Radicada no Reino Unido desde o início da década de 1970, reiterava a importância das histórias para as pessoas se compreenderem a si próprias.
As histórias, reais ou imaginadas, acompanharam a vida da pintora Paula Rego, que morreu esta quarta-feira, aos 87 anos, um fascínio que começou na infância, quando a tia lhas contava, e inspirou os seus quadros, reconhecidos a nível mundial.
Sempre que surgia em cerimónias públicas, a artista portuguesa, radicada no Reino Unido desde o início da década de 1970, reiterava a importância das histórias para as pessoas se compreenderem a si próprias e ao mundo.
"[Com as histórias] pode-se castigar quem não se gosta e elogiar quem se gosta. E depois inventa-se uma história para explicar tudo", comentou, um dia, na inauguração de uma das suas exposições, no seu museu, em Cascais, ao que chamou exatamente Casa das Histórias.
A obra da pintora raras vezes deixa um espectador indiferente, apreciadores ou não da estética do seu trabalho, marcado pela realidade da condição feminina, pelas injustiças sociais e pela recusa da opressão em todas as suas formas.
O valor internacional da sua obra evidenciou-se sobretudo em 2015 com a venda, num leilão, em Londres, da obra "The Cadet and his Sister" (1988) ("O cadete e a sua irmã", em tradução do inglês), por 1,6 milhões de euros, tornando-se um novo recorde da artista portuguesa.
A data da obra assinala um importante acontecimento na vida pessoal da pintora na década de 1980, pela morte do marido, o também artista Victor Willing (1928-1988), de esclerose múltipla.
Esse ano foi igualmente importante na carreira de Paula Rego, pois passou a ser representada pela galeria Marlborough Fine Art, em Londres, e distinguida com uma grande retrospetiva do seu trabalho pela Serpentine Gallery, na capital britânica.
Em 2021, conseguiu tornar real um dos seus maiores sonhos como artista: expor no museu Tate Britain, em Londres, uma casa de exposições que sempre viu como um baluarte masculino.
Ali apresentou uma exposição retrospetiva - com mais de 100 obras dos seus 60 anos de carreira - um feito simbólico que Paula Rego conquistou, já que sempre se tinha sentido discriminada por não poder ali levar a sua obra, sendo mulher e estrangeira.
Acabou por ser a maior a mais completa exposição de Paula Rego no Reino Unido, incluindo, além da pintura, esculturas, colagens e desenhos, desde os anos 1950, até aos mais recentes, incluindo a série "Mulher Cão", dos anos 1990, e "Aborto", uma das que mais impacto político e social tiveram em Portugal, produzida durante a campanha pela despenalização do procedimento no país.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, visitou a exposição, na altura, e considerou-a "única e irrepetível".
Já este ano, a sua obra foi alvo de outro reconhecimento por parte da curadoria-geral de um dos certames mais importantes de arte contemporânea do mundo: A Bienal de Arte de Veneza, com o tema "The Milk of Dreams", que privilegiou o trabalho de artistas mulheres.
Cecilia Alemani, curadora geral da 59.ª Exposição Internacional de Arte Bienal de Veneza, escolheu a pintora portuguesa Paula Rego como uma das âncoras da exposição-geral, reunindo numa sala azul do Pavilhão Central, nos Giardini, obras em pintura, gravuras e esculturas.
Em entrevista à agência Lusa uma semana antes da inauguração, em abril, a curadora considerou Paula Rego uma "artista completa" que "só agora está a ter o devido reconhecimento".
Paula Rego "é alguém que, ao longo de cinco décadas, tem dedicado o seu trabalho a temas e ideias muito fortes, a aspetos das nossas sociedades que foram obscurecidos e ignorados, cancelados, censurados, desde questões políticas, de género, liberdade de expressão, direitos das mulheres. São temas que aborda de forma muito direta e original", salientou Cecilia Alemani sobre a artista de 87 anos.
Em 2020, o Museu da Presidência da República, no Palácio de Belém, em Lisboa, assinalou o 85.º aniversário de Paula Rego com uma exposição de obras da pintora, com os trabalhos criados pela artista para o Palácio de Belém, a pedido do antigo Presidente da República Jorge Sampaio.
Maria Paula Figueiroa Rego, nascida em Lisboa a 26 de janeiro de 1935, numa família de tradição republicana e liberal, começou a desenhar ainda criança, um talento que lhe foi reconhecido pelos professores da St. Julian´s School, em Carcavelos, e partiu para a capital britânica com 17 anos, para estudar na Slade School of Fine Art.
Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian para fazer pesquisa sobre contos infantis, em 1975, e em Londres viria a conhecer o futuro marido, o artista inglês Victor Willing, cuja obra Paula Rego exibiu por várias vezes na Casa das Histórias, em Cascais.
A Casa das Histórias, que abriu em Cascais em 2009, num projeto do arquiteto Eduardo Souto de Moura, detém um acervo significativo de obras da autora, e tem vindo a apresentar exposições sobre o seu trabalho ou de outros, sobretudo portugueses, com quem tem afinidades.
Na pintura de Paula Rego surgem diversas imagens típicas da infância, por vezes fetichistas e até traumáticas, relacionadas com a violência, e os animais são frequentemente os protagonistas da sua linguagem pictórica.
Nas últimas décadas, a pintora abordou temas políticos, como o abuso de poder, e sociais, como o aborto - entre outros, do universo feminino, e o seu trabalho foi influenciado pelos contos populares, e também pela literatura, nomeadamente a escrita de Eça de Queirós, que a levou a pintar quadros inspirados em livros como "A Relíquia" e "O Primo Basílio".
Em 2010, foi ordenada Dama Oficial da Ordem do Império Britânico pela rainha Isabel II e, em Lisboa, recebeu o Prémio Personalidade Portuguesa do Ano atribuído pela Associação da Imprensa Estrangeira em Portugal.
Para incentivar os jovens estudantes a desenhar, em 2016 foi criado o Prémio Paula Rego, galardão anual para atribuir a estudantes da Faculdade de Belas Artes de Lisboa.
Paula Rego recebeu, em 1995, as insígnias de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, em 2004 a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, e em 2011 o doutoramento 'honoris causa' da Universidade de Lisboa, título que possui de várias universidades no Reino Unido, como as de Oxford e Roehampton.
Em 2019, foi distinguida com a Medalha de Mérito Cultural pelo Ministério da Cultura.
A sua obra está representada em múltiplas coleções públicas, a nível nacional e internacional.
O documentário "Paula Rego: Secrets and Stories", do realizador Nick Willing, filho da pintora e de Victor Willing, estreou-se a 25 de março de 2017, pela BBC, no Reino Unido, e depois em Portugal, em abril do mesmo ano.
Neste filme, Willing relata a vida da mãe de forma intimista, como mulher e artista, o relacionamento com o pai, a grande dedicação à arte e as fases de dificuldades sofridas, por falta de meios financeiros para cuidar da família, até ao progressivo reconhecimento em Portugal e no Reino Unido.
Em novembro de 2021, também a Galeria 111, que representou a pintora em Portugal desde o início da carreira, organizou uma exposição em sua homenagem, e da "relação de amizade e cumplicidade", que titulou "Saudades", com 27 obras que revisitam o seu percurso artístico desde os anos 1980 até trabalhos mais recentes, provenientes do atelier da pintora, em Londres.
Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?
Envie para geral@cmjornal.pt
o que achou desta notícia?
concordam consigo
A redação do CM irá fazer uma avaliação e remover o comentário caso não respeite as Regras desta Comunidade.
O seu comentário contem palavras ou expressões que não cumprem as regras definidas para este espaço. Por favor reescreva o seu comentário.
O CM relembra a proibição de comentários de cariz obsceno, ofensivo, difamatório gerador de responsabilidade civil ou de comentários com conteúdo comercial.
O Correio da Manhã incentiva todos os Leitores a interagirem através de comentários às notícias publicadas no seu site, de uma maneira respeitadora com o cumprimento dos princípios legais e constitucionais. Assim são totalmente ilegítimos comentários de cariz ofensivo e indevidos/inadequados. Promovemos o pluralismo, a ética, a independência, a liberdade, a democracia, a coragem, a inquietude e a proximidade.
Ao comentar, o Leitor está a declarar que é o único e exclusivo titular dos direitos associados a esse conteúdo, e como tal é o único e exclusivo responsável por esses mesmos conteúdos, e que autoriza expressamente o Correio da Manhã a difundir o referido conteúdo, para todos e em quaisquer suportes ou formatos actualmente existentes ou que venham a existir.
O propósito da Política de Comentários do Correio da Manhã é apoiar o leitor, oferecendo uma plataforma de debate, seguindo as seguintes regras:
Recomendações:
- Os comentários não são uma carta. Não devem ser utilizadas cortesias nem agradecimentos;
Sanções:
- Se algum leitor não respeitar as regras referidas anteriormente (pontos 1 a 11), está automaticamente sujeito às seguintes sanções:
- O Correio da Manhã tem o direito de bloquear ou remover a conta de qualquer utilizador, ou qualquer comentário, a seu exclusivo critério, sempre que este viole, de algum modo, as regras previstas na presente Política de Comentários do Correio da Manhã, a Lei, a Constituição da República Portuguesa, ou que destabilize a comunidade;
- A existência de uma assinatura não justifica nem serve de fundamento para a quebra de alguma regra prevista na presente Política de Comentários do Correio da Manhã, da Lei ou da Constituição da República Portuguesa, seguindo a sanção referida no ponto anterior;
- O Correio da Manhã reserva-se na disponibilidade de monitorizar ou pré-visualizar os comentários antes de serem publicados.
Se surgir alguma dúvida não hesite a contactar-nos internetgeral@medialivre.pt ou para 210 494 000
O Correio da Manhã oferece nos seus artigos um espaço de comentário, que considera essencial para reflexão, debate e livre veiculação de opiniões e ideias e apela aos Leitores que sigam as regras básicas de uma convivência sã e de respeito pelos outros, promovendo um ambiente de respeito e fair-play.
Só após a atenta leitura das regras abaixo e posterior aceitação expressa será possível efectuar comentários às notícias publicados no Correio da Manhã.
A possibilidade de efetuar comentários neste espaço está limitada a Leitores registados e Leitores assinantes do Correio da Manhã Premium (“Leitor”).
Ao comentar, o Leitor está a declarar que é o único e exclusivo titular dos direitos associados a esse conteúdo, e como tal é o único e exclusivo responsável por esses mesmos conteúdos, e que autoriza o Correio da Manhã a difundir o referido conteúdo, para todos e em quaisquer suportes disponíveis.
O Leitor permanecerá o proprietário dos conteúdos que submeta ao Correio da Manhã e ao enviar tais conteúdos concede ao Correio da Manhã uma licença, gratuita, irrevogável, transmissível, exclusiva e perpétua para a utilização dos referidos conteúdos, em qualquer suporte ou formato atualmente existente no mercado ou que venha a surgir.
O Leitor obriga-se a garantir que os conteúdos que submete nos espaços de comentários do Correio da Manhã não são obscenos, ofensivos ou geradores de responsabilidade civil ou criminal e não violam o direito de propriedade intelectual de terceiros. O Leitor compromete-se, nomeadamente, a não utilizar os espaços de comentários do Correio da Manhã para: (i) fins comerciais, nomeadamente, difundindo mensagens publicitárias nos comentários ou em outros espaços, fora daqueles especificamente destinados à publicidade contratada nos termos adequados; (ii) difundir conteúdos de ódio, racismo, xenofobia ou discriminação ou que, de um modo geral, incentivem a violência ou a prática de atos ilícitos; (iii) difundir conteúdos que, de forma direta ou indireta, explícita ou implícita, tenham como objetivo, finalidade, resultado, consequência ou intenção, humilhar, denegrir ou atingir o bom-nome e reputação de terceiros.
O Leitor reconhece expressamente que é exclusivamente responsável pelo pagamento de quaisquer coimas, custas, encargos, multas, penalizações, indemnizações ou outros montantes que advenham da publicação dos seus comentários nos espaços de comentários do Correio da Manhã.
O Leitor reconhece que o Correio da Manhã não está obrigado a monitorizar, editar ou pré-visualizar os conteúdos ou comentários que são partilhados pelos Leitores nos seus espaços de comentário. No entanto, a redação do Correio da Manhã, reserva-se o direito de fazer uma pré-avaliação e não publicar comentários que não respeitem as presentes Regras.
Todos os comentários ou conteúdos que venham a ser partilhados pelo Leitor nos espaços de comentários do Correio da Manhã constituem a opinião exclusiva e única do seu autor, que só a este vincula e não refletem a opinião ou posição do Correio da Manhã ou de terceiros. O facto de um conteúdo ter sido difundido por um Leitor nos espaços de comentários do Correio da Manhã não pressupõe, de forma direta ou indireta, explícita ou implícita, que o Correio da Manhã teve qualquer conhecimento prévio do mesmo e muito menos que concorde, valide ou suporte o seu conteúdo.
ComportamentoO Correio da Manhã pode, em caso de violação das presentes Regras, suspender por tempo determinado, indeterminado ou mesmo proibir permanentemente a possibilidade de comentar, independentemente de ser assinante do Correio da Manhã Premium ou da sua classificação.
O Correio da Manhã reserva-se ao direito de apagar de imediato e sem qualquer aviso ou notificação prévia os comentários dos Leitores que não cumpram estas regras.
O Correio da Manhã ocultará de forma automática todos os comentários uma semana após a publicação dos mesmos.
Para usar esta funcionalidade deverá efetuar login.
Caso não esteja registado no site do Correio da Manhã, efetue o seu registo gratuito.
Escrever um comentário no CM é um convite ao respeito mútuo e à civilidade. Nunca censuramos posições políticas, mas somos inflexiveis com quaisquer agressões. Conheça as
Inicie sessão ou registe-se para comentar.