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Victor Bandarra

A importância de se chamar Fernandes

Enervado, solta palavrão dos antigos, em bom vernáculo português.

Victor Bandarra 11 de Junho de 2017 às 00:30
J. Fernandes nasceu em Goa, filho de mãe goesa, católica ferrenha. O pai Fernandes, goês de origem brâmane, sempre cumpriu preceitos cristãos, mas nunca esqueceu a cultura, os deuses e os rituais hindus. Tal como os seus antepassados de Quinhentos, considerava o europeu reinól um tipo violento, inculto e nada subtil. Mas sempre assumiu o seu Fernandes lusitano com o devido, embora contido, orgulho.

Os apelidos mais comuns em Goa são Fernandes e Sousa. Depois, uma miríade de apelidos que vêm dos tempos de Albuquerque - Álvares, Mascarenhas, Costa, Silva, Colaço. Em 1961, o jovem estudante J. Fernandes apanha em cheio com a retoma do "Estado português da Índia" pela União Indiana.

Despede- -se dos pais e faz-se ao Mundo. Primeiro Londres, onde tem primos, depois Beirute, onde vivem outros primos. Passa por Lisboa, onde tem tios e primos, trata do passaporte português e volta a Londres. Estuda engenharia mecânica, volta à Índia, trata do passaporte local e regressa a Londres. Um dia, nos anos 70, um palestiniano emigrante desafia-o a ir trabalhar para Doha, no Qatar. J. Fernandes vai e sente o conforto de bom dinheirinho no bolso. Descobre que muitos indianos, palestinianos e até portugueses trabalham no pequeno reino do Golfo (mais de 90% dos 2,4 milhões de habitantes são estrangeiros). No país da TV Al-Jazeera, dominado pela família Al-Thani desde o século XIX, petróleo e gás natural fazem dos 250 mil autóctones pequenos reizinhos que não pagam nem um tostão de impostos. J. Fernandes instala-se e vem a casar com uma palestiniana de formação islâmica (ai se os pais fossem vivos!), de quem tem vários filhos. J. Fernandes aprende que o Qatar, em 1515, chegou a ser controlado por el-rei D. Manuel I de Portugal. Não se falava então em petróleo, antes nas afamadas pérolas do Qatar. Mas isso é História, com estórias dentro...

Na semana passada, após os atentados em Inglaterra, J. Fernandes surpreende-se: vários países árabes cortam relações com o seu Qatar, por suspeitas de apoio ao terrorismo. Dias depois, parte com a mulher para Londres. Outra surpresa: são chamados para interrogatório severo no aeroporto de Heathrow. Azar tremendo: o passaporte português está caducado, só o indiano é válido. O funcionário insiste em perguntas que baralham o casal. J.

Fernandes gagueja no seu inglês. Enervado, solta palavrão dos antigos, em bom vernáculo português. Um outro funcionário dá um salto. "Fala português?" J. Fernandes atira-lhe com o passaporte caducado. "Tem piada, carago! Eu também sou Fernandes! Sou do Porto..." J. Fernandes levanta as mãos aos Céus. E, por indicação do tripeiro Fernandes, acaba a jantar uma bacalhauzada num restaurante português no Soho.

Texto escrito na antiga ortografia
Fernandes Manuel I de Portugal História
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