Fingiram ser um casal na clandestinidade, mas o amor falou mais alto e 50 anos depois continuam juntos
Em 1970, Armando e Mariana mal se conheciam quando foram viver na mesma casa. Três meses depois, a camaradagem transformou-se em amor.
Era uma mentira até deixar de o ser. Armando e Mariana viveram a sua história de amor enquanto lutavam pela liberdade. Comunistas e clandestinos, foram morar juntos no verão de 1970 e fingiram ser um casal para passarem despercebidos e poderem continuar a ter um papel ativo na oposição ao regime. Ao manterem um segredo comum, acabaram por se apaixonar. Juntos há mais de cinco décadas, recordam hoje, dos palcos às salas de aula, o Portugal que conheceram durante a juventude e os obstáculos que tiveram de enfrentar antes da chegada da democracia.
Mariana Oliveira foi clandestina praticamente desde que nasceu. Filha de funcionários do PCP e neta de um dos fundadores do partido comunista, cedo percebeu que queria fazer parte da luta. Com nove anos começou a ajudar os pais na tipografia do Avante, em Lisboa. Aprendeu a ler e a gostar de português com os jornais. Aos 15 anos, tornou-se militante. Já Armando Morais entrou no partido aos 18 anos. Vinha de uma família muito numerosa e sempre se preocupou com a injustiça social e com a pobreza. Acabou por "mergulhar na clandestinidade" quando a atividade política o deixou demasiado exposto. Foi procurado pela polícia e o seu rosto chegou a aparecer nos jornais e na televisão. Nessa altura, foi aconselhado por camaradas a juntar-se a Mariana e a fazer-se passar por seu marido.
No verão de 1970, quando ainda mal se conheciam, Armando e Mariana compraram alianças falsas e foram morar juntos. Ele desempenhava funções administrativas no partido, ela ficava por casa e ajudava a manter as aparências. Ao fim de três meses, já não era preciso fingir. A camaradagem que sentiam um pelo outro transformou-se em amor.
Uma vida subterrânea
Todos os cuidados eram poucos para quem vivia o dia a dia na clandestinidade. Identidades falsas, cartas simuladas e senhas para entrar em casa são alguns exemplos das práticas que tinham de cumprir. Para Armando e Mariana não foi diferente. A vida "não era normal", mas tinha de parecer para não levantar suspeitas.
Durante os quatro anos que estiveram juntos na clandestinidade, Armando e Mariana viveram em cinco casas e alguns quartos. Chegaram a estar apenas um mês num quarto por causa dos olhares mais desconfiados de uma vizinha. A casa onde moraram mais tempo ficava no bairro lisboeta de Campo de Ourique. Viveram nessa casa cerca de dois anos e meio e foi aí que viram a família aumentar. Tiveram dois filhos: o Sérgio e a Catarina.
Campo de Ourique teve de ficar para trás quando descobriram que já estavam a ser vigiados. A paragem seguinte foi a Amadora, onde tinham como vizinho um polícia de choque. Armando e Mariana estavam cientes de que a qualquer momento podiam ser presos, mas tinham de estar preparados para não denunciar camaradas.
Apesar de todos os percalços e receios, nunca chegaram a ser detidos nem precisaram de se separar dos filhos, que era a "sentença" da clandestinidade que mais temiam.
"Abril foi sair da pré-história"
Com o 25 de Abril, Armando e Mariana deixaram de "viver a preto e branco" e passaram "a viver a cores". Mariana voltou a usar o seu nome verdadeiro e "saiu da pré-história". Livre, conseguiu estudar e tirar o curso de Ciências da Comunicação. Armando nunca deixou de lutar pelos direitos dos trabalhadores e, ainda hoje, mantém atividade política.
A comemorar os 50 anos da revolução, Armando e Mariana afirmam que a luta do povo não terminou. Indignados com a miséria em que muitos vivem e com as condições dadas aos trabalhadores portugueses, dizem que "não foi para isto que se fez Abril". E sublinham que é importante estar alerta para que os ideais fascistas não regressem. "São ideias velhas que cheiram a mofo (...) É uma conversa muito perigosa. Nós vivemo-la, sofremos muito e agora não queremos. A luta continua e sempre continuará", reforça Mariana.
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