Morreu o historiador António Borges Coelho aos 97 anos

Borges Coelho morreu numa unidade de saúde de apoio na sequência de uma infeção respiratória.

17 de outubro de 2025 às 19:17
António Borges Coelho Foto: Lusa
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O historiador António Borges Coelho, professor, escritor, investigador, combatente antifascista, morreu esta sexta-feira aos 97 anos, disse à agência Lusa a editorial Caminho.

De acordo com a mesma fonte, Borges Coelho morreu numa unidade de saúde de apoio, nos arredores de Lisboa, onde estava a ser acompanhado, na sequência de uma infeção respiratória.

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Borges Coelho, numa entrevista à agência Lusa em 2018, recordou "uma vida muito difícil", "no fio da navalha", no Portugal da ditadura (1926-1974), numa constante luta pela liberdade, que também foi um combate pela verdade, sem gostar de seguir dogmas.

Em 2018, recebeu o Prémio Universidade de Lisboa, onde foi aluno e professor. O júri, ao qual presidiu o então reitor António Cruz Serra, justificou a distinção pelo seu "singular percurso na historiografia portuguesa" e o "trabalho inovador".

Além da "relevância do seu percurso científico, muitas vezes perseguido em circunstâncias adversas", o júri sublinhou a grande erudição e acessibilidade da sua obra, e "o seu comprometimento com a cultura e a língua, evidenciado no modo como integra na narrativa dos acontecimentos a caracterização detalhada de instituições, informações demográficas, e estruturas económicas, sociais e culturais".

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De 1974 a 1994, Borges Coelho foi professor no Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo ensinado centenas de alunos "nos quais deixou marcas, pelas suas qualidades humanas e pedagógicas", realçou o júri.

"A História é uma ciência perigosa", disse Borges Coelho em entrevista à agência Lusa, em outubro de 2018. E recordou as palavras do humanista português João de Barros (1496-1570), historiador da Ásia, segundo o qual a História implica muito perigo e exige muito trabalho.

"A História marca sempre, mesmo que o historiador não consiga completamente dominar as suas ideias, isto é, aquilo que ele é. [A História] é um documento que dá uma visão do passado, e que, se for nova e verdadeira, vai ao fundo da verdade, vai criar muitos anticorpos. A História é uma ciência perigosa", declarou.

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Borges Coelho pretendia tornar-se escritor, estudou para padre franciscano, por vontade própria, mas foi à luta política pela liberdade de pensamento que dedicou, em exclusivo, anos da sua vida, na oposição à ditadura do Estado Novo (1933-1974), que lhe retirou os direitos.

"A situação era tremenda. Eu não tinha direitos políticos, não conseguia tirar a carta de condução. Para o conseguir tive de mover um processo ao Estado", contou à Lusa, referindo que a PIDE, a polícia política da ditadura, o interrogou e prendeu várias vezes.

"Vim para Lisboa em 1948, para me matricular na universidade, mas numa situação muito difícil. Eu queria era ser escritor, mas pensei: 'O que vai ser a nossa vida, e para a minha geração?' Eu já vinha um pouco revoltado, tinha sido seminarista, nos franciscanos, inicialmente muito devoto. Nos últimos anos não me adaptei, tentei sair e não me deixavam, consideravam um pecado. Até que fui expulso".

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Natural de Murça, em Trás-os-Montes, onde nasceu em 7 de outubro de 1928, Borges Coelho testemunhou a vida difícil que viviam as populações, em particular as mais pobres e no espaço rural, à mercê de grandes proprietários e das autoridades.

"Além do ideal da justiça social, era o ideal da liberdade. As pessoas [hoje] não fazem ideia do que era viver naquele tempo. Eu vi as autoridades nomeadas por Lisboa, em Trás-os-Montes, bater, na câmara municipal, com um 'cavalo-marinho' [um chicote em forma de bastão], num assalariado rural, acusado de roubar fruta para comer, porque estava com fome", recordou à Lusa.

No "ambiente irrespirável", que foi o Portugal do Estado Novo de António de Oliveira Salazar, Borges Coelho apenas podia opor-se ao regime.

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"A minha grande formação política foi o MUD-Juvenil [Movimento Democrático Unitário Juvenil], que era praticamente autónomo. Apesar de o Partido Comunista ter uma célula lá dentro, não tinha a capacidade de o controlar. O MUD-Juvenil tinha mais de mil quadros em todo o país, era um grupo de peso", recordou à Lusa.

Borges Coelho foi membro do MUD e, durante seis meses, funcionário do Partido Comunista Português, de onde saiu em 1991.

"Foi já como funcionário do PCP que fui preso [em 1957], num almoço. Na altura da detenção gritei como nunca o fiz na vida, e fui levado para o Aljube [prisão em Lisboa], onde estive nas chamadas 'gavetas', e julgado no Porto, tendo estado posteriormente preso em Peniche", onde ficou até 1962, e onde se casou.

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O primeiro "esfriamento" com o PCP deu-se em 1956, na sequência do "Relatório Khrushchov", no XX Congresso do Partido Comunista da então União Soviética. Publicado pelo Diário Popular, o documento provocou-lhe "uma impressão muito funda".

"A ideia de me dedicar inteiramente à luta política desapareceu-me do horizonte. Apesar de ter seguido todos os trâmites, fui julgado no Porto e fui preso, mas o meu horizonte era agora ser escritor".

António Borges Coelho foi o dirigente do MUD-Juvenil que teve a sentença mais pesada. Condenado a dois anos e nove meses, veio a cumprir cinco anos de prisão no Forte de Peniche.

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Em 1991, "a descoberta, mais uma vez, de que afinal as coisas não eram o que pareciam [no contexto dos Partidos Comunistas], isto é, que havia violações fundamentais - e se há um direito fundamental, é o direito à vida -", levou Borges Coelho a deixar o PCP.

"De certo modo, senti-me desiludido e escrevi uma carta ao partido onde afirmei: 'Solitário, mas solidário', e mantenho esse meu percurso. Tenho as minhas ideias próprias", contou.

Borges Coelho realçou ainda que, "como historiador, dificilmente podia ser um militante a sério de qualquer partido, porque era muito difícil manter a honestidade completa: ou é ou não é", referindo que nunca se sentiria livre "e completamente honesto" para com o seu ofício de historiador, se filiado num partido político.

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António Borges Coelho reconheceu à Lusa que os seus livros causaram polémica.

A obra "Raízes da Expansão Portuguesa" (1964) chegou a estar proibida. Em "A Revolução de 1383-85" (1965), propôs uma nova perspetiva sobre o que levou Portugal ao confronto com Castela, na batalha de Aljubarrota, em 1385, defendendo que mais do que uma crise dinástica, aberta com a morte do rei Fernando, foi uma revolução liderada pelas forças populares e burguesas, que se emanciparam face às classes dirigentes, designadamente o clero e a nobreza, e colocaram no trono um rei que escolheram, João I, mestre de Avis.

A Associação dos Jornalista e Homens de Letras do Porto, que distinguiu o historiador em 2022 com o Prémio Rodrigues Sampaio, definiu-o como "um homem de coragem" e uma "personalidade ímpar da cultura e da cidadania, autor de inovadora e vasta obra no domínio da História, mas também poeta luminoso".

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Na ocasião, o júri do prémio realçou o seu papel como cidadão na luta pela democracia. "Mesmo nos tempos da dura repressão fascista, jamais traiu a luta por um Portugal de liberdade, livre. Preso, perseguido, ou forçado a mergulhar na clandestinidade, sempre inventou tempo para a bondade e para avivar a voz dos silenciados", afirmou o júri.

Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1967, António Borges Coelho doutorou-se em 1984, na mesma instituição.

O historiador é autor de "A Inquisição em Évora" (1987), "Portugal na Espanha Árabe" (1972-1975) e da "História de Portugal" (2010-2022), em sete volumes, num percurso marcado por dezenas de outros títulos.

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"Comunas ou Concelhos?" (1973), "Fortaleza" (1974), "No Mar Oceano" (1981), "Questionar a História" (1983) e "O 25 de Abril e o Problema da Independência Portuguesa" (1975), estão entre as suas obras, assim como "Senhores da Navegação da Conquista e do Comércio" (2019), "História e Oficiais da História" (2021), e "Espinosa e Leibniz" (2023).

Da sua bibliografia também fazem parte títulos como "Ruas e Gentes na Lisboa Quinhentista" e "Os Lusíadas - Antologia Temática e Texto Crítico".

"Crónicas e Discursos", editado em junho de 2023, foi um dos seus últimos livros publicados, no qual reúne diferentes intervenções públicas ao longo dos anos, desde artigos saídos na imprensa diária a discursos.

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Ao nível da literatura, escreveu "Roseira verde", "Ponte Submersa", "Ao Rés da Terra", e destacou à Lusa "Youkali é o País dos Nossos Desejos" (2005), que relata como vê a luta política no passado, com "muita atualidade".

Este ano publicou a coletânea "Poemas".

Em 1999, Borges Coelho foi agraciado com a Ordem de Sant'Iago da Espada e, em 2018, foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.

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António Borges Coelho considerava-se "um cidadão como qualquer outro". Não gostava de se expor. "Praticamente em todos os livros que publiquei não está lá uma fotografia minha e, os que a têm, foi contra a minha vontade". Por outro lado, os encontros espontâneos com antigos alunos, davam-lhe "um grande prazer e alegria".

"Sinto-me um ser normalíssimo, um cidadão normal", disse à Lusa. "Sou o mesmo que veio de Trás-os-Montes, que, quando criança, andava na instrução primária e, depois das aulas, ia buscar as cabras ao monte".

"Sou professor catedrático, pois sou, 'pá', mas sou um cidadão normal e gosto de me sentir como um cidadão igual aos outros", declarou, afirmando-se alegre com os tributos que recebeu, quando organizados por "amigos e pessoas sinceras".

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"Alegra-me quando as pessoas achem que fiz alguma coisa de útil. É salutar, sinto-me saudável com isso".

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