"Estamos perante um aproveitamento da ignorância e fraca literacia em saúde, como já foi feito quando surgiu a sida em África, há 30 anos", afirma Aranda da Silva.
Especialistas em farmacologia consideram que as alegadas propriedades curativas de um chá de Madagáscar contra a covid-19 refletem o "aproveitamento da ignorância", que também aconteceu quando surgiu a sida, e alertam para os riscos da ingestão destes produtos.
"Estamos perante um aproveitamento da ignorância e fraca literacia em saúde, como já foi feito quando surgiu a sida em África, há 30 anos", afirmou à Lusa o antigo bastonário da Ordem dos Farmacêuticos e primeiro presidente do Infarmed, Aranda da Silva.
O "Covid-Organics" é uma bebida feita a partir de artemísia, uma planta descoberta pelos chineses que é utilizada no tratamento da malária, e ervas de Madagáscar, país onde a flora conta com 12 mil espécies de plantas.
Madagáscar notificou, desde o início da pandemia, 149 casos de covid-19, sem registo de mortes, tendo 99 doentes sido dados como recuperados.
O Presidente de Madagáscar, Andry Rajoelina, bebeu e elogiou as alegadas virtudes curativas e preventivas deste produto contra a covid-19, o qual está a ser administrado à população e já foi exportado pelo menos para a Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Níger e Tanzânia.
A artemísia é também um dos quatro produtos que compõem um xarope de plantas tradicionais que o presidente da Associação de Medicina Tradicional de São Tomé e Príncipe anunciou recentemente como tendo capacidades medicinais contra os sintomas da covid-19.
Queguê, artemísia, quiabo e quina são os componentes deste xarope com alegadas capacidades antivirais, contra o paludismo, a bronquite, a tosse, as dores de cabeça e outros males.
Especialista em indústria farmacêutica, farmácia hospitalar e em registo e regulamentação farmacêutica, Aranda da Silva alerta para as "graves consequências para a saúde pública" e para a criação de "falsas expectativas, induzindo a utilização de substâncias cuja eficácia e segurança não estão comprovadas".
A própria Organização Mundial da Saúde (OMS), recordou, já se pronunciou sobre este assunto, afirmando que não existe qualquer prova de cura da covid-19 e aconselhando as pessoas a que não se automediquem.
"Não existem atalhos", declarou o diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
Por seu lado, a União Africana (UA) anunciou que pretende obter os dados técnicos relativos à segurança e eficácia do "Covid-Organics" e que tem mantido conversações com Madagáscar nesse sentido.
O especialista em Farmacologia António Vaz Carneiro, que dirige o Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência (CEBE) da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, disse à Lusa que nas épocas de pandemia, como a da covid-19, surgem sempre "as coisas mais incríveis e fantásticas" que depois se revelam ineficazes.
"Isto cria uma esperança cruel aos doentes", afirmou o médico.
Para António Vaz Carneiro, independentemente do agente a combater e da urgência que uma pandemia exige, "os princípios científicos, técnicos e éticos têm de se aplicar sempre".
O que exige ensaios clínicos, os únicos que garantem um efetivo estudo dos benefícios e riscos de qualquer intervenção, seja ela medicamentosa ou cirúrgica.
"Todas as intervenções têm riscos. É importante avaliar o risco, para avaliar os vários fatores, nomeadamente os efeitos da toxicidade", disse.
Relativamente ao "Covid-Organics", António Vaz Carneiro sublinha: "Seja qual for a composição do chá, as metodologias têm de ser as mesmas".
E recorda que, nestas alturas, aparecem sempre pessoas a anunciarem "um conjunto de coisas incríveis".
"Tem havido exemplos na história clínica de produtos que mataram doentes", disse, sublinhando: "Os doentes que se disponibilizam [para os ensaios clínicos] são os heróis de toda esta história e merecem a nossa consideração".
O teste destes produtos começa sempre no modelo animal, depois na primeira fase clínica em humanos sem doença, depois com alguma doença e por fim em milhares de doentes com essa doença.
Atualmente, não existem medicamentos autorizados para o tratamento da covid-19, mas apenas algumas moléculas que são apontadas como possíveis candidatos terapêuticos.
Trata-se da "recolocação de medicamentos", no âmbito da qual está a ser avaliado o potencial terapêutico contra a covid-19 de vários fármacos, como a cloroquina e hidroxicloroquina, medicamentos autorizados para a malária, artrite e lúpus.
Também a associação de lopinavir/ritonavir (autorizada para o tratamento do VIH) está a ser analisada.
O Remdesivir, medicamento desenvolvido contra o vírus Ébola, é considerado uma das moléculas mais promissoras no tratamento do novo coronavírus, devido ao seu largo espetro antiviral.
António Vaz Carneiro identifica uma ligação entre a pobreza e este tipo de anúncios de curas "milagrosas".
"Nesses países, onde não há sistemas de saúde como os nossos, estruturados, avaliados, geridos, o que acontece é que há uma enorme diferença de tratamento", disse.
E avança: "Nós nem sequer sabemos quantos infetados existem nesses países, porque aí o que mata é a malária, a tuberculose, e ninguém parece interessado em encontrar medicamentos que tratem a malária porque ela ataca mais os países pobres".
A malária mata uma criança a cada dois minutos. "Para a população que é afetada por doenças com esta letalidade, o 'corona' nem vai ser assim uma coisa muito grave...".
E recordou que esta tentação pelos medicamentos à base de plantas é ancestral.
"Os chás sempre existiram. Durante séculos foram o que existia, uma vez que os medicamentos sintéticos só apareceram no século XIX", recordou.
Aliás, os primeiros medicamentos eram plantas, mas como as suas substâncias ativas eram muito limitadas, passaram a ser sintetizadas quimicamente. O passo seguinte foram os medicamentos biológicos, criados em linhas celulares vivas e que continuam atualmente a ser objeto de investigação.
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