O Dr. Leo, rodeado de polícias, olha para o homem à sua frente e pergunta- -lhe o nome. Silêncio. O Dr. Leo avança para o detido, soltando palavrões de afrontamento. De repente, sente um punho na cara. Estatela-se. O prisioneiro havia feito o que ninguém ousara fazer até então: resistiu e atacou a murro. Levou porrada da grossa logo ali. Depois, durante anos, levou no corpo e no espírito, com toda a imaginação dos torcionários brasileiros – do "pau de arara" à "cadeira do dragão", da panóplia de choques eléctricos às agressões psicológicas. O Dr. Leo foi um dos maiores torturadores da ditadura brasileira, nos idos de 60 e 70. O resistente chama-se Alípio de Freitas, padre português de Bragança, revolucionário no Brasil, no México, em Cuba, em Angola e Moçambique. Alípio conheceu Pablo Neruda, "Che" Guevara, a Passionária e outras figuras da luta contra ditaduras. Mas conheceu sobretudo os camponeses dos nordestes de Portugal e do Brasil, os operários do Rio e São Paulo, os detidos de delito comum da Ilha Grande e de vários outros presídios brasileiros. Ele que conviveu na prisão com um dos fundadores do ‘Comando Vermelho’, William da Silva Lima, antes de o grupo se ter dedicado ao tráfico de droga. William, resistente à força, que ainda hoje fala de Alípio e da vida com uma profunda lucidez moral e política.
Alípio esteve preso entre 1970 e 1980. Foi dos presos políticos mais torturados de sempre. Mas sempre se virou aos seus torturadores, até que o obrigavam a desfalecer. No cárcere, a meio da década de 70, não imaginava sequer que Zeca Afonso lhe havia dedicado um poema/canção: "Baía de Guanabara/Santa Cruz na fortaleza/Está preso Alípio de Freitas/Homem de grande firmeza." Alípio é um mito. Mais do que isso: é um resistente sem medo. Melhor do que isso: está vivo e lúcido. Tem 87 anos e vive entre os Olivais lisboetas e o Alvito alentejano. Incomoda-o ter perdido a visão ocular, mas chateia-o muito mais o medo que se instalou em muitas cabeças de Portugal e do Brasil. No último domingo, na RTP 2, foi apresentado o documentário "A Causa e a Sombra", de Tiago Afonso, sobre Alípio de Freitas. Documento histórico, 95 minutos que ajudam a que se escreva e perceba a História. Segundo as audiências, umas 50 mil pessoas viram o documentário. Porque a vida vai escorrendo assim, algures por entre os futebóis e as novelas, a esmagadora maioria dos espectadores, quase 3 milhões, estava a ver ‘A Quinta’, a novela ‘Poderosas’ ou os duvidosos talentos de ‘The Voice Portugal’.
Quem se ficou por entre as causas e as sombras terá percebido que Alípio, quase cego, ainda consegue ver muito longe. Alípio, que sentiu na pele que o medo, ao invés do que muitos pensam, raramente é bom conselheiro.
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