Lesão medular recuperável

A neurocirurgia que está a virar a atenção do mundo médico para Portugal combate as lesões na coluna através do transplante de uma amostra de células do nariz para a zona da medula onde se deu a lesão. “Muito complexa”, é assim que Carlos Lima, líder da equipa do Hospital de Egas Moniz, define a intervenção.

27 de fevereiro de 2005 às 13:00
Lesão medular recuperável Foto: Luís Filipe Coito
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Vasco, 33 anos, prepara-se para começar os exercícios na máquina onde, através de um mecanismo robotizado, ensaia os passos que as pernas há muito deixaram de conseguir dar. Sentado na cadeira de rodas de que se tornou dependente há 15 anos, aguarda pela sua vez. Enquanto espera, com o olhar fixo no tapete rolante, à sua volta outros como ele – lesionados medulares – dedicam-se aos exercícios que se tornaram rotina diária. É assim de segunda a sábado, das nove da manhã às oito da noite, no Centro de Medicina de Reabilitação do Centro – Rovisco Pais (CMRC), na Tocha, Cantanhede.

Mas Vasco é diferente dos milhares de outros que, pelo País, vivem prisioneiros de uma lesão medular. Faz parte de um grupo restrito de pessoas submetidas a uma intervenção experimental única, realizada no nosso País por uma equipa de médicos nacionais no Hospital de Egas Moniz, em Lisboa. Uma cirurgia que levou o nome de Portugal às bocas do Mundo e aproximou a ciência cada vez mais do tão desejado ‘milagre’ que muitos aguardam.

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“RESULTADO ANIMADOR”

“Os resultados têm sido bastante animadores, embora tenhamos que ter em atenção que estamos a falar da estrutura mais complexa do universo”, explica Carlos Lima. “Não é a mesma coisa que mudar um cabo. E não se pense que é fazer uma operação hoje, de maneira a que o doente amanhã esteja a dançar ‘rock’n roll’. A natureza não funciona assim. Exige paciência, determinação, trabalho e tempo“, acrescenta.

Vasco sabe disso. Tem consciência que sair da cadeira de rodas a que vive pegado é um sonho que pode nunca tornar-se realidade. Privado da liberdade, mantém, no entanto, a esperança. “Desde a operação que noto várias mudanças. Podem ser coisas que não se vêem, mas eu sinto-as e isso significa muito”, afirma o jovem, paralisado desde os 18 anos na sequência de um acidente de tractor.

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No segundo ginásio, a azáfama é semelhante. Vítor, 37 anos, faz exercícios ao nível do equilíbrio e, ao mesmo tempo, estimulação eléctrica. Submetido ao auto transplante em Julho do ano passado, mostra-se decidido em mudar o destino traçado pelo acidente de viação que, há quase três anos, o deixou tetraplégico e apenas com alguns movimentos de cabeça e ombros. Mostra, orgulhoso, o resultado de um trabalho intenso de reabilitação, que dura há ano e meio. “Antes não conseguia mais do que encolher os ombros. Hoje, consigo levar o braço esquerdo acima da cabeça e tenho muito mais equilíbrio em termos de tronco.”

Conheceu pela primeira vez o tratamento do Egas Moniz através de uma notícia. “Depois, um enfermeiro especializado em reabilitação falou-me no assunto e acabei por vir para a Tocha”, conta. Não se arrepende de ter arriscado, de tal maneira que recomenda o tratamento a quem está na mesma situação, e até já conseguiu influenciar dois amigos, os próximos na lista da cirurgia.

CONTROLO DA BEXIGA

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Para os doentes, o trabalho começa muito antes do autotransplante. Depois da avaliação que determina se o lesionado medular é ou não candidato à intervenção, tem início um programa de reabilitação intensivo e profissional. Um trabalho duro, mas essencial. “O objectivo é repor o músculo, a mobilidade, as articulações, até termos a certeza que não há mais nada que possa ser recuperado”, explica Margarida Sizenando, directora de serviço do CMRC. Isto porque, segundo Carlos Lima, “se o músculo não estiver bom, em termos de recuperação de movimentos não serve de nada reparar a medula”.

Não há tempo limite para os tratamentos que têm lugar na Tocha. Eles podem ir desde os três meses, até um período indeterminado, “desde que o doente apresente evolução favorável. Quando já não evoluir mais, vai para casa e isso pode ser ao fim de um, dois, seis meses ou um ano”, afirma Margarida Sizenando.

Garantias de sucesso não as há e para lidar com as expectativas dos doentes, nada melhor, explica a directora de serviço, que “dizer sempre a verdade”. Mas a aposta num trabalho intenso tem dado os seus frutos. “Há os doentes que viram melhorada a sua força sensitiva e muitos conseguiram já recuperar o controlo da bexiga”, afirma Carlos Lima. Quanto à tão desejada recuperação motora, a libertação da cadeira de rodas, o médico não tem dúvidas. “Ela já é uma realidade. Temos doentes nos Estados Unidos que já se conseguem levantar sozinhos e estão a dar os primeiros passos.”

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INTERVENÇÃO INÉDITA NO MUNDO

Por enquanto, o autotransplante de células da mucosa olfactiva é uma intervenção que só se realiza em Portugal. Os responsáveis por esta novidade há muito que procuram a internacionalização, tarefa que não tem sido fácil. “É preciso uma equipa cirúrgica e de reabilitação de grande qualidade, o que é difícil de encontrar mesmo nos Estados Unidos. Depois, é também necessária uma autorização oficial”, explica Carlos Lima. Mas é por terras do Tio Sam que mais se fala na intervenção, até porque o Medical Center de Detroit é um dos parceiros envolvidos no projecto inovador. “Temos um protocolo de cooperação estabelecido, que tem corrido muito bem. Eles vieram cá ver doentes nossos e perceberam que havia melhorias muito importantes. A partir desse momento fizeram questão de trabalhar connosco a partir dos EUA e o que fazem é preparar os doentes que são operados cá em termos de reabilitação e de realização de testes”, refere.

O neurologista está satisfeito com os resultados obtidos, mas não esconde o tom de crítica em relação à indiferença com que as entidades oficiais têm tratado o projecto da sua equipa. “Este estudo só avança a partir do momento em que se começa a falar dele lá fora. Não tenho dúvidas nenhumas que se tivesse ficado nos limites de Portugal já tinha acabado há muito tempo. O grande apoio que temos vem do estrangeiro e não de cá. Por aqui, não atrapalhar é o mesmo que ajudar.”

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PARALISADOS COM UNIDADE ESPECIALIZADA

Falta ainda muito trabalho para que os cerca de 150 hectares do Centro de Medicina de Reabilitação do Centro – antiga leprosaria Rovisco Pais – se transformem no maior do género do País. Para o futuro, prevê-se que a capacidade aumente para 156 camas, assim como a construção de um conjunto de habitações adaptadas para deficientes, equipadas, como explica Margarida Sizenando, directora de serviço, “com todas as funcionalidades que permitam fazer o ensino aos doentes e familiares” e um sem-número de valências que o vão tornar único em Portugal. Entre elas conta-se uma unidade especializada de investigação e apoio à reabilitação dos lesionados medulares, que deve entrar em funcionamento no prazo de um ano. É hoje assinado o contrato e feita a consignação da empreitada que lhe vai dar origem.

Aqui, para além do internamento e reabilitação dos doentes com as lesões na medula, pretende-se ainda criar uma unidade destinada à investigação na área das lesões vertebro-medulares, com o desenvolvimento de novas aplicações tecnológicas, entre outros objectivos. Ao todo, a unidade vai dispor de 28 camas para internamento, várias estruturas de apoio à reabilitação, entre elas um ginásio terapêutico, salas de treino específico e diversos laboratórios.

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OS PRIMEIROS PASSOS NO CAMINHO DA CURA

Susan Rebecca Fajt, norte-americana, residente no Texas, ficou paralisada da cintura para baixo num acidente de viação em Novembro de 2001. Tinha então 24 anos: “O meu médico disse-me que não havia esperança”, afirmou num programa de televisão. Condenada a viver presa a uma cadeira de rodas, decidiu lutar e a busca pelo melhor centro de reabilitação levou-a a descobrir a intervenção experimental de Carlos Lima, do Hospital de Egas Moniz. Candidatou-se e foi uma das escolhidas para vir a Portugal.

“O dia em que fui aceite para o autotransplante foi o melhor da minha vida”, referiu no mesmo programa. Em Junho de 2003, Susan Fajt foi a 11.ª doente no Mundo e a terceira dos Estados Unidos, a ser submetida ao tratamento pioneiro. Semanas depois da intervenção regressou a casa e começou o árduo e longo trabalho de fisioterapia.

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Hoje, já consegue dar alguns passos com a ajuda de um andarilho e é, segundo Hasse Ferreira, um dos neurocirurgiões da equipa que a operou, um dos casos de maior sucesso. Exemplo de determinação, foi uma das doentes que aceitou testemunhar perante o Senado dos Estados Unidos, em defesa de uma intervenção que gostaria de ver feita no seu país, mas que aguarda ainda autorização das autoridades para avançar.

O QUE TÊM DE ESPECIAL AS CÉLULAS DO NARIZ?

O trabalho da equipa de Carlos Lima teve início há 15 anos. As primeiras experiências realizaram-se em cobaias, num trabalho que, segundo explica o neurologista, era em tudo idêntico ao que se faz agora nos humanos. “Ou seja, um transplante de mucosa olfactiva em lesões medulares.” E porquê células do nariz? “A mucosa olfactiva contém células que se renovam e formam novos neurónios durante toda a vida, mesmo no adulto, que é uma coisa que não existe em quase mais lado nenhum no sistema nervoso. Daí que podemos pensar em aproveitar esse potencial para reparar o sistema nervoso adulto, cuja capacidade de regeneração praticamente desaparece. Todos os dias estão a morrer células e não a crescer, excepto em pequenas áreas do cérebro ou no nariz.”

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Ao todo, mais de 40 pessoas, entre portugueses e estrangeiros, já foram submetidos ao auto-transplante. Mas esta é uma intervenção a que nem todos os lesionados medulares podem ser submetidos. “Os doentes têm que ter menos de 35 anos”, refere Carlos Lima. A boa forma muscular é também um condicionante, assim como o tamanho da lesão, que não pode exceder os três centímetros. “Para além disso, devem ser doentes completos, isto é, sem movimentos voluntários.”

ESPINAL MEDULA

A espinal medula, parte do sistema nervoso central, localiza-se na coluna vertebral e está ligada ao cérebro. É constituída por milhões de fibras nervosas que transmitem informação de e para os membros, tronco e órgãos do corpo. Quando nela ocorre uma lesão, dá-se uma interrupção parcial ou total, da ligação do cérebro com o resto do corpo. Quando mais acima se der a lesão na medula, maior a área do corpo atingida.

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ORIGENS DA LESÃO

Podem ser várias as origens da lesão medular. Ela pode ser traumática, resultante, por exemplo, de um acidente de viação ou de uma queda, e não traumática, como acontece com as situações causadas por tumores ou vírus, que podem dar origem a consequências como a perda de movimento, sensibilidade ou não funcionamento de diferentes órgãos.

NÍVEIS DIFERENTES

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A lesão medular pode ter dois níveis: tetraplegia, se afectar os membros inferiores e superiores e paraplegia, se afectar apenas os primeiros. Quando é completa, a lesão afecta totalmente a medula, não havendo qualquer movimento ou sensibilidade abaixo do nível da lesão. No caso de ser incompleta, afecta parcialmente a medula, podendo existir movimento e sensibilidade abaixo do nível da lesão.

NÚMEROS

Estima-se que 90 milhões de pessoas em todo o Mundo sofram de diferentes formas de lesões na espinal medula. Na Europa, há aproximadamente 300 mil paraplégicos, a maioria dos quais com cerca de 30 anos. E em dois terços dos casos, as causas para o problema residem nos acidentes de viação, seguidos de quedas.

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ASSOCIAÇÃO DE APOIO

Em Portugal, os Lesionados Medulares (LM) contam com o apoio da RODAR (presente na internet em www.rodar.org), uma associação de doentes que se juntou para tentar melhorar as condições dos LM no País. Além da promoção de investigação, pretende promover a reintegração social.

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