“Ainda hoje há coisas que não posso e não devo contar”: Vitorino em entrevista
“Quando estourou a revolução vinha de uma noitada. Fazer vida boémia na altura era uma forma de contestar o regime”.
Como era cantar e fazer música antes do 25 de Abril?
Era muito complicado. A censura não se preocupava só com os textos, mas até com o sentido estético das coisas. Só para se ter uma ideia, quando apareceram os Beatles, por exemplo, a polícia não gostava que os miúdos usassem cabelo à Beatles.
E como é que isso era reprimido?
Recordo-me, por exemplo, que os estudantes em Évora, nos anos 60, que tivessem o cabelo muito comprido, eram conduzidos para a sede da PIDE para o cortarem. Mas a repressão, que era fortíssima, acontecia em todas as formas de arte. Eu andei na escola Superior de Belas Artes de Lisboa aí uns 10 anos, e lembro-me de um professor de pintura, muito avançado para a época, que um dia nos mandou pintar umas telas à nossa vontade e que à noite desapareceram. O diretor mandou queimar tudo.
Mas era a música que mais assustava o regime. Porquê?
Porque a música é muito eficiente na forma como passa a sua mensagem. Por isso, a repressão era ainda mais violenta. Acho que isso começou a sentir-se mais a partir da primeira crise estudantil de 1962, quando, em Coimbra, nasceu uma música muito contestatária, de conteúdo social, com textos que não tinham nada a ver com o que se cantava até então. Era um movimento liderado por estudantes, com Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira à frente. Tudo isso era reprimidíssimo. Há um tempo histórico para contar as coisas e a verdade é que ainda há muitas delas que nos aconteceram antes do 25 de Abril, que não posso e não devo contar.
Porquê?
Porque ainda podem ser bastante corrosivas. Antes do 25 de Abril fui a muitas sessões clandestinas em casa de gente muito abastada no Ribatejo que ainda não devo revelar por respeito às famílias, mas era a única forma que tínhamos. Quando não se cantava clandestinamente, havia polícia à porta, com cães e cavalos. Eu, por exemplo, embora não tivesse editado nenhum disco antes do 25 de Abril, fui muitas vezes proibido de cantar com o Zeca Afonso.
Quando foi para Paris – onde encontrou o Sérgio Godinho e o José Mário Branco – foi para fugir à guerra, como muitos outros?
Não. Eu ainda cheguei a fazer a tropa, mas o facto é que acabei por não ser mobilizado. O meu irmão Janita, infelizmente, já não teve tanta sorte. Foi para a guerra e passou muito mal. Já eu, assim que percebi que não ia para o ultramar pirei-me logo. Eu queria era fugir de tudo. Era horrível. Vivia-se muito mal. Cheguei a Paris num momento fantástico. Por lá, andavam milhares de portugueses, e foi quando encontrei o José Mário Branco
e o Sérgio Godinho, entre outros. Faziam-se sessões fantásticas, inclusive em casas senhoriais. Até os padres gostavam dos portugueses e disponibilizavam-nos os seus espaços. Foi em Paris que experimentei pela primeira vez a liberdade total.
Onde estava quando estourou a revolução e como recebeu a noticia?
Vinha de uma noitada, porque fazer vida boémia era, na altura, uma forma de contestar o regime. Lembro-me que começámos a ver, no Terreiro do Paço, um movimento muito grande e a ouvir música militar nas rádios, o que era estranho. O nacional cançonetismo tinha desaparecido. Foi quando começámos a desconfiar. É curioso porque os primeiros comunicados, ainda muito tímidos, aconselhavam a ir para casa. Ora nós fizemos precisamente o contrário. Ninguém meteu os pés em casa durante oito dias.
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