Em 1977 foi uma bomba em Portugal. Depois do charme de Sónia Braga, nada ficou igual. Na moda, na linguagem, na forma de amar. A primeira novela brasileira em Portugal está de regresso a casa dos portugueses. Todas as tardes, na SIC, às 17h30…
E uma história imortal! Passados 27 anos, ninguém que tenha visto a primeira telenovela exibida em Portugal se esqueceu da envolvente história de amor vivida entre a bela, ingénua e analfabeta Gabriela (interpretada por Sónia Braga) e o seu desajeitado patrão de origem libanesa, Seu Nacib (Armando Bógus). Mas não foi só o amor que falou mais alto. Há quem não se esqueça igualmente do confronto, na cidade de Ilhéus, entre os poderosos e retrógrados senhores da terra do cacau, liderados pelo Coronel Ramiro Bastos (Paulo Gracindo), e os interesses emergentes das gentes ligadas ao comércio e às profissões liberais, que tinham no advogado Mundinho Falcão (José Wilker) um esclarecido defensor.
Esta telenovela, baseada no romance ‘Gabriela, Cravo e Canela’, escrita pelo imortal Jorge Amado, e que a SIC vai repor a partir da próxima segunda-feira, deixou marcas indeléveis na sociedade portuguesa. Realizada em 1975 por Walter Avancini, constituiu um enorme êxito em Portugal, traduzido em grandes audiências, na adopção de nomes e de palavras usadas no Brasil, assim como de novas formas de relacionamento social e de comportamento.
O actor Rui Mendes afirma à Correio TV que esta obra “foi importante na mudança operada na mentalidade do telespectador, proporcionando uma maior abertura, que se reflectiu na generalidade da população portuguesa”. A questão não se resume ao hábito criado de, a partir de então, exibir novelas em horário nobre, o que só veio a assumir carácter absorvente nos anos 90, quando a SIC passou a transmitir os folhetins televisivos da Globo, e, a partir de 2000, com a exploração do correspondente filão português pela TVI.
UMA QUESTÃO DE MODA
Apesar de reproduzir um estilo antiquado (anos 20), o corte de cabelo da personagem Malvina (Elizabeth Savalla) passou a ser visto com alguma frequência nalgumas cidades portuguesas, assumindo um toque de modernidade e inconformismo. “Havia então da nossa parte [Portugal] muita receptividade para tudo o que fosse novo, designadamente nos costumes e hábitos”, sublinha a política e linguista Edite Estrela. Três anos antes, o nosso país tinha saído de um longo período de ditadura que tinha deixado marcas redutoras, designadamente nos domínios da cultura, da convivência, da moral e da própria moda. “Vivíamos, em 1977, uma conjuntura muito especial, que potenciou os efeitos inovadores da telenovela, o que contribuiu para a assimilação do que era diferente e especial”, sublinha Edite Estrela, hoje deputada ao Parlamento Europeu.
Com ‘Gabriela’ aconteceu algo que já se havia registado em 1969 com ‘Zip Zip’, o primeiro ‘talk--show’ exibido em Portugal: as ruas despovoavam-se na hora das transmissões. Para isso contribuiu o facto de a telenovela a que coube o mérito de estrear o género em Portugal ser um produto de grande qualidade. O historiador e comunicador televisivo José Hermano Saraiva sublinha o facto de o romance em que o argumento se baseia ser da autoria de Jorge Amado, “que já nessa altura era um escritor predilecto da língua portuguesa, a quem não deram o Nobel da Literatura apenas por razões políticas”.
NOVA LINGUAGEM
Com ‘Gabriela’, alguns termos e expressões características dos brasileiros começaram a entrar no português que se fala em Portugal. Edite Estrela, que sublinha o reconhecimento “da existência de um português mais melódico, de mais fácil compreensão para um estrangeiro, que se fala no outro lado do Atlântico”, destaca também a vantagem “da descoberta de alguns termos que tinham caído em desuso em Portugal, mas que ainda eram utilizados no Brasil.” Foi o caso da forma de saudação ‘inté’ (até logo).
Simone Oliveira, por seu turno, considera que com ‘Gabriela’ “abrasileirámos um pouco a nossa forma de falar”, o que não lhe suscita críticas. Afirma, também, que “esta telenovela extraordinária, realizada com um grau de qualidade que não foi posteriormente prosseguido, teve outros efeitos na sociedade portuguesa”. No entender desta cantora, actriz e apresentadora televisiva, “os brasileiros quando amam, amam, e quando têm de dizer as coisas dizem, o que contrasta connosco, que fazemos de conta”. Dessa forma, a exibição de ‘Gabriela’ em 1977 terá constituído, para Simone de Oliveira, “uma boa amostragem de como é possível libertarmo-nos de preconceitos que cultivávamos na altura e que cultivamos ainda hoje”.
As interpretações de Sónia Braga, Paulo Gracindo, Roberto Bonfim (Chico Chicão), Eloísa Mafalda (Maria Machadão), Nívea Maria (Jerusa), Elizabeth Savalla, Fúlvio Stefanini (Tonico Bastos) e José Wilker, entre outros, eram muito admiradas pelo público português. Apesar de se considerar um artista “pouco interessado em televisão e no género novelístico, embora esteja atento e procure espreitar tudo o que aparece”, o actor Rui Mendes, que se celebrizou nos anos 80 como protagonista da série ‘Duarte e Companhia’ (RTP), e que vimos mais recentemente em ‘O Olhar da Serpente’ (SIC) e ‘Olá Pai’ (TVI), considera que ‘Gabriela’ “era uma telenovela muito bem representada”. Simone de Oliveira diz mesmo que “as interpretações eram extraordinárias”, acentuando que deu nas vistas “a naturalidade com que os actores brasileiros se apresentavam na TV”, contrastando com os portugueses que, no entanto, “ainda hoje são melhores do que os brasileiros em teatro, exceptuando o Paulo Autran e a Fernanda Montenegro”. Y
NOVOS HÁBITOS
A telenovela ‘Gabriela’ foi comprada em 1976 por Carlos Cruz, quando este desempenhava as funções de director de programação da RTP, mas a estreia de exibição, em 16 de Maio de 1977, ocorreu já sob o mandato de José Nisa.
A proposta partira da própria produtora,
a Globo, e foi transmitida a Carlos Cruz pelo então presidente da RTP, Pedroso Marques. Este género televisivo era totalmente desconhecido entre nós, assim como dos outros países europeus, cujas estações constituíam, à época, monopólio estatal, ao contrário do que acontecia nas Américas.
O historiador José Hermano Saraiva conta à Correio TV que, quando exerceu as funções de embaixador de Portugal no Brasil (1972-74), detectou a novidade. “No Brasil passavam telenovelas admiráveis, como ‘O Bem Amado’ (1973), que eu vi
e que me levou a fazer algumas diligências para que a nossa TV as passasse cá”, afirma. O apresentador de ‘A Alma e a Gente’ (RTP) sublinha que a sua iniciativa foi motivada pelo facto de ter constatado que “as telenovelas brasileiras eram extraordinárias obras de arte e de poderem representar para os portugueses um importante meio de se habituarem à pronúncia brasileira”. Em seu entender, ‘Gabriela’ e outras telenovelas que se seguiram “tiveram como principal efeito o recrudescimento do interesse do público pela TV”.
Também por efeito desta exibição, os romances de Jorge Amado passaram a ser mais lidos em Portugal, com destaque para ‘Gabriela Cravo e Canela’ que nesse mesmo ano de 1977 foi a obra mais vendida na edição da Feira do Livro de Lisboa. A qualidade e o poder de atracção da obra eram tais que o próprio primeiro-ministro de então, Mário Soares, e alguns ministros foram então objecto de notícias que reportavam a alteração, numa ou noutra circunstância, dos horários de exercício das respectivas funções, para poderem desfrutar este ou aquele episódio da original narrativa de Jorge Amado.
O OLHAR DE LAURO ANTÓNIO
O aparecimento da telenovela ‘Gabriela’ em Portugal foi um acontecimento único, a vários níveis. Desde logo, porque marcou a estreia do formato telenovela diária nos ecrãs portugueses. Depois porque, sendo uma obra adaptada de um romance de Jorge Amado, garantia à partida uma qualidade e interesse acima da média (não o sabíamos nessa altura, mas viemos a confirmá-lo posteriormente: ‘Gabriela’ foi, se não a melhor, uma das melhores telenovelas produzidas no Brasil). Depois, tanto criadores e técnicos, a começar pelo realizador Walter Avancini, como o elenco, eram de primeiríssima grandeza, com Sónia Braga, José Wilker, Armando Bógus, Dina Sfat, Paulo César Pereio, Paulo Gracindo, Ary Fontoura, e tantos outros, em plena forma e carreiras ascensionais.
Era uma delícia descobrir estes actores e vê-los trabalhar com o sabor de uma língua portuguesa recriada, reinventada. A história era magnífica, a forma como as situações se multiplicavam e se entrechocavam num modelo criativo brilhante, os cenários naturais espantosos, descobrindo-nos, a nós portugueses, uma cultura e uma civilização irmãs, onde nos víamos igualmente reflectidos com nitidez.
Portugal parava diariamente à hora da telenovela, o parlamento fechou mais cedo nos derradeiros dias da sua exibição, todos os programas se organizavam em redor do episódio do dia – não era alienação colectiva, era apenas o sedutor poder do espectáculo no seu melhor. A sociedade portuguesa transformou-se obviamente assistindo a esta obra: adoptou o sotaque brasileiro como segunda língua, adoptou as actrizes e os actores brasileiros como vedetas indispensáveis em qualquer festejo fraterno, adoptou usos e costumes, expressões idiomáticas, e começou a rebolar a bunda ao som do samba. Calmamente. Ao ritmo nacional.
Depois, houve algumas outras telenovelas que quase roçaram o céu (estou a lembrar-me por exemplo de ‘Roque Santeiro’), mas o milagre não voltou a surtir o mesmo efeito. ‘Gabriela’ foi o estado de graça irrepetível. Como será revê-la, hoje em dia, quase trinta anos depois? Certamente um prazer, mas não um prazer igual ao primeiro. Saravah!
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