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O funk é uma arma

Em São Paulo sucedem-se as mortes e a violência contra os MC do funk de ostentação. MC Daleste foi morto no palco no dia 6.

14 de julho de 2013 às 15:00

MC Sexy - a cantora brasileira Karen Tatiani dos Santos, uma das revelações do funk paulista - cancelou "três shows" na semana que passou. "Tem muito medo de ser ela a próxima a morrer", confessou a agente da artista, Luana Safire, à Domingo, ao telefone do Brasil.

O último a morrer foi MC Daleste, também ele cantor de funk em São Paulo, alvejado em pleno palco durante um espetáculo em Campinas, no sábado, dia 6 de julho. Mas, antes dele, morreram outros, numa onda de violência que nos últimos tempos tem atingido os MC do funk paulista. Daleste tinha 20 anos e uma legião de milhares de fãs que povoou o Facebook de páginas de luto. ‘MC Daleste eterno' e ‘MC Daleste para sempre no meu coração' são alguns exemplos da onda gerada na internet. ‘O Funk está de luto' e ‘O Funk acordou' têm sido outras das palavras de ordem.

Além da morte de Daniel Pellegrine, o nome real do jovem baleado, MC Sexy "tem mais razões para temer pela vida. Foi vítima de um assalto à mão armada no último dia 26. Foi ameaçada por dois homens, que roubaram, entre várias coisas, uma gargantilha de diamantes avaliada em 28 mil reais (10 mil euros), e que a tentaram meter na mala do carro. Felizmente, ela conseguiu fugir", conta Luana Safire.

Dias depois do susto, MC Sexy partilhava no seu Facebook oficial: ‘Não sou criminosa, não sou prostituta, a minha música não tem apologia, não fala de drogas: porquê tanto rancor contra alguém que luta pelos seus ideais?', publicou a artista, de 33 anos. Dias mais tarde, na madrugada da morte de Daleste, escreveu novamente na rede social: ‘Luto a todos os MC do mundo. Vamos cooperar. Chega de violência no meio artístico. Dorme no senhor, Daleste'.

Em comum, Karen e Daniel tinham o mesmo estilo de música: o funk paulista (de São Paulo), também conhecido como funk de ostentação ou funk da lata. No fundo, o estilo em causa mistura a batida do funk carioca com letras sobre bens materiais, caros e de marca.

FUNK AGRESSIVO

"O funk em São Paulo é muito diferente do funk do Rio de Janeiro. Basicamente serve para exaltar as marcas de roupa, de bebidas, de carros e ostenta-se muito ouro, muita prata, muita orgia. É um funk mais radical, mais agressivo, por isso acredito que a morte deste menino [MC Daleste] e de outros MC funkeiros em São Paulo está ligada ao que eles cantam e não ao ritmo da música", acredita o DJ Alex Bolinha, produtor de funk há 24 anos e atualmente assessor do DJ Koringa, uma das vozes mais conhecidas do funk carioca - com músicas em telenovelas brasileiras como ‘Fina Estampa' e ‘Avenida Brasil'.

"O funk carioca é muito diferente nos temas que canta: fala de amor, da comunidade, é mais leve", acrescenta. Também em conversa com a Domingo, Lincoln Gabriel, DJ Gá - que trabalhou com Daleste durante três anos - afirmou não acreditar que a morte do amigo esteja relacionada com as mortes de outros MC, "como Felipe Boladão, Duda do dapé, Primo, Zoi de gato, MC Careca, MC Flavinho e DJ Felipe. Daleste foi um caso à parte. Os outros MC mortos foram executados, dois deles à porta de casa, por sujeitos que vinham de cara tapada em cima da mota, e não em cima do palco como o Daniel".

Lincoln ainda não acredita na morte do amigo. "Era um cara tranquilo, sem ficha na polícia. É certo que no início da carreira dele começou por cantar o funk proibidão, que era o que estava pegando no momento e que o pessoal gostava. Um funk com letras que faziam apologia ao consumo de drogas (‘Fumei tanto do verdinho/ que fiquei com a voz estranha. Admiro quem não fuma/ eu gosto mais do que lasanha'), ao extermínio de polícias (‘Aula de criminologia/ Primeiro engatilha/ Depois você mira, Se tiver no alvo/ Você extermina/ Quando meu chefe deixar/ Vou colecionar cabeça de polícia/ Nosso armamento é pesado') e à vida bandida. Mas depois começou a mudar para o funk de ostentação, por isso não entendo esta raiva toda contra ele. Aquilo que eu acho é que há muita inveja contra quem nasceu muito pobre e conseguiu vingar na vida", explica.

Daleste nasceu numa favela, na zona leste de São Paulo, perdeu a mãe ainda criança e ficou a viver com o pai e os irmãos. "Há mais de um ano juntou-se com a namorada, mas apesar de estar a ganhar bom dinheiro escolheu continuar na favela. Até ofereceu 10 mil reais em ovos de Páscoa a toda a gente da favela, ninguém tinha razão para ter raiva dele porque era um cara humilde e da paz." ‘Minha vida mudou de água para champanhe', confessou Daleste - que cobrava cinco mil reais (cerca de 1800 euros) por show - numa entrevista ao ‘Estado de São Paulo' em março.

DJ Jamanta, também funkeiro, acredita que uma onda de violência contra o funk nunca acontecerá no Rio de Janeiro. "Aqui é mais para a mulherada, é cantada de amor." O administrador de uma das páginas de luto criada para Daleste vai mais longe - mas pede para não ser identificado -, "isto é coisa de traficante. Traficante tem inveja dos MC novinhos porque eles estão a conseguir fama e dinheiro, querem matá-los a todos". Outro nome ligado ao funk ostentação, MC Guimê, mostrou no Twitter a sua revolta. ‘Quantos MC já se foram? Quantos mais vão precisar morrer para tomarem uma providência, nossa única arma é o microfone. Justiça', escreveu um dos artistas que mais fatura no funk - cobra entre 25 a 30 mil reais (10 mil euros) por noite. A morte de Daleste continua a ser investigada pela polícia.

"MC Sexy vai ser a cara de uma manifestação pela paz no funk, a realizar esta semana", partilhou Luana, a agente. "Estão previstas 20 mil pessoas e ela vai arriscar. Acha que ninguém a vai tentar matar no meio de tanta gente, mas para prevenir já encomendou coletes antibala à polícia". No enterro de Daleste, Moreninho, o seu produtor, terá dito aos fãs que ao ouvir o primeiro tiro, Daniel Pellegrine preferiu continuar o espetáculo. "Ele disse que preferia morrer no palco a fazer aquilo que mais gostava, que era cantar". lD

"EM PORTUGAL É BEM DIFERENTE"

A cena do funk português anda a léguas da de São Paulo. "O funk que cantamos é bem diferente, apesar de ter o mesmo nome. O nosso revisita os anos 60, tem influências do jazz e do soul, e embora tendo um lado político e de contestação, nós queremos é que as pessoas se divirtam", explica Silk, o vocalista dos Cais Sodré Funk Connection. "Mas tenho um amigo MC de funk que saiu do Brasil precisamente à procura da tranquilidade e da segurança que lá não tinha. Claro que o funk no Brasil tem uma grande força, principalmente porque nasceu nas favelas e aponta o dedo à pobreza e aos problemas sociais. Faz-me lembrar o hip-hop da Zona J de Chelas, onde eu cresci", conclui.

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