Foi um doente que acordou o Parlamento, substituindo a linguagem ritual dos Deputados.
No caso, aparentemente em vias de solução, dos doentes com hepatite C que aguardam pelo acesso a um medicamento que assegura a cura em mais de 90% dos casos, poder-se-á configurar, para além da responsabilidade política, um problema de responsabilidade penal quanto às situações passadas? Ao que se sabe, pelo menos uma doente esperou meses pelo medicamento, que não lhe foi ministrado, e acabou por morrer.
O problema político radica na posição de sujeição do Estado português perante uma empresa farmacêutica estrangeira que vende o medicamento a preços iníquos. A empresa dispõe do monopólio de um meio de cura, cuja cedência pode fazer depender de valores elevadíssimos, numa lógica de mercado. Gera-se, assim, um grave problema de direitos humanos, que deveria ser prioritário para as instituições europeias.
Havendo prescrição clínica, os próprios hospitais poderiam (e deveriam, numa lógica de direito de necessidade) ter passado por cima da burocracia e obtido diretamente o medicamento. Porém, a responsabilidade política
do Estado e dos seus agentes não se dissolve no contexto amplo da negociação com a empresa, pois é inaceitável fazer esperar pelo melhor preço doentes que carecem do medicamento com urgência.
Os entraves a que a doente falecida acedesse ao medicamento devem ser investigados pelo Ministério Público. Em última análise, a não diminuição do risco para a vida pode fundamentar um homicídio por omissão, provavelmente a título de negligência. A cadeia causal é complexa e difícil de apurar, mas quem teve o domínio do facto não pode invocar apenas uma transferência ou diluição das suas responsabilidades.
Porém, a raiz de um eventual problema penal é política e ética. É admissível que um Estado que consagra o estado de necessidade coloque os cidadãos em situações de extrema necessidade em que nada lhes pode exigir? Certo é que tanto a atuação do Governo como a resposta da oposição foram fracas. Foi um doente, com a força do desespero, que acordou o Parlamento, substituindo a linguagem ritual dos Deputados.