Em vida, Velho Flores foi um “rei dos ciganos”, assim cognominado pelos “gadjos”, os não-ciganos.
Em vida, Velho Flores foi um "rei dos ciganos", assim cognominado pelos "gadjos", os não-ciganos. Ele era (apenas) um patriarca de família, a quem era devido respeito e deferência, além de medo, em situações extremas. Sábio, de longas barbas, comerciante de sapatos, amante de música, de dança e de viagens, ainda que a sua família há muito tivesse abandonado o nomadismo. Ciente de que nunca os seus irmãos de raça, nem ele, conseguiriam cumprir horários das oito-às-cinco, Velho Flores fomentou a arte-de-bem-comerciar-em-toda-a-feira, e assim alimentou o clã. Velho Flores desconfiava tanto dos "gadjos" como os "gadjos" desconfiavam dele. Mas a ideia de que palavra de cigano não vale um tostão era contrariada por muitos "gadjos": palavra de Velho Flores era palavra dada. ("Gadjo" é o termo cigano para designar os estranhos; nos tempos antigos, "gadjó" era simplesmente a pessoa sedentária, o contrário do nómada). Velho Flores conquistou respeito na comunidade dos "gadjos" da Grande Lisboa. Fechava os olhos a pecados e pecadilhos da sua gente, só não alinhava no tráfico de droga. Autarcas e polícias, comerciantes e proprietários, todos lhe pediam conselho e ajuda - ora para não serem enganados, ora para recuperarem alguns haveres surripiados pelos membros do clã. Velho Flores repetia à exaustão argumentos contra a mais antiga ideia feita sobre os ciganos. "O cigano detesta zaragatas! Só arranja confusão quando se metem com a família ou com as crianças!" E cofiava a barba. "O pior é que andamos sempre à bulha entre nós..."
O candidato a autarca André Ventura, corajoso no senso comum, meteu-se com os ciganos em declarações, infelizes e xenófobas, sobre os subsídios à comunidade. Disse em voz alta o que muitos pensam e dizem à boca pequena. Até Velho Flores, à sua maneira, lhe daria razão. "O cigano é tramado: aproveita--se logo... " Há quem desconfie que Ventura já ganhou votos. Na verdade, o conhecimento do português comum sobre os seus compatriotas ciganos só é comparável ao profundo desconhecimento que há sobre a História daquele Povo. A origem da cultura cigana perde--se nos confins do Rajastão, no Norte da Índia. Vários grupos vieram para a Europa há muitos séculos. Para se distinguirem, usam os nomes dos vários clãs - "rom", "manus", "calé", "sinti". "Rom" e "manus", de origem indiana, significam "homens livres". Sempre os ciganos tentaram fugir a guerras e confusões e, talvez por isso, sempre foram escorraçados e perseguidos. Velho Flores, mais por intuição, sabia de tudo isto. E sabia que muitos da sua gente não eram propriamente flores-de- -cheiro. Já velhinho, era consultado amiúde pelos "gadjos". Metiam-lhe "cunhas" para isto e para aquilo. Pouco antes de morrer, acabou por confessar. "A droga está a matar os ciganos!" Mas como, Velho Flores? "Começaram no tráfico e acabaram agarrados!" Andava triste, muito triste. "Já não respeitam ninguém! Nem pai, nem mãe, nem rei…"
antiga ortografia