Fala-se em "falência do Estado", mas o que vivemos desde Junho foi a falência do Governo. E por trás dele, a falência do "sistema", essa nebulosa que usa Estado, Governo, Parlamento e Administração Pública para interesses partidários, de bando ou até individuais.
As tragédias são momentos em que realidades escondidas ou ignoradas se impõem a todos. O evento trágico põe a nu o antes e o depois. Os incêndios deste ano foram ainda mais brutais nesta revelação, porque constituíram uma tragédia em dois andamentos, Junho e Outubro. E, pela primeira vez numa tragédia nacional, Outubro repetiu os oráculos que Junho trouxera. Todos foram confirmados. O Governo foi incompetente. O primeiro-ministro foi insensível, arrogante, incapaz de governar com decência. A Protecção Civil estava e continuou entregue a ‘boys’ sistémicos, tachos para tachistas. A ministra sabia que estava a mais mas ficou. As árvores continuaram encostadas às estradas e as florestas por limpar. As vítimas ficaram sem apoios, atrasados por insensibilidade criminosa.
O Presidente da República fez de defensor do povo e de oráculo que se cumpriu. Assumiu as rédeas. Sintonizou-se com a opinião pública. Foi, até agora, a sua "finest hour". Juntou a sua política dos afectos à sua perspicácia política, numa mistura de semi-populismo com semi-maquiavelismo sem paralelo na nossa história. Encostou Costa à parede. Encostou o BE e o PCP à parede. Chutou PSD e CDS para o Parlamento. Utilizou os media sem igual: discursou no terreno, de novo misturando semi-populismo com semi-maquiavelismo; foi para o terreno sem Costa, sem ministros, ele, que antes andava sob o guarda-chuva de Costa e de braço dado com o presidente do PS, foi consolar as vítimas, uma a uma, enquanto Costa, por ter medo do povo, se refugiara numa única reunião com presidentes de Câmara. Na posse aos novos governantes, Marcelo cumprimentou de esguelha o inenarrável ministro da Defesa. Tem Tancos na calha.
A tragédia nacional transforma-se em tragédia televisiva. A TV mostra o que o Governo esconde. Morte, destruição, abandono, ressentimento. A tragédia abala o poder. Podem não cair governos, pode não destroçar o "sistema". Mas a verdade revelada bate forte no povo. Depois de menos que esta tragédia em dois andamentos, o Governo Guterres, sem culpa directa na derrocada da ponte de Castelo de Paiva, começou a cair na popularidade — sem regresso. Ontem, enquanto ministros debitavam horas sem fim medidas para despejar dinheiro sobre os problemas (única coisa que Costa sabe fazer), milhares manifestavam-se em diversas cidades. Dois países em choque.
A ver vamos
Operação Marquês
Um sentido profundo das escutas
As escutas da Operação Marquês não revelam apenas as manigâncias, as mentiras, o conluio com outras personagens como o deputado Galamba, o regulador da ERC Arons ou o director do ‘Jornal de Notícias’, o tal que se ofereceu para o tacho dizendo-se um bom "general prussiano" do exército socratinista. Revelam como esta gente só pensa nela própria. Como querem o poder para se servirem a si mesmos. Como, na governação ou em lugares de responsabilidade pública, se estão nas tintas para os cidadãos, para os pobres, e também para os que precisam de verdade no jornalismo.
A Operação Marquês não abalou só o socratinismo, o "sistema" financeiro do roubo e desvio de dinheiro de outros, não abalou só o PS de Costa, lugar-tenente e herdeiro de Sócrates durante anos. Abalou o "sistema". Veremos se a parte sã do país político e da sociedade civil consegue abalar mais o "sistema" dos interesses, para benefício do único sistema que interessa: a democracia.
Já agora
A ERC ao serviço do governo, como sempre
Já é doloroso qualificar a acção da ERC. O seu novo "nim", à compra da Media Capital pela Altice, é outro sinal do "sistema" a salvar-se, escarrando nas próprias leis que o regulam. O presidente da ERC fez o que o Governo queria: deixou passar a compra, depois da promessa da Altice de que a TVI continuaria socratinista e governamental.
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Também me chocou que no Fundão tivessem visto a divulgação do caso como um "ataque" ao povo
Em Gouveia e Melo pressente-se a irascibilidade, a falta de preparação mínima, os acessos de cólera.
A ideologia do ofendidismo woke contribuiu para abalar a reputação do jornalismo, de todo ele.
Noutros tempos, falava-se e vivia-se politicamente com um leque amplo de conceitos; passámos a dois.
Mercantilização de debates é lamentável por parte da SIC e TVI, mas é repugnante no caso da RTP.
Eu tinha 15 anos quando li a 6 de janeiro de 1973 a primeira edição do 'Expresso'.