QUANDO A ALMA NÃO É PEQUENA
Lembro-me da surpresa e do entusiasmo – trabalhava, à época, numa rádio onde fazíamos questão de ouvir música… – que correspondeu à chegada de uma amostra "em avanço" com uma canção chamada "Planície". Por brincadeira fonética e pela descoberta de eventuais semelhanças na sedutora fragilidade, chamávamos à compositora, autora e cantora a nossa Mafalda Vega.
Sim, por causa de Suzanne. O tema tornou-se um hino e arrastou o álbum de estreia de uma menina que já não sabia esconder o talento atrás da ingenuidade. Depois, à boa maneira lusitana, foi um estigma para Mafalda Veiga que, apesar de incapaz de ficar abaixo do seu nível, desatou a ser perseguida pela frase, tão comum entre nós, que garante: "Já não o que é era…".
Pelos anos difíceis, que incluíram mudança de editoras e subexposição (uma condenação a quem não é moda, a quem não se pinta de radical, a quem não é piroso), pela saudável teimosia da protagonista, pela forma – nada habitual, para o "território musical" português – como foi capaz de "dar a volta ao texto", é hoje um prazer redobrado descobrir "Na Alma e Na Pele" (ed. Popular), que estará à venda a partir de amanhã, segunda, dia 3. Porque, na sequência do já muito apetecível "Tatuagem" (1999), dá conta, em 11 canções e 40 minutos de música, de um crescimento que dispensa tiques e truques.
Mafalda amadureceu com naturalidade e os seus textos, ponto de partida confessado para "o resto", cresceram em profundidade e em autenticidade. Sejam autobiográficos ou construídos a partir de personagens imaginárias, nunca deixam de ser verdadeiras histórias, sinais de emoção e de vivências, mais doídos, mais em dúvida, mais em "estado de graça".
Simples? E porque não, se é exactamente daí que parte a identificação que leva tanta gente a cantar "par coeur" os poemas de Mafalda nos seus concertos? Há mesmo imagens que deixam um perfume que não apetece esquecer. Um exemplo: "Nem sempre o chão da alma é seguro/Nem sempre o tempo cura qualquer dor/E o sabor a fim do mar que vem do escuro/É tantas vezes o que resta do calor".
Outro caso: "Dois copos deixados/No vão da janela/Que filtram a luz/Azul do abandono/Um plano fechado/Do rosto e das mãos/E o movimento lento/E leve do sono". As melodias de "Na Alma e Na Pele" também primam por se tornarem cantaroláveis, sem recorrerem a primarismos, por se enquadrarem num "mainstream" que só mesmo entre alguns sectores cá da "santa terrinha" é que causam dúvidas. Os arranjos de António Pinto e Rui Costa (ex-Silence 4) e a produção deste último dão mais corpo e mais consistência ao que aqui se percorre: sem alterarem a essência de Mafalda, abrem-lhe novos horizontes, salientando o que merece ser sublinhado, evitando dispersões ou diletantismos que, em boa verdade, podiam deitar tudo a perder. E os dois maiores trunfos continuam a ser a voz autêntica e sedutora de Mafalda, o encanto que – mesmo em canções de desânimo ou de "angústia" – acaba por vestir cada um dos temas.
"Na Alma e Na Pele", parecendo para já o mais coeso de todos os discos da cantora, ameaça ser "transversal ao tempo". Mas é bom começar a ouvi-lo já ("Uma Gota", Um Filme", "Cúmplices"), para mais rapidamente se fazer justiça a estas canções. O arrepio que causam na pele é maior, e melhor, quando a alma não é pequena. E a de Mafalda ameaça tornar-se cada vez maior.
Mesmo que o nome de URSULA RUCKER não seja familiar ao grande público, aqui se garante que – a serem cumpridas as premissas do disco "Supa Sista" (ed. MVM, 2001) – os seus dois concertos portugueses em perspectiva merecem toda a atenção.
Entre o "beat", a "soul", o "hip hop" e as palavras ditas (e que dão que pensar), aí está uma dama de grande classe, colaboradora dos 4 Hero, dos Roots e de Jamaaladeen Tacuma. Dia 7 no Hard Club do Porto, dia 8 no Teatro São Luiz de Lisboa. Quem vos avisa… n Se as suas influências de "puto" de L.A. foram mesmo Jimi Hendrix e Bob Marley, a verdade é que BEN HARPER há muito descobriu o seu lugar na música. Bem amado dos portugueses, faz-nos chegar "Diamonds On The Inside" (ed. EMI-VC), outro belo manifesto da música "sem fronteiras", em que os seus virtuosismos aparecem sempre superados pela alma, pela entrega e pela força das canções. Entre os "diamantes", saliência para "Touch From Your Lust" e "She's Only Happy In The Sun". Mas tudo vale a pena.
Só cá faltava mesmo o lesbianismo vagamente pedófilo e embrulhado em algo de semelhante ao pior do "disco sound" para "vender" uma imagem que, depois, vende um disco. Refiro-me obviamente a Lena Katina e Julia Volkova, que é como quem diz às T.A.T.U. "200 Km/h In The Wrong Lane" (ed. Universal) é um truque barato, que chega a tornar-se aflitivo de sensaboria e oportunismo sexista.
Já agora: quem é que as autorizou a assassinar "How Soon Is Now", um dos clássicos dos Smiths? Haja vergonha! n Haverá quem se lembre de o ouvir em dueto com Luís Represas. Mas é pena que um cantautor como o espanhol PEDRO GUERRA, consistente e como poucos, dono de uma voz marcante e um autor completo, conheça o mesmo destino de tantos valores latinos da actualidade: a marginalidade. Quem procurar com algum afinco, poderá descobrir por aí o seu quinto disco de estúdio, "Hijas de Eva" (ed. BMG… espanhola), sabiamente dedicado à mulher. E candidato a obra-prima. Porquê, santo Deus, a "clandestinidade"?
Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?
Envie para geral@cmjornal.pt