"D. Pedro IV é uma mistura entre D. Juan e D. Quixote"
O escritor espanhol Javier Moro, vencedor do Prémio Planeta 2011, esteve em Portugal para apresentar o seu mais recente romance, 'D. Pedro - O Rei Imperador', uma obra que aborda as venturas e desventuras do mulherengo rei D. Pedro IV, que se tornou imperador do Brasil com apenas 23 anos, após proclamar o célebre 'Grito do Ipiranga'.
Como surgiu a ideia de escrever sobre D. Pedro IV?
E porque não? Ainda ninguém tinha escrito sobre ele. É um personagem abordada por historiadores mas em livros ilegíveis. Eram livros de historiador. É um personagem fantástico. Depois de ter escrito duas novelas sobre a Índia, com personagens femininos, tinha vontade de atacar um personagem masculino. Um macho alfa, um personagem muito forte, cheio de contradições, esquecido pela História. É uma mistura entre D. Juan e D. Quixote, na qual vence a parte quixotesca, pois no final redime-se dos seus excessos. Estou muito surpreendido que nenhum escritor brasileiro se tenha dedicado a abordar este personagem. Este livro não é uma biografia novelada, é mais uma história novelada, história dramatizada. É importante que o leitor saiba que o que está a ler aconteceu na realidade. Não há personagens inventadas nem batalhas de ficção. Este livro é o resultado de uma pesquisa de dois anos sobre D. Pedro e a família real. Trabalhei nessa estreita faixa com o objectivo de dar vida a estas personagens. Converte-los novamente em personagens de carne e osso, de forma a que o leitor os entenda como personagens vivas.
Baseia-se bastante na correspondência de D. Pedro e da imperatriz D. Leopoldina…
As cartas de Leopoldina são visíveis ao longo de todo o livro. São as citações verdadeiras, sobre o seu calvário amoroso.
O que sentiu ao ler esses documentos?
Para mim, esses textos eram como janelas para a personalidade dos personagens. Mas senti muita pena de Leopoldina e raiva contra D. Pedro. Ao longo do livro é possível ver D. Pedro de modo diferente, passando do ódio ao amor facilmente. Tinha um carácter controverso, cheio de contradições e mulherengo. O seu biógrafo oficial, Octávio Tarquínio de Sousa, que escreveu três tomos sobre a sua vida nos anos 50, calcula que teve mais de 120 filhos naturais. Acho que isso é pouco. Certamente teve mais. Mas era um bom pai de família, talvez porque não teve o amor dos seus pais. Com os seus filhos, sempre que um ficava doente, esperava pelo médico, dava-lhes o remédio ou a vacina… Também foi um bom filho, sempre leal ao seu pai. Foi um fantástico companheiro de armas, um autêntico herói. Mas era um pesadelo para qualquer sogra. Era o pior marido que alguém pode imaginar. Como dizia um historiador, ele vencia para perdoar. Era magnânimo. No final da sua vida, colocou-se em risco para defender as suas ideias de liberdade. Era uma pessoa magnífica, para perceber que o vento da História tinha mudado com a Revolução Francesa, que o tempo das monarquias tinha chegado ao fim.
Mas também foi bastante influenciado por Leopoldina e Domitila…
Ninguém é perfeito. Ele era muito influenciável pelas mulheres. Graças a Leopoldina, estabeleceu a independência do Brasil, tonando-se imperador aos 23 anos. Foi muito graças ao trabalho de Leopoldina. Os brasileiros sabem isso. Choraram bastante a morte da imperatriz. Adoravam-na. Depois, quando D. Pedro se apaixonou por Domitila, esta arrastou-o, levando consigo o Império.
Podemos aplicar, neste caso, o ditado popular “Atrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher”?
No caso de Leopoldina sim. Ela era a cabeça pensante e ele o braço executor.
– Após a morte de Leopoldina, D. Pedro controlou-se um pouco enquanto esperava pela sua segunda mulher, Amélia. Fê-lo para a poder receber melhor ou porque era assombrado pelo fantasma de Leopoldina?
O fantasma de Leopoldina existia mas essa era uma imposição. Ele percebeu que perdera muito poder, relevância e notabilidade com a morte de Leopoldina. Precisava de outro casamento real. Ele nunca percebera que o povo estava tão próximo de Leopoldina.
– Quem foi o grande amor de D. Pedro?
Penso que foi Noémie… e depois Domitila. Noémie foi o primeiro amor, um amor de juventude. Domitila tornou-se num grande amor porque ele podia ter qualquer mulher do império a seus pés, mas ele queria mais, ser querido como um homem normal. Com Domitila sentia isso. Ficou apaixonado por essa mulher que era o oposto de Leopoldina: era brasileira, sedutora, suave, analfabeta, com muito charme… Como uma planta dos trópicos.
– Essa relação com Domitila fez com que banisse alguns dos seus amigos e conselheiros…
Não se pode dizer que Domitila fosse uma mulher como as amantes de Luís XV de França, que maquinavam e queriam poder. Ela era mulher simples, mas tinha muito poder devido a essa relação, tendo mesmo arranjado emprego para toda a sua família. Não era uma pessoa ambiciosa mas acabou como uma grande senhora em São Paulo.
– D. Pedro arrependia-se de algumas das suas acções. Chegou a banir amigos, como José Bonifácio, que depois voltou a aceitar de volta.
D. Pedro perdeu a cabeça. Era impulsivo, produto de uma família disfuncional e com uma grande debilidade para com as mulheres. Perdeu a cabeça com Domitila e, quando percebeu o que fizera, já era tarde. Ele não queria fazê-lo. Foi muito duro. Era impulsivo mas arrependia-se. Mas não podia voltar atrás devido ao orgulho de ser quem era.
– Declarou-se imperador em Ipiranga mas tinha por base ideias liberais. Não é isto algo contraditório?
Não. Ele queria ser imperador, porque era a forma democrática de governar. Ser rei é que não era nada democrático, por ser algo que se herda. Um imperador é aclamado pelo povo. Era assim que funcionava na época. Estamos a falar da altura em que viveu Napoleão. Ser imperador dava um democrático ao seu reinador. Para se ser imperador era necessário recolher milhares de assinaturas dos municípios brasileiros. Por isso não existe uma contradição. O Brasil era grande e precisava de algo maior do que um rei. O título de imperador convinha-lhe bastante.
– A fuga da corte portuguesa para o Brasil, para escapar a Napoleão, foi a melhor decisão?
Claro que sim. D. João VI, que foi bastante desprezado até por historiadores por ser gordo e sentimental, era um homem inteligente e muito prudente. Não gostava de tomar decisões. Mas quando decidiu viajar para o Brasil para fugir a Napoleão, tomou uma posição única na história. Nunca uma monarquia fugira para se instalar nas suas colónias. Esta decisão provocou nele um conflito pessoal. Eu estava hoje a caminhar pelas ruas de Lisboa e pensei em D. João VI, que teve de abandonar toda esta beleza. Sacrificou os seus compatriotas para salvar alguma maior que Portugal: o Império português, presente em quatro continentes. Foi uma decisão estratégica. O povo chamava-lhe traidor e não percebia a decisão.
– Mas ao chegar ao Brasil apaixonou-se pela terra.
Apaixonou-se pelo Brasil mas ficou sempre português. E o filho também. Apesar de ter dado a independência ao Brasil, D. Pedro não conseguiu cortar relações com Portugal. Era este o motivo pelo qual os nacionalistas brasileiros não gostavam dele. Uma pessoa não pode ser portuguesa e brasileira.
– Em Portugal consideravam-no brasileiro e vice-versa.
Pedro sempre ficou prisioneiro entre os dois mundos. Duzentos anos após a sua morte, o seu coração está na Igreja da Lapa, por petição popular dos habitantes do Porto, e os restos mortais estão na Basílica de Ipiranga, a dois quilómetros de São Paulo (Brasil). Após a morte continua divido entre dois países. Esse é o drama dele.
– O Império do Brasil nasceu com D. Pedro mas foi o seu filho, D. Pedro II, que o fez crescer. Este herdeiro era muito diferente do progenitor. A distância entre ambos terá criado estas diferenças?
Não se pode afirmar isso. D. Pedro II era filho de Leopoldina. Tinha uma mentalidade diferente, não sofreu o mesmo que o seu pai, não tinha epilepsia e nunca teve carências afectivas. Deparou-se com um império já feito. É uma figura totalmente oposta ao pai. No Brasil adoram-no. Várias vezes me perguntaram porque não escrevi sobre D. Pedro II. A razão é simples, é perfeito demais: monógamo, tinha quatro filhos, era culto, sabia falar sete idiomas, levou o telégrafo para o Brasil, construiu as primeiras estradas, aboliu a escravidão, reinou durante 50 anos… Era um santo. Mas nunca poderia ter feito o que fez sem as loucuras cometidas pelo pai. D. Pedro I é alguém esquecido pela História, por não ter feito as vontades aos nacionalistas, quer os brasileiros quer os portugueses. Para os brasileiros era português demais e para os portugueses era brasileiro. Ele estava além de tudo isso. Considerava-se português e brasileiro.
– Na capa da versão portuguesa de ‘D. Pedro - O Rei Imperador: O Império és tu’ podemos ver o vulto de uma mulher. Não tira algum protagonismo à personagem principal?
Não, porque ele era um homem de mulheres. Não podia controlar os seus desejos sexuais. Era uma parte importante da sua vida. Parte essa que teve reflexos na História. O que tento mostrar neste livro é como a história de uma família real, dos sentimentos de um homem para com uma mulher podem mudar a História de todo o Mundo. Tudo está ligado, como num puzzle.
– O título surge de uma conversa em que D. João VI diz a D. Pedro que não pode casar com Noémie, mas sim com uma princesa, pois ele era o Império. O Império é um homem?
O pai estava a organizar a boda real com a princesa de Habsburgo. Tratava-se de um negócio de Estado. Tinha sido enviado o marquês de Marialva, juntamente com os ministros, a Viena para mostrar as riquezas do Brasil e limpar a humilhação de terem fugido para o Brasil. Para o pai e o Governo português no Rio de Janeiro era importante mostrar ao Mundo que Portugal renascia no Brasil. E quando Leopoldina está quase a chegar, D. João VI percebe que o filho está apaixonado por uma bailarina francesa do Teatro Real e que esta está à espera de um bebé de D. Pedro. O rei convoca então o filho e diz-lhe que ele não pode ficar com a bailarina, mas sim casar com Leopoldina. D. Pedro não quer, mas o pai diz-lhe: ‘Podes amar como um homem mas tens de casar como um príncipe, porque o Império somos nós, o Império és tu e será Leopoldina’. Este é um conflito vivido por todos os membros das casas reais. Até hoje, com o rei Juan Carlos ou Kate Middleton, apanhada por um fotógrafo com os seios à vista. Estas pessoas querem viver vidas normais, livres. Mas não são livres porque representam uma instituição. Esse peso é tão grande que não lhes permite a liberdade. D. Pedro também teve este conflito.
– Muitos portugueses não conhecem a verdadeira história de D. Pedro…
E muitos brasileiros também não. Assim como os espanhóis não sabem nada da história de Portugal. Os brasileiros não sabem nada da história da Argentina. Os peruanos não sabem nada sobre a história da Colômbia. Ninguém se conhece. Somos uma comunidade de 500 milhões de hispanos, como dizia Saramago, e não nos conhecemos. É trágico. Em Espanha deveria ensinar-se história de Portugal, história ibérica. E isso não acontece. Não é normal que tal aconteça.
– Mas a vida de D. Pedro também influencia Espanha, quando liberta Portugal do absolutismo.
O importante de D. Pedro é que ele vai além do Brasil ou de Portugal. Ele torna-se um defensor da liberdade, colocando a sua vida em risco na defesa dos ideais em que acredita. Ele não sentia vontade de lutar contra o seu irmão, mas vai com 7500 homens reconquistar o Porto. O irmão tinha 80 mil homens, mas ele consegue vencê-lo. Em 36 anos de vida, esse homem que nasceu e morreu no mesmo quarto do Palácio de Queluz, deu a independência ao Brasil, foi imperador desse país, rei de Portugal, rejeitou as coroas de Espanha e Grécia, fez as Constituições mais liberais da época… A Constituição do Brasil durou quase cem anos. E ainda venceu uma guerra civil. Não é isto um herói? Não é um personagem importante da História? Não é justo que tenha sido esquecido devido a problemas de nacionalismo.
Que diria a D. Pedro se pudesse falar com ele?
Que me apresentasse uma mulher. (risos)
Visitou todos os locais de que fala no livro?
Sim. Gostei bastante de Queluz. Tem um palácio íntimo, pequeno… Também me fascinou a casa de Domitila, que é um pequeno museu que ninguém visita no Brasil.
Porque não é visitado?
Porque ninguém tem interesse no Brasil. O Palácio de São Cristóvão foi convertido em museu de ciências naturais e perdeu todo o seu carácter. No Brasil, o Rio antigo desapareceu quase todo.
Podemos esperar mais livros sobre personalidades portuguesas?
Não sei. Amo muito Portugal e a sua cultura. Estive na Madeira, em Goa e em outros locais por onde os portugueses passaram e deixaram a sua marca. Mas não sei o que vou fazer a seguir. Ainda estou na promoção deste livro e não tenho uma história escolhida para uma próxima obra. O que mais me fascina em Portugal é o pouco que conheço deste país sendo eu espanhol. A história portuguesa é fascinante. Espanhóis e portugueses deviam estar mais unidos, para nos podermos conhecer melhor. Este livro serve também para criar pontes entre estes países.
Tem também uma paixão pela Índia, algo que podemos constatar com a obra ‘O Sari Vermelho’, bastante atacado nesse país…
‘O Sari Vermelho’ não foi publicado na Índia. Ninguém o leu. Fui atacado por razões políticas pelo presidente do parlamento indiano, que era também advogado de Sonia Ghandi. Estava totalmente contra a publicação dessa obra no país, pois não querem que se comente a italianidade de Sonia Ghandi. Voltamos a ter aqui o cancro do nacionalismo. Na Índia, os nacionalistas não gostam que a pessoa mais poderosa de um país com 1 200 milhões de pessoas seja italiana. Mas Sonia Ghandi é italiana. Pode-se confirmar na internet, mas o pobre que vota em Sonia Ghandi não confirma na internet. Para as massas que votam em Sonia Ghandi, ela pertence à realeza, uma Ghandi. Não querem que se publicite que ela vem de uma família pobre. O pai era um pedreiro que depois se converteu num pequeno empresário de imobiliário. Para um europeu é motivo de orgulho mas para um indiano significa que ela era de uma baixa casta. Esse foi o motivo do meu livro ter sido atacado com tamanha violência. Fizeram manifestações em Deli e em Bombai, tendo mesmo queimado a minha efígie como se eu fosse um George Bush ou um Salmon Rushdie espanhol. Há duas semanas recebi um tweet de um indiano que me disse que eu podia voltar tranquilamente à Índia porque o advogado de Sonia Ghandi foi apanhado num grande escândalo, num vídeo, com uma magistrada a quem ele prometera uma promoção no Supremo Tribunal.
Sente que é mais fácil escrever sobre personagens que já estejam mortos?
Não sei se é mais fácil mas tem a vantagem de os advogados das personagens também já estarem mortos. Como dizia Lenine, nada causa mais dor do que a verdade.
Que autores mais o influenciam?
Eu sou meio francês. Assim sendo, tenho grandes influências de grandes novelistas do século XIX. Com 15 anos obrigavam-me a ler Stendhal, Balzac, Zola, Flaubert e não posso escapar dessa influência. Depois tive outras influências, em particular do meu tio Dominique Lapierre, com quem também trabalhei. Li também muito Miller…
O que sentiu ao receber o Prémio Planeta 2011?
Senti uma grande alegria. Ligaram-me uma hora antes a dizer-me que tinha ganho o prémio, depois de um júri ter-me escolhido de forma unânime. Para mim foi como jogar noutra liga, dos escritores de Espanha. Não me mudou a vida mas deu-me mais facilidades para poder escrever tranquilamente e ter mais leitores. É esta a importância dos prémios.
PERFIL
Javier Moro nasceu em Madrid, Espanha, há 58 anos. Foi investigador para as obras de alguns escritores, entre os quais se encontra o seu tio Dominique Lapierre, tendo ainda colaborado com o realizador norte-americano Ridley Scott em vários projectos de cinema e televisão. O livro 'D. Pedro - O Rei Imperador' valeu-lhe 600 mil euros do Prémio Planeta em 2011.
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