se este tem conhecimento das eventuais faltas – não só as de presença, mas todas as que ocorrem na vida escolar do aluno –, se está consciente de todas as rotinas do jovem, como é que ele se comporta em casa, se tem tido alterações comportamentais perante o agregado familiar" – conclui. Essa é também a opinião do psiquiatra Luís Patrício: "Quando se está em situação de risco – em início de criar um comportamento do qual possa advir a dependência – deve-se prevenir. Esta é a base da educação".
MARATONA DE QUATRO HORAS
Conhecido na internet por ‘Nonnux’, Nuno dos Santos, 36 anos, considera-se "um viciado funcional". Chega a "jogar uma média de quatro horas seguidas por dia". E se não trabalhar no dia seguinte, até ultrapassa essa marca. "Mas consigo conciliar esta minha paixão com a vida familiar e profissional. Nunca ponho o jogo à frente das minhas duas filhas nem do trabalho", garante. Por isso, joga sobretudo pela noite dentro.
Licenciado em Design Multimédia e web developer de profissão, Nuno é viciado em jogos de computador desde os 10 anos. De então para cá, "é raro passar um dia sem jogar", principalmente jogos on-line porque, justifica, "dá mais pica jogar contra outros seres humanos do que contra a máquina".
Gonçalo Lopes, 33 anos, também é informático. E partilha com Nuno a paixão pelos videojogos. É um ‘hardcore gamer’ (designação que se opõe aos jogadores convencionais). "Levei 97 horas a concluir o ‘Xenoblade Chronicles’. O jogo saiu a 16 de Agosto e eu terminei-o a 27 de Outubro – ainda os meus amigos vão no início". Vive sozinho e não tem namorada, de momento. Mas garante que não é anti-social. São casualidades da vida. E daqui também retira a vantagem de ser ele a gerir o seu orçamento. Por mês, gasta 100 euros na compra de 4-5 jogos. Só que aproxima-se a avalancha de novos jogos e já prepara 300 euros para as compras. "O Natal é mais complicado – especialmente o mês de Novembro, que é quando saem mais jogos novos. Eu devo estar interessado nuns 15. Mas, acredite, vão sair uns 50 interessantes".
Não são os jogos mais viciantes que lhe interessam, mas Gonçalo conhece bem alguns, como ‘World of Warcraft’, "que parece feito para ser uma droga on-line". E os jogos do Facebook como o ‘Farm Ville’, ‘City Ville’, ‘Mafia Wars’. "Nunca cometi a asneira de deixar de fazer algo para ficar a jogar".
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