Vivo no Saldanha há mais de dez anos. Percebo que outros bairros de Lisboa tenham mais ‘pedigree’. Mas o Saldanha, para um viciado no caos físico e existencial das cidades, é a minha Disneylândia.
Como resistir ao único canto da capital que parece mesmo uma capital, com o seu vasto cortejo de restaurantes, livrarias, cinemas, antros noctívagos e, para um hipocondríaco profissional, várias farmácias e até um hospital (particular)? Sem falar da fauna que habita o espaço: lolitas, balzaquianas, velhas matronas; hippies, yuppies, mendigos diversos; e o ocasional excêntrico, que já faz parte da paisagem, como a estátua do duque que aponta para o marquês. Um desses excêntricos morreu há dias.
Chamava-se João Serra, tinha por hábito acenar aos carros e os carros, divertidos e agradecidos, acenavam-lhe de volta. Uma forma de amaciar a solidão, dizia ele, que assim amaciava a nossa: encontrá-lo era uma secreta alegria; uma suspensão da realidade; um toque de irrisão na rotina das rotinas. É por isso que, hoje, não há coluna sobre as misérias da política. Pausa. O momento pede um último adeus ao fantasma do Saldanha.