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Nas últimas duas semanas, tenho referido que, para mim, o tribunal é uma fonte de aprendizagem constante.

Durante anos, leccionei na Universidade. Procurava ensinar e aprendia alguma coisa com a investigação.

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Como juiz, sou mais aluno do que professor.

Só no momento derradeiro, na leitura da sentença, é que dou a lição final.

Nem sempre o tempo de cadeia serve de lição. Mas isso é outra história...

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Durante os julgamentos, vou adquirindo novos conhecimentos.

"Comprei o automóvel a um cantilheiro, Senhor Dr. Juiz".

O arguido disse aquilo com a maior das naturalidades. Procurador, advogado, funcionário, assistência... ninguém mostrou estranheza.

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Eu tive de confessar a minha ignorância.

O homem era acusado de receptação: compra de um bem roubado.

Questionei-o:

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- Explique-me lá então o que é um cantilheiro.

- É um cantilheiro, Senhor Dr. Juiz – insistiu ele, como se fosse suposto eu saber perfeitamente o que significava a palavra.

Depois de eu tornar mais claro o meu desconhecimento, o arguido concretizou:

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- É um homem que não é cigano, mas é como se fosse. Não é de raça cigana, mas anda com eles e faz o mesmo que eles. Anda de um lado para o outro. Vende coisas e não tem poiso certo.

Mentalmente, estimei a realidade assim:

- Deve ser uma pessoa que não é de etnia cigana. Mas é nómada e vendedor ambulante. Convive com os de etnia cigana e adopta os respectivos costumes.

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Os polícias que inquiri como testemunhas conheciam perfeitamente o vocábulo "cantilheiro". Era exactamente aquilo. Pelos vistos, a expressão usava-se na comarca de província onde me encontrava colocado. Toda a gente a conhecia, menos eu.

Procurei em todos os dicionários ao meu alcance: o da Academia, o da Porto Editora, o Houaiss, o da Texto, o velho Torrinha, o Lello, o da Fluminense e, claro, o Aurélio.

Guardei a menção deste para o final, de modo a enxertar um aparte. O famoso Aurélio não é da autoria de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, como se pensa. Ele ficou célebre porque comprou o manuscrito redigido por um idoso académico necessitado, que se encontrava quase indigente. Aurélio deu depois o seu nome a uma obra que não foi concebida por ele.

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A verdade é que em nenhum dos dicionários figurava a palavra "cantilheiro".

Comecei a ficar preocupado. Afinal tantas pessoas sabiam o que aquilo significava, mas nenhum linguista incluíra o vocábulo no glossário.

Recorri ao 112 da língua portuguesa: o Ciberdúvidas da Internet. É um espaço interessantíssimo, onde qualquer um de nós pode colocar questões sobre o nosso idioma. Trata-se de uma importante herança deixada pelo malogrado João Carreira Bom.

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Respondeu-me um professor da Sociedade de Língua Portuguesa.

Também nunca tinha ouvido falar no termo. As suas pesquisas foram infrutíferas. Mas explicou que etimologicamente a palavra fazia sentido. Se é assim tão conhecida, temos de aceitá-la.

Há uns tempos, aprendi outra: "disco roubado".

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Não é nenhum CD furtado de uma loja. É um objecto utilizado por alguns camionistas.

Saberá o leitor do que se trata? Um dia falarei disso.

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