Lei contra burcas quer criar "estigma" contra muçulmanos em vez de resolver problema, diz investigador

PSD, IL e CDS-PP aprovaram na semana passada, na generalidade, o projeto de lei do Chega que visa proibir a utilização de burca em espaços públicos, invocando os direitos das mulheres e questões de segurança.

25 de outubro de 2025 às 08:10
Burca Foto: DR
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O investigador Paulo Mendes Pinto considera que quem promove a lei da proibição da burca quer criar um "estigma contra a comunidade muçulmana" e defende que é mais eficaz envolver as lideranças islâmicas na luta pela dignidade da mulher.

Em entrevista à Lusa, o especialista em ciência das religiões considera que a lei que visa proibir a ocultação do rosto em espaços públicos, através do uso de burcas ou outro tipo de vestuário, tem um "objetivo propositado, que é lançar todo um estigma para cima de uma comunidade" religiosa.

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"Está a cavalgar-se uma onda de alarmismo, uma onda de islamofobia em que este é o argumento perfeito para se ter colocado esta questão na ordem do dia durante uma, duas, três semanas e atrás disso, na prática, se criar em termos de cultura popular, uma visão cada vez mais negativa em torno das questões da imigração", o verdadeiro objetivo da lei, avisou Paulo Mendes Pinto.

PSD, IL e CDS-PP aprovaram na semana passada, na generalidade, o projeto de lei do Chega que visa proibir a utilização de burca em espaços públicos, invocando os direitos das mulheres e questões de segurança.

"O número de mulheres na cidade de Lisboa que usa burca é muito reduzido, não faço ideia se preenche os dedos de uma mão ou mais", mas é "uma percentagem ínfima" e "estatisticamente desprezível se comparada com a totalidade das muçulmanas que existem nesta cidade", considerou o investigador de cultura islâmica e judaica, que entende o argumento da dignidade da mulher, mas defende que o caminho deve ser outro.

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"Mais do que apenas umas notícias ou uns 'likes'", é necessário pensar pedagogicamente como é que se mudam as mentalidades", disse o investigador, recordando que o uso de véu sobre o rosto ou de burca não são elementos corânicos, mas sim típicos de algumas zonas do globo, onde se usa este tipo de adereços muito antes do islamismo.

"Se não é uma prática em termos de crença de fé, se não é uma prática central islâmica, se é uma questão cultural, o que é que nós podemos fazer de facto para mudar comportamentos?" -- questionou Paulo Mendes Pinto.

A solução, defendeu, é envolver os "líderes religiosos", como foi feito noutros temas, como a excisão genital feminina e "ter os imãs a trabalhar do lado da cidadania, da dignidade e a dizerem às suas comunidades que não devem impor isso à mulher".

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"Se calhar, era muito mais eficaz ter um bom programa, com boas formações com as lideranças islâmicas, em vez de escrever uma lei que inevitavelmente só vai resultar numa coisa: se já vinham pouco à rua, as mulheres que usam burca agora vão ficar completamente em casa", salientou Paulo Mendes Pinto.

O docente da Universidade Lusófona compreende a oportunidade deste debate, considerando a discussão sobre o uso de burca ou 'niqab' "extemporânea" e "natural", ao mesmo tempo.

O tema tem sido debatido em outros países europeus onde o problema da integração de algumas comunidades islâmicas tem sido muito mais evidente - como é o caso de França, que aprovou uma lei semelhante -, mas "Portugal não tem esta prática de forma significativa".

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"É uma discussão que tem uma dimensão mediática muitíssimo superior à realidade social, à qual ela supostamente dá resposta. A nova lei é proposta por um partido que fala na dignidade da mulher, quando sabemos que, em muitas outras políticas, a questão da dignidade da mulher não é propriamente aquilo que está na sua agenda política", afirmou o investigador.

O que está subjacente a esta lei, defendeu Paulo Mendes Pinto, não é a preocupação com a dignidade da mulher ou questões de segurança, mas sim o "medo de uma invasão islâmica" através da imigração, "travestido com um argumento que ninguém pode ir contra", porque o uso de burca ou 'niqab' agride a história europeia desde o Renascimento, assente "na questão das liberdades individuais", em que a "dimensão de reconhecimento do rosto também tem o seu lado fundamental".

"Portanto, para nós, culturalmente enquanto Ocidente, a questão de andar com o rosto destapado é algo fundamental", salientou o investigador, considerando que cabe ao legislador avaliar se se trata de uma "liberdade acima de todas as outras ou não", incluindo a "questão cultural e identitária legítima" de usar burca ou 'niqab'.

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"Nós vivemos no campo das representações e não da verdade" e a "verdade é aquilo que mediaticamente se quer que seja", acrescentou ainda Paulo Mendes Pinto.

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