A felicidade também está num salvo-conduto

O homem tenta comunicar: “Coimbra… Abazi…Maria Pureza”. Os militares portugueses destacados no Kosovo esforçam-se por o perceber, sem sucesso. A sensação é de que estaria a falar de futebol.

14 de outubro de 2007 às 00:00
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A primeira tentativa de diálogo perde-se e os tropas do 2.º Batalhão de Infantaria/KFOR seguem o programa estabelecido, enquanto o albanês regressa ao café de onde saíra a correr, pouco antes, ao ver os jipes com a Bandeira Portuguesa a encimar as antenas de comunicações.

Mas o habitante de Gnjilane/Gjilan – 47 quilómetros a sudeste de Pristina, capital da província sérvia – não desiste. Quando os militares voltam, passada meia hora, regressa à beira da estrada, apontando para cinco folhas que ajudarão a desbloquear a conversa.

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São salvo-condutos escritos em português, emitidos pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras em 1999. Skender Nuredini, de 37 anos, e a família estiveram refugiados em Portugal durante a guerra no Kosovo.

A história que o homem quer contar assume agora outra relevância e, depois de várias tentativas junto dos transeuntes, um jovem aceita ser nosso intérprete de Inglês-Albanês.

Skender, a sua mulher Fatime, de 33 anos, e os filhos –Grantit, Driton e Hazbije, com idades entre os 12 e oito anos – chegaram a Portugal no dia 6 de Maio de 1999. Na altura, o filho mais novo tinha apenas três meses de vida e a família incluía outras nove pessoas. A eles juntou-se, no dia seguinte, Selim Nuredini, irmão de Skender, que ficara retido pelos sérvios e foi descoberto pela Cruz Vermelha Internacional num campo de refugiados em Stankovic, na Macedónia, onde também esteve a restante família.

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Fugiam da guerra, como os outros 1256 refugiados acolhidos no nosso país, e ficaram alojados em Coimbra, no Instituto de Cegos do Loreto, transformado num centro de acolhimento, dirigido por Maria Pureza. O albanês, à época operador de máquinas e hoje segurança numa empresa, chegou apenas com a “roupa do corpo e pequenos sacos de mão com documentos”.

A INSISTÊNCIA

A Insistência de Skender em falar com os militares tem como principal objectivo mostrar o quanto gostou de Portugal: “Foram os três melhores meses da minha vida”, diz, salientando que conheceu o ex-jogador de futebol da Académica de Coimbra, Abazi – também albanês. “Os meus filhos gostaram muito de lá estar e todos queremos voltar, nem que seja apenas por duas semanas, mas não conseguimos falar com ninguém do centro de acolhimento. Não temos contactos”.

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Eduardo Abazi, que tem um café em Coimbra, conheceu o conterrâneo quando foi intérprete entre portugueses e refugiados, a pedido da Segurança Social – à semelhança do seu irmão e amigos imigrantes –, e gostava de o rever.

Skender – que vive num município com 130 mil habitantes, de grandes potencialidades agrícolas, onde nalgumas cidades convivem albano-kosovares e sérvios – recorda-se como “foi bem recebido e tratado, da cidade de Coimbra e da praia da Figueira da Foz”. Era costume passarem o tempo nas instituições de acolhimento e em cafés das redondezas.

Por isso, o seu “grande sonho” é regressar a Portugal, para descobrir outros mundos, como aconteceu há oito anos. A sua família, apesar de ter características urbanas, enfrentou algumas dificuldades de adaptação ao centro de acolhimento e passou por momentos insólitos, como aconteceu a outros refugiados.

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Os albaneses viveram como “um grande acontecimento” a aquisição de uma máquina de lavar roupa. “No dia da instalação, quiseram vê-la a funcionar e ficaram sentados muito tempo a olhar para o tambor a rodar”, recorda um dos portugueses que lhes prestou auxílio.

A PERMANÊNCIA

A permanência dos refugiados gerou algumas dificuldades, sobretudo devido às diferenças nos hábitos alimentares. Por exemplo, a carne de porco, habitual na ementa nacional, não faz parte da sua dieta. Por outro lado, embora fossem albaneses, havia muçulmanos e cristãos, o que causou conflitos – os mesmos que teimam em subsistir na província kosovar. Em relação aos portugueses, os problemas eram de comunicação e foram minimizados com uma brochura ilustrada com os principais objectos e palavras escritas nas duas línguas.

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A Segurança Social distribuiu-lhes ainda cópias do Fraseário Internacional de Emergência Médica.

As autoridades nacionais asseguraram-lhes dormida, alimentação, higiene, roupa, consultas médicas e alguns chegaram a ter aulas de português – não foi o caso de Skender, que apenas articula dois ou três nomes de pessoas. Além disso, a sua família recebeu 165 euros por mês de subsídio de apoio social, que poderia gastar como entendesse e muitos bens oferecidos por gente solidária.

Apesar de não ter autorização para trabalhar, o ex-operário de máquinas gostava de ajudar nas tarefas no centro de acolhimento do Loreto.

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A família Nuredini regressou ao Kosovo a 26 de Julho de 1999, levando mais do que trouxe, à semelhança dos outros refugiados. Cada um carregou 35 quilos de bagagem, o máximo permitido nos aviões, sobretudo roupa doada. Dos 1271 albaneses acolhidos em Portugal – 120 em instituições do distrito de Coimbra –, 987 regressaram ao Kosovo, 121 mostraram interesse em ficar e os restantes desapareceram dos centros de acolhimento, desconhecendo-se o seu paradeiro.

A 6 de Novembro de 1999, o Governo decretou o corte do subsídio aos que permaneceram e a 11 de Fevereiro do ano seguinte mudou-lhes o estatuto para imigrantes legais.

Hoje, como há oito anos, Skender continua a viver um futuro incerto, como o do Kosovo – uma província à espera da independência que a Sérvia recusa dar. Por isso, sonha com outras paragens: Tem Portugal “no coração” e deseja regressar. Quer revisitar o paraíso descoberto quando fugiu do inferno dos Balcãs.

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A PAZ QUASE INSUSTENTÁVEL

O Kosovo é uma província pobre (ainda) da sérvia que enfrenta três problemas fundamentais: a criminalidade, o desemprego e a instabilidade política. Como a família de Nuredini, a generalidade da população vive suspensa, até ao final do ano, de uma decisão internacional quanto à declaração da independência da região albano-kosovar. A maioria dos habitantes não tem emprego e as máfias do tráfico de droga, armas e pessoas vivem na impunidade.

ÊXODO NA EUROPA DEVIDO AOS BALCÃS

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Em 1989, depois de decretado o fim da autonomia do Kosovo pelo governo sérvio, 350 mil albano-kosovares exilaram-se na Europa ocidental e outras cem mil pessoas abandonaram a região durante a crise de 1998. Na sequência dos bombardeamentos aéreos da NATO, que começaram em 24 de Março de 1999 e duraram 78 dias, 848 mil foram obrigados a fugir ou expulsos para a Albânia (444 600), Macedónia (244 500) e Montenegro (69 900). Entre os refugiados acolhidos na Macedónia, 91 057 foram evacuados para 29 países, no âmbito de uma ponte aérea humanitária, tendo Portugal recebido 1 271 refugiados, segundo dados de 2001 do Conselho Português para os Refugiados. Mais de 600 mil regressaram ao Kosovo nas três semanas seguintes à assinatura do plano de paz. Ao mesmo tempo, 180 mil sérvios deixaram o Kosovo em direcção à Sérvia.

FORÇAS INTERNACIONAIS ENTRE ETNIAS INIMIGAS

60 %: A taxa média de desemprego no Kosovo – uma província pouco maior que o distrito de Beja – é de 60%, mas há zonas onde atinge os 90 %. Os melhores empregos são os oferecidos pelas organizações estrangeiras.

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10 %: A população sérvia – sem o Kosovo – é constituída por 7,5 milhões de pessoas; 83% são sérvias, 10% albano-kosovares e 7% pertencem a outras minorias. No Kosovo, 92% dos 2,1 milhões de habitantes são albano-kosovares.

15 MIL: A KFOR tinha 38 mil militares em Dezembro de 2001, que passaram para 25 mil em Junho de 2003 e 17 mil em final de 2003. Actualmente são 15 mil militares de 34 países (24 da NATO e dez não NATO).

290: Portugal está representado na força multinacional com 290 militares do 2.º Batalhão de Infantaria/KFOR, 29 dos quais são mulheres. A missão destes militares vai prolongar-se até Março do próximo ano.

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