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UM PAÍS COM MEMÓRIA

Não é um número redondo, é certo, daqueles que os jornalistas adoram para fazer balanços. São 47 anos. Mas surgem numa altura em que o monstro adormecido está a acordar. Num ano em que recupera a identidade. Num mês em que ganha uma nova casa. Sem esquecer o passado, sem perder a memória. Embarque connosco nesta viagem ao baú das recordações...

06 de março de 2004 às 00:00

Todas as histórias têm sempre um princípio. A da Radiotelevisão Portuguesa começou a 15 de Dezembro de 1955, quando por iniciativa do Governo da República, é formada a RTP, com um capital social de 60 mil contos. Foram necessários nove meses para as primeiras emissões experimentais, que levaram centenas de portugueses curiosos ao recinto da Feira Popular, em Palhavã. Estávamos a 4 de Setembro de 1956 e Raul Feio de Maria Armanda Falcão eram os primeiros rostos da televisão em Portugal.

A data oficial, a que ficaria para a história e que se comemora amanhã, domingo, é 7 de Março de 1957. Nesse dia deu-se início às emissões regulares da RTP, difundidas dos estúdios do Lumiar através de um pequeno emissor em Monsanto.

Ao longo de 47 anos foram vários os momentos marcantes na história da RTP e na de Portugal. Aliás, ambas se confundem e se entrecruzam. Datas ímpares que contam a evolução do audiovisual português. Por exemplo, façamos um teste: sabe o leitor qual o primeiro filme português exibido na televisão? Pois, não sabe. Foi ‘Fado, Histórias de uma Cantadeira’, a 13 de Março de 1957, um filme realizado por Perdigão Queiroga e tendo Amália Rodrigues e Virgílio Teixeira como protagonistas.

O ano de 1957 marca o surgimento no pequeno ecrã de alguns dos maiores comunicadores da nossa praça. É nesta altura que Maria de Lourdes Modesto dá início aos seus programas de culinária e é a 5 de Abril que arranca o primeiro concurso de televisão em Portugal. ‘Quem Sabe, Sabe’ era o nome do formato, apresentado por Artur Agostinho.

“Lembro-me muito bem do concurso, que nasceu do ‘Veja Se Adivinha’, uma rubrica que fez muito sucesso na altura. Na altura, era tudo feito em directo e muito problemático, numa época em que havia censura. Era uma grande responsabilidade”, recorda o apresentador, ainda hoje no activo, na faceta de actor.

Artur Agostinho lembra ainda a complexidade de alguns concorrentes, pouco habituados à mecânica dos concursos. “Uma vez perguntei a um jogador quantos cantos tinha os ‘Lusíadas’. Ele respondeu-me ‘quatro’, eu disse-lhe que a resposta estava errada e passei para outro concorrente. Só que ele barafustou tanto, que eu tive de voltar atrás e perguntei-lhe: ‘Ouça lá, mas porque é que está a protestar? 'O senhor disse-me que os ‘Lusíadas’ têm quatro cantos e está errado’. ‘Está errado?’, perguntou-me ele. ‘Então os ‘Lusíadas não são um livro? Que eu saiba, os livros têm quatro cantos…” Outros tempos.

Na história da televisão, há nomes incontornáveis. ‘Natal dos Hospitais’ (Dezembro de 1958), ‘João Villaret’ (1959), ‘Telejornal’ (18 de Outubro de 1959) ou ‘TV Rural’ (6 de Dezembro de 1960) são alguns deles, que preenchem o imaginário dos portugueses.

A televisão era a preto-e-branco, sisuda, mas nem por isso com falta de humor. Que o diga Francisco Nicholson, que com o já malogrado Armando Cortez, deu corpo em 1964 a ‘Riso e Ritmo’. “Era um programa que, se fosse possível ser recuperado, tinha todas as condições para ser um grande êxito, porque misturava o humor com bailados, com orquestra, tudo ao vivo. Era um espectáculo rico e variado”, recorda ao Correio TV Francisco Nicholson, evocando ainda Armando Cortez, “que era um actor incontornável” e Luiz Andrade, actual director de Programas da RTP, “e um dos maiores realizadores que passou por aquela casa”.

Era o tempo das variedades, um conceito ainda hoje grato a muitos profissionais. A 2 de Fevereiro de 1964 estreia-se outro clássico da televisão, o ‘Grande Prémio TV da Canção Portuguesa’, que seria ganho por António Calvário, o primeiro representante português na Eurovisão, em Copenhaga, com ‘Oração’.

Foram necessários cinco anos para nova pedrada no charco. Em 1969, ano em que Marcelo Caetano avança para a frente das câmaras, com as suas ‘Conversas em Família’, surge igualmente ‘Zip Zip’, com Raul Solnado, Carlos Cruz e Fialho Gouveia.

“Na altura não se mediam audiências como hoje. Mas nós sabíamos que o país parava à segunda-feira à noite para ver o ‘Zip’. Houve um dia que um administrador da companhia das águas nos ligou a dar os parabéns e a contar-nos que num determinado dia se tinha gerado o pânico nas centrais de medição de consumo de água. Era segunda-feira à noite e os consumos dispararam em Lisboa todos à mesma hora, num facto para o qual não havia justificação. O fenómeno repetiu-se na semana seguinte, também segunda-feira à noite, durante cinco minutos. Então percebeu-se porquê. Era o intervalo do ‘Zip’, quando os portugueses aproveitavam para ir à casa de banho e despejar o autoclismo. Ou seja, é caso para dizer que as nossas audiências eram medidas no WC”, brinca Fialho.

A televisão era a principal distracção de um Portugal deprimido, vivendo em ditadura. O pequeno ecrã divertia, informava e formava. A TV educava o povo e, em 1971, surge o primeiro programa de José Hermano Saraiva, ‘O Tempo e a Alma’. “A essa hora deixava de haver trânsito de pesados nas estradas portuguesas. Os motoristas arrumavam os camiões perto de uma loja onde houvesse televisão para ver o programa”, conta o professor. José Hermano Saraiva garante que “os níveis de audiência de ‘O Tempo e a Alma’ só foram ultrapassados, quando surgiu ‘Gabriela’, em 1977”.

Com a chegada da Liberdade, a televisão democratizou-se, desempoeirou-se, tornou-se mais ousada, aprendeu a rir. Com Nicolau Breyner no ‘País das Maravilhas’, em 1975, ou com Nicolau e Herman, em ‘Senhor Feliz e Senhor Contente’, alguns meses mais tarde.

Na história da RTP é impossível não falar de uma certa vaca. ‘Cornélia’ de seu nome. Nasceu em 1977, pela mão de Raul Solnado.

A 5 de Setembro de 1979, a nova realidade portuguesa materializa-se no pequeno ecrã, com a primeira emissão a cores. A honra pertenceu a Eládio Clímaco, que, ao lado de Fialho Gouveia, apresentou ‘Os Jogos Sem Fronteiras’.

“Havia um nervosismo especial da parte de toda a gente: nossa, da direcção e da própria administração da RTP, que fizeram força para estar junto de nós antes do programa começar. Deram-nos coragem, dizendo que Portugal não podia ficar mal. E não ficou, porque tudo correu muito bem e as próprias pessoas foram muito calorosas na Praça de Touros de Cascais”, conta Clímaco.

O início dos anos 80 marca a generalização da cor na programação da RTP. Era o tempo de todos os sonhos e de todas as ousadias. A começar pela ficção nacional. Em 1982 nasce ‘Vila Faia’, a primeira novela portuguesa, produzida pela Edipim e realizada por Nuno Teixeira. Seguiram-se-lhe ‘Origens’ e ‘Chuva na Areia’, em anos férteis para a produção e imaginação dos profissionais da televisão.

Revelado ao lado de Nicolau, Herman alarga a oferta televisiva, com ‘O Tal Canal’: O país habituava-se a rir de si próprio, com figuras ímpares como ‘Estebes’, ‘Carlos Filinto Botelho’ ou mesmo o ‘Professor Oliveira Casca’. Mas também com Camilo de Oliveira, Nicolau Breyner, Carlos Miguel, Marina Mota, entre tantos outros que se seguiram na arte do humor.

A televisão crescia e desenvolvia-se. Júlio Isidro descobria talentos, Carlos Cruz oferecia carros e apartamentos no Algarve, Luís Pereira de Sousa, ao seu estilo, entretinha nas tardes da RTP, Joaquim Letria mostrava a sua língua afiada.

A TV aproximava-se do País, saía à rua, juntava-se aos portugueses, procurava emoções. Na visita papal de 1993, no casamento do Duque de Bragança, em 1995, na morte da Princesa Diana, em 1997, na Expo’98, ou na morte de Amália, em 1999.

A abertura da indústria televisiva à iniciativa privada democratizou o acesso dos portugueses à televisão, aumentou-lhes a oferta, provocou-lhes novas emoções, deu-lhes a conhecer novos dramas. E apesar da queda contínua de audiências nos anos 90, tendência travada em 2001 e invertida a partir de 2002, a RTP continua a fazer parte da nossa vida.

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