A filosofia do ‘made in China’
Classe média é imensa, o apetite pelo consumo também. O PCC mantém o poder numa sociedade cada vez mais ocidental
A compra de 21,35% do capital da EDP pela China Three Gorges Corporation foi noticiada em Pequim como a primeira grande aquisição chinesa feita na Europa do Sul em plena crise da dívida soberana. Foi a primeira, por cerca de 2,7 mil milhões de euros, mas não será certamente a última, nem a maior. "Mais negócios poderão seguir-se, à medida que as debilitadas economias europeias procuram clientes para ajudar a resolver as suas dívidas", disse o jornal ‘China Daily' ao revelar o vencedor do concurso internacional para a privatização da eléctrica portuguesa, em Dezembro. Alguns analistas ocidentais garantem mesmo que "a China vai dominar o Mundo". As suas colossais reservas em divisas - 3,2 biliões de dólares (3 200 000 000 000) - dão para comprar muita coisa...
"Dominar o Mundo?!"... Liu Peidong, de 32 anos, ri-se: "Não se preocupem com isso. A China está a desenvolver-se muito depressa e para quem vê a China de fora o que sobressai é isso. Mas nós, cá dentro, sabemos que há muitos problemas". A conversa decorre num austero gabinete com uma secretária, duas cadeiras e um armário. A única decoração é um mapa-múndi colado na parede. Como todos os planisférios impressos na China, o oceano Pacífico está no centro, envolvido pela Ásia Oriental e a América do Norte.
Liu Peidong faz parte da emergente classe média chinesa, um estrato social eliminado durante a década da Grande Revolução Cultural Proletária (1966-76) e que representará hoje 250 milhões de pessoas.
MUITO PARA COMPRAR
Engenheiro, nascido em 1979 - o ano em que a China iniciou a política de Reforma Económica e Abertura ao Exterior - Liu Peidong é vice-director de marketing de uma empresa estatal de telecomunicações com cerca de 3000 empregados, cotada na Bolsa de Hong Kong e muito activa em África. Ele próprio viveu três anos na Etiópia: "É uma terra onde tudo parece mais puro. Gosto de África". O pai também é engenheiro, mas, na idade do filho, nunca imaginou poder ter automóvel ou casa própria.
O automóvel de Liu Peidong, um mini de cinco portas, custou 43 000 yuan (5300 euros) - o equivalente a oito meses de salário médio em Pequim (ou apenas três meses, para um quadro do sector financeiro). Trata-se de um QQ, uma das marcas chinesas mais baratas, fabricadas no leste do país. A casa, em contrapartida, foi "demasiado cara": entre a 3ª e a 4ª Circulares de Pequim, a vinte quilómetros do centro, o preço médio ronda os 35 000 yuan (4330 euros) por metro quadrado. Liu Peidong, a mulher e a filha vivem num apartamento de 124 metros quadrados, comprado em 2011 com um empréstimo bancário: "Antigamente as pessoas tinham pouco dinheiro, mas também havia poucas coisas para comprar. O emprego, a casa, a saúde e a educação eram asseguradas pelo governo. Agora temos de comprar tudo".
O "agora" começou em 1992, quando o Partido Comunista Chinês decidiu abolir o sistema de planificação central e converter-se gradualmente às "regras do mercado". Desde então a economia chinesa cresceu em média 10 por cento ao ano, sendo já a segunda maior do Mundo, a seguir aos Estados Unidos. É um crescimento único na História, mas, dividido pelo número de habitantes (1.336 milhões), o PIB per capita não chega a 5000 dólares - cerca de um quarto de Portugal! Cento e cinquenta milhões - onze por cento da população - vivem abaixo da "linha de pobreza" definida pela ONU (menos de um dólar por dia).
"A China tem ainda um longo caminho a percorrer", diz Liu Peidong. "Um hotel de cinco estrelas, na China ou na Europa, tem as mesmas infra-estruturas, mas a qualidade do serviço é diferente", exemplificou. A inovação é outro "problema": "Os professores, aqui, ensinam os estudantes a responder a perguntas e a passar nos exames; nos países ocidentais ensinam a fazer perguntas".
Entre 2006 e 2010, as universidades chinesas formaram 32,29 milhões de pessoas - mais do que nos vinte anos anteriores. Um diploma de ensino superior já não é, contudo, garantia de emprego. Muitas famílias optam por enviar os filhos para o estrangeiro, sobretudo para os Estados Unidos, Austrália, Reino Unido e Canadá. No ano passado havia 350 000 chineses a estudar fora do país.
"Várias colegas minhas foram para os Estados Unidos e os meus pais também queriam que eu fosse, mas recusei. Acho que é cedo demais para viver no estrangeiro. Talvez mais tarde, quando acabar o curso", conta You Dahui, 18 anos, aluna de português da Universidade de Economia e Negócios Internacionais (UIBE), em Pequim. O terceiro e penúltimo ano da licenciatura é em Coimbra, por acordo com a universidade local: "Não fui eu que escolhi, foi o português que me escolheu". You Dahui queria seguir Economia, mas não tinha notas para isso. Línguas Estrangeiras era a sua segunda escolha e no departamento de português, criado há três anos, havia vagas: "Não sabia nada, mas gostei da língua". O 1º semestre, concluído este mês, "correu muito bem". O mais difícil terá sido sair de casa dos pais, um engenheiro e uma bibliotecária de Zhengzhou, capital da província de Henan, a 750 quilómetros a sul de Pequim.
FILHO ÚNICO
Como quase todos os jovens urbanos, nascidos sob o drástico controlo da natalidade imposto pelo governo há três décadas ("um casal, um filho"), You Dahui é filha única. "Falo quase todos os dias com a minha família. Por telemóvel ou Skype". "Surfar" na internet é, aliás, um dos seus passatempos, juntamente com a natação, o karaoke e o cinema. O filme preferido de You Dahui, que já viu "mais de dez vezes", é o romântico ‘Orgulho e Preconceito', com actriz Keira Knightley.
No caso de Man Xiangyu, um colega de Shenyang, 900 quilómetros a norte de Pequim, o português foi a primeira escolha: "Desde o secundário que queria estudar uma língua estrangeira e, através do Google, descobri que em Angola e no Brasil também falam português". As propinas não são baratas - 12 000 yuan (1500 euros) por ano - mas "saber português dá um bom salário". A China tornou-se em 2009 o maior parceiro comercial do Brasil e dezenas de grandes empresas chinesas têm negócios em Angola. (Sem contar com Macau, há uma década, em toda a China havia apenas duas universidades com licenciaturas de português; hoje, só em Pequim há cinco).
Questionada sobre a possibilidade de a China vir a ser a maior potência mundial, You Dahui diz que "isso vai demorar muitos, muitos anos... Talvez um século". Man Xiangyu concorda e acrescenta: "Mas a China não fará como os Estados Unidos, que invadem outros países".
Liu Peidong evoca a História: "Mesmo nas dinastias mais poderosas, como a Tang (há mais de mil anos) ou a Ming (1368-1644), a China nunca invadiu outros países". Além disso, "o Mundo tornou-se uma comunidade e o que acontece na Europa ou em qualquer outra parte afecta o resto". Na sua opinião, "a China tem muitos problemas", mas após três décadas de Reforma e Abertura "está no bom caminho". E dentro de trinta anos, como será a China? - "Gostaria que fosse como Hong Kong, por exemplo. Uma sociedade onde tudo é ordenado e feito de acordo com a lei".
COMUNISTAS, REBELDES E DISSIDENTES
O Partido Comunista Chinês está implantado em todas as instituições, dos bancos aos tribunais, mas um estrangeiro quase não nota a sua presença. Vêem-se mais foices e martelos no Alentejo do que em Pequim.
Este ano, pela primeira vez, o industrial mais rico do país, com uma fortuna estimada em 7,4 mil milhões de euros, Liang Wengen, deverá entrar para o Comité Central. No poder desde 1949, o PCC é o maior partido político do Mundo, com mais de 80 milhões de filiados. "Se acrescentarmos os familiares faz 300 milhões. Não é um partido, mas parte do povo. As suas debilidades são as debilidades do povo", disse Han Han, o mais popular blogger da China, nascido em 1982.
Escritor e piloto de automóveis, Han Han foi uma das "100 personalidades mais influentes do Mundo" eleitas pela ‘Time' em 2010. Num gesto raro nas famílias urbanas, abandonou a escola sem completar o ensino secundário, tornando-se num símbolo de rebeldia. Em Dezembro, a propósito da ‘Primavera Árabe', escreveu que, ao contrário do que acontecia na Líbia e Egipto, "a China não tem um ditador contra o qual se concentre o descontentamento popular". (O PCC não abdica do seu "papel dirigente", mas os cargos já não vitalícios e os líderes do país reformam-se ao fim de dois mandatos de cinco anos).
Sidney Rittenberg, antigo tradutor e jornalista da Rádio Pequim, foi o único americano autorizado a filiar-se no PCC, na década de 1940, e conheceu pessoalmente os líderes históricos da revolução. Em 1980 regressou aos Estados Unidos, onde criou uma empresa de consultoria sobre a China. Há cerca de dois anos, em Pequim, partilhou as suas impressões com o Clube dos Correspondentes Estrangeiros na China: "Os chineses não morrem de amores pelo Partido Comunista, mas apoiam-no porque o Partido desenvolveu a economia e elevou o estatuto internacional da China. Este país nunca teve tantas liberdades individuais como agora. Toda a gente critica o governo, até os polícias se queixam, mas desafiar o poder do Partido, isso não é permitido e acaba na prisão".
O NOBEL CHINÊS
O Nobel da Paz 2010, Liu Xiaobo, condenado a onze anos de prisão por "subversão", percorreu esse caminho. Ex-professor universitário e crítico literário, Liu Xiaobo foi preso em 2008, após divulgar na internet um abaixo-assinado apelando ao "fim do regime de partido único", "independência do poder judicial" e outras "reformas políticas". O manifesto, intitulado ‘Carta 08', inspirava-se na ‘Carta 77' lançada por Václav Havel na Checoslováquia socialista. "A Checoslováquia estava sob a tutela de uma grande potência e com a economia estagnada. Não é altura de termos uma ‘Carta 77'", disse um governante chinês.
Han Han desiludiu parte dos admiradores com as suas últimas posições. "Parece que ele se rendeu", comentou o artista plástico Ai Weiwei, um persistente crítico do PCC, detido este ano quase três meses por "suspeita de crimes económicos". Han Han continua, contudo, a defender "reformas ousadas", em particular na área cultural: "Quanto menos restrições, melhor".
OS BASTIDORES DAS NEGOCIAÇÕES COM CHINESES
O vermelho é uma cor festiva para o povo chinês. Significa felicidade e sorte. E vermelhos eram os copos, os guardanapos, os marcadores de pratos e a cor predominante das flores dos centros de mesa a decorar o almoço oferecido pela delegação chinesa - a 30 de Dezembro último - para comemorar a compra de 21,35% do capital da EDP. Pendurado na mesma sala do Hotel Tivoli, em Lisboa, um símbolo feng shui trazia harmonia ao espaço, boas energias e prosperidade financeira. Da sua cultura milenar não prescindiu a comitiva da China Three Gorges (CTG).
Em todos os grandes negócios com chineses há sempre uma parte social - como um almoço -, explica o presidente da Fundação Oriente. Carlos Monjardino conhece as raízes deste povo que trata os portugueses por "velhos amigos" e que ao nosso País "dão mais importância do que a outro qualquer país da Europa". Razões históricas. "Com a questão da EDP, houve uma escolha financeira e nisso sabemos que os chineses, pela vontade que têm de entrar nos sectores-chave das economias fora da China - como transportes e energia - estão dispostos a pagar um prémio para ter uma palavra a dizer", considera Monjardino.
Um prémio - como agradecimento - receberam também os jornalistas e os funcionários que apoiaram a CTG na organização do almoço festivo no Tivoli: dois lenços ‘made in China', fabricados pela Hangzbou Dujinsheng Industrial. "As ofertas de valor simbólico são uma manifestação de confiança e de afecto. Estamos, por isso, perante uma atitude genuína e generosa" - explica Manuela d'Oliveira Martins, directora do Museu do Oriente.
NÚMEROS DE SORTE E AZAR
João Amorim, também do Museu do Oriente, conta que a China sofreu uma forte evolução desde os anos 80. "É certo que existe alguma fixação por certos números ou cores, como o 4 - que é de evitar -, o 8 - que é de sorte -, ou a cor vermelha".
"Nunca verá um chinês a fechar um contrato, em qualquer mês, num dia 14 - o número da morte" -, acrescenta o deputado do PS Eduardo Cabrita, que em Macau desempenhou diversos cargos na área da Justiça. "É frequente não haver o 14º andar em alguns prédios de Pequim ou Hong Kong. Passam do 13º para o 15º andar". Superstições à parte, Eduardo Cabrita reconhece no povo chinês o carácter de negociadores difíceis. "É preciso criar mecanismos de confiança. Ter noções de chinês é sinal de interesse - acontece que o número de diplomatas chineses que sabem português bate de longe o de diplomatas portugueses a falar chinês". A língua que nos une tem sido a inglesa.
Mas assiste-se a uma tendência de mudança. "Haverá hoje cerca de 1600 alunos de mandarim em Portugal", indica João Amorim. "E o número de alunos de português na China, e particularmente em Macau, aumentou substancialmente na última década. Só em Macau existem hoje vários milhares de chineses - e não só - a aprender português. A razão é simples: os negócios no mundo lusófono e Pequim utiliza Macau como importante base para este efeito".
Mas Macau (e também Hong Kong) tem outra atracção. O jogo representa o desafio em que a sorte, o risco e a destreza física e intelectual se conjugam. "Estas características fazem parte da cultura chinesa e consequentemente dos seus jogos", explica a directora do Museu do Oriente. "Os jogos, sobretudo de casino, representam no actual contexto da sociedade chinesa a forma mais fácil de ganhar dinheiro e atingir um determinado estatuto social. Representam ainda uma forte componente no de-senvolvimento económico das regiões de Hong Kong e Macau".
Carlos Monjardino, que em Macau foi secretário de Estado adjunto para a Economia e Finanças e depois encarregado do Governo, recorda que no Oriente teve "várias situações embaraçosas em termos de política local, pela vontade dos chineses em querer saber o que se estava a passar. Às vezes, era um bocadinho difícil de gerir. Mas eu defendo a necessidade de ser firme em relação aos chineses. Pode ser incómodo, mas eles respeitam. Quando eles vêm negociar, já têm os parâmetros todos bem definidos em relação ao que pretendem. Não são como nós, que estamos sempre a improvisar".
Opinião partilhada por uma fonte contactada pela Domingo, que conhece de perto as negociações para a declaração conjunta luso-chinesa sobre a questão de Macau. "É preciso estudar como negociar com eles", acrescenta. "Eles primeiro pré--acordam os moldes da negociação. Procuram que haja um clima positivo para que possam partir para uma negociação com confiança. Mas quando a discussão sai fora das regras pré--acordadas, não se importam de manifestar o incómodo". A par desta assertividade, prezam as tradições do seu povo: "Quando eles abrem um negócio vão sempre consultar adivinhos. Vão saber qual o melhor dia, a melhor hora". Fazem tudo para não serem surpreendidos.
CHINESES QUE VIVEM POR CÁ
O edifício que albergou em tempos o Salão Lisboa está hoje ocupado por um bazar de roupa chinesa para revenda. Portas ao lado há uma loja de lingerie marota onde se fala mandarim, um contabilista chinês que partilha espaço com a redacção do jornal para a comunidade chinesa, um rol de lojas de bijutaria entremeadas por consultórios de medicina oriental. Estamos na ‘Chinatown' da Mouraria, na capital portuguesa.
Havemos também de passar por uma livraria exclusivamente chinesa - partilha a porta com uma loja de telemóveis (chinesa) onde os dicionários saem como pãezinhos quentes - e por um spa chinês. David Li nasceu em Portugal, filho de chineses que aqui chegaram há cinquenta anos. Conta que, apesar disso, a mãe pouco fala português e que "99% dos chineses que chegam ao País só se relacionam entre a comunidade". Conhecedor dos dois mundos também desmistifica a morte dos conterrâneos dos pais. "Os chineses não morrem em Portugal, porque preferem ir morrer à terra. A pessoa que está doente vai ao médico à China, porque o tratamento é feito no mesmo dia em que se descobre a doença, e se for grave já não regressa a Portugal, fica lá para morrer".
Zhuo, de 36 anos, garante que já viu chineses em cemitérios portugueses, mas adianta que a maioria prefere ser enterrado na China - "ou vão os corpos, ou vão as cinzas" - explica o comerciante, há 14 anos em Portugal, casado e pai de duas filhas "que estão na creche portuguesa". Quando a conversa mete dinheiro, Zhuo abana a cabeça aos bancos. "O chinês prefere pedir dinheiro a amigos. Um empresta cinco mil, o outro sete mil" e assim se reúne o necessário "para abrir negócio ou comprar" o que não puder ser a pronto. A união faz a força e também se vê à hora de almoço.
Chen está a guardar a loja de um conterrâneo enquanto este almoça. "Trabalho mais do que os portugueses", diz. "Os jovens daqui não gostam de trabalhar, pai e mãe é que tem de trabalhar por eles" - acrescenta Zhuo, que ao fim-de-semana passeia no jardim e no centro comercial. "Até já fui ao MacDonald's", brinca. Ainda assim, a comida chinesa leva vantagem à mesa. "Mas gostamos de bife da vazia e bacalhau assado", acrescenta Chen, que também devora séries chinesas na internet. Enquanto que Zhuo não se imagina a regressar à China num futuro próximo - "Só depois de me reformar e ter muito dinheiro" - para Elisa Chuang, Portugal já é a sua casa.
Proprietária de uma agência de viagens chinesa, que vende passagens "a preços competitivos" para vários locais do Planeta, e de uma mediadora imobiliária, aterrou no Ocidente com 13 anos, quando o pai "veio com contrato para cozinheiro". Por cá fez a vida - apesar de ter casado com um conterrâneo e de ter feito a escola chinesa por correspondência - e por cá quer ficar. Aos filhos pagou "a melhor" educação. "Estudaram no St. Julian's School, em Carcavelos, e agora estão em Inglaterra para estudar Engenharia. Queria que tivessem todas as oportunidades".
Yong Chang Luans e Luzhen Fu têm as filhas por perto. A mais velha numa escola pública, a mais nova numa privada. Começaram por gerir "um centro de estética pequenino", mas em Setembro abriram um spa que teve honras de notícia no jornal chinês e trajes tradicionais na inauguração. "Os chineses gostam de cuidar da mente e do corpo, mas também começam a vir portugueses e outras nacionalidades".
SETE DIAS DE TRABALHO
Isabel Xupan, 14 anos, e a irmã Mariana, de nove, estão de olhos fixos no monitor a ver um filme chinês na loja dos pais, na Praça do Comércio, em Coimbra. Filhas de um casal chinês que reside em Portugal há 20 anos, falam português na perfeição. Frequentam a escola, mas os amigos são da comunidade chinesa residente na cidade. Passam os tempos livres na loja dos pais, normalmente a ver televisão. Mas em casa não entram canais portugueses. "Nem sabemos ver filmes em português", diz Junwei Pan, 41 anos. A família não tem férias nem folgas, trabalha "todos os dias, de manhã à noite".
Uma vez por mês vão a Porto Alto (em Benavente, onde há uma plataforma logística para abastecer as lojas de produtos asiáticos do país) fazer compras para a loja e aproveitam para visitar a família em Lisboa. São os únicos passeios. O objectivo do casal é ganhar dinheiro para regressar à China. No máximo aos 55 anos. "Não quero trabalhar até morrer. Uma pessoa com 65 anos é velha", diz Junwei. Por norma, os seus compatriotas regressam ao país entre os 50 e os 55 anos.
"Não morrem cá de velhos. Se morrerem em Portugal é de um problema diferente", garante. Quando chegar o momento de voltar ao seu país, Junwei vai sentir sobretudo falta dos serviços de saúde: "Aqui, o hospital atende o rico e o pobre. Na China é preciso ter muito dinheiro".
Em 20 anos foi à terra duas vezes. No início, a trabalhar em restaurantes em Lisboa não ganhava "para comer", mas há três anos conseguiu montar um negócio com a ajuda da família, que lhe emprestou dinheiro para não ter de recorrer ao crédito bancário e já levou os filhos a conhecer a China. "Queremos que conheçam as nossas tradições, mas têm nacionalidade portuguesa", diz, reconhecendo que "o Mundo não tem portas quando se tem um passaporte português".
A ‘CLISE' EM PORTUGAL
"O negócio está mau, vende-se pouco e os clientes são cada vez menos. Penso até começar a fechar ao domingo, porque não há movimento", afirma Zhong Huang, conhecido por ‘António Chinês' entre os vizinhos e amigos. Os efeitos da crise nas vendas da loja que abriu há 7 anos, fazem-no ponderar o regresso às origens. "Em Portugal, está tudo a aumentar: impostos, rendas, luz, água. Assim é impossível sobreviver". Natural da zona de Xangai, Zhong Huang chegou há dez anos para trabalhar como cozinheiro num restaurante em Lisboa. Radicou-se em Almeirim, onde reside com a mulher e dois filhos nascidos em Portugal. Gosta do país, mas "já não compensa" estar a tantos quilómetros da família, que só visita de dois em dois anos, "porque as viagens são caras".
Xiaoxim Guo, 40 anos, e a mulher Guocong Xu, 37, estão radicados há 12 em Odemira, no Alentejo, onde gerem a maior loja chinesa daquele concelho. Amantes confessos de Portugal - dois dos três filhos chamam--se Susana e João Filipe - escolheram o país há 17 anos. Xiaoxim foi pela primeira vez à praia em terras lusas. "Quando cheguei, fui trabalhar com um tio em Almada e a primeira vez que fui à praia foi na Costa da Caparica. O clima aqui é muito melhor". Os filhos do casal "são mais portugueses do que chineses", bons alunos que nos tempos livres dão uma ajuda no negócio. "Vemos os ‘Morangos com Açúcar', que é o que os filhos gostam. No Meo dá para ver canais chineses", diz o comerciante, que ganhou em Portugal paixão pelo futebol. "Cá em casa somos todos do Benfica".
Jenny Chu vive em Portugal há mais de 20 anos, no Algarve, e o último namorado que teve foi um português. "Chorei por ele durante um ano", confidencia a chinesa de 48 anos, que se mudou de Hong Kong nos anos 80. O desgosto não travou os negócios da asiática, que gere actualmente o restaurante Ali Baba, em Albufeira, e se prepara para abrir novo negócio. "A minha mãe trouxe-me e agora não quero voltar. Em Hong Kong há muita pressão".
Jenny dorme cerca de 5 horas por dia. O resto do tempo é passado a trabalhar e, por vezes, no computador. Quanto à relação com os portugueses, garante ter sido sempre boa. "Não vejo competição, apenas alguns ciúmes quando alguém tem sucesso". Dá trabalho a quatro pessoas, entre elas o casal Junchun Wang e Jian Xia Ji, que se prepara para ter o segundo filho. "Acham que Portugal é um excelente país para educar as crianças", refere Jenny. O dinheiro para investir "veio da família".
Nos bancos portugueses teve pouca sorte. "Tentei duas vezes pedir empréstimos, mas disseram-me que não tinha condições para isso". Por estranho que possa parecer, garante que nunca compra em lojas chinesas e só foi uma vez a um hospital português para tratar "um pequeno ferimento na cabeça". Segundo Jenny, "o sistema de saúde é muito estranho, porque mandam as pessoas para um sítio e depois para outro e nada se resolve". O ano passado, depois de sete anos de trabalho sem parar, tirou um mês de férias e viajou pela África do Sul.
Li Shuang Yan, 31 anos, veio de Xangai para o Porto há mais de dez anos. Em Portugal conheceu o marido, também chinês, casou e teve três filhos. Li trabalhou no restaurante dos pais no Porto, depois abriu uma loja em Coimbra. Regressou à Invicta e abriu há ano e meio um estabelecimento. Contou com a ajuda da família e, depois, de um crédito bancário para criar o negócio. "Temos fornecedores portugueses que deixam pagar em mensalidades, o que é bom. Como também mantemos um negócio na China, vamos todos os meses tirando dinheiro daqui e metendo dinheiro lá e vice-versa".
Para já não pensa regressar. "Os meus pais é que estão reformados e querem voltar para Xangai, porque não conseguem renovar o cartão de residência sem estarem a trabalhar, é injusto. Viveram cá 25 anos". Os filhos "têm amigos portugueses, mas alguns colegas chamam--lhes nomes por serem chineses. Uma vez até bateram ao meu filho". O negócio já viu melhores dias, mas o pior, alerta, é o facto de não conseguir arranjar trabalhadores. "Pus um anúncio, mas os portugueses não gostam de trabalhar. Tive uma funcionária que estava sempre no armazém a jogar e e a falar ao telemóvel. Despedi-a e ainda pôs uma queixa contra mim".
UM ABRAÇO QUE PROMETE REPETIR-SE
O acordo assinado a 30 de Dezembro por António Mexia, presidente da EDP, e Cao Guangjing, presidente da China Three Gorges (CTG), rendeu 2700 milhões de euros ao Estado português, que cedeu uma participação de 21,35% das acções da EDP. A CTG vai também investir numa nova fábrica de turbinas eólicas em Portugal. Este poderá ser apenas o primeiro de uma série de novos negócios com capital chinês: fala-se do banco BCP, da REN, da GALP e até de uma fábrica de autocarros em Portugal.
SIGNO DRAGÃO ACONSELHA A TER PRUDÊNCIA NOS NEGÓCIOS
A importância dos signos na vida dos chineses, no destino e nos negócios, tem vindo a perder-se por força do ritmo de vida imposto, em grande parte, pela globalização. A 23 de Janeiro inicia-se o ano do Dragão. E celebra-se o Ano Novo Lunar, a festa de acolhimento ao Dragão, "a quem devem ser endereçadas todas as atenções a fim de captar os bons augúrios - sorte, abundância e prosperidade" -, contextualiza a directora do Museu Oriente, Manuela d'Oliveira Martins. É nesta época que as famílias se descolam dos grandes centros urbanos para as suas terras de origem, levando presentes para oferecer.
"A confraternização faz-se em família, em frente à televisão, aguardando a passagem do ano e comendo os tradicionais pratos, todos eles concebidos com alimentos auspiciosos". E nos negócios, que influência tem o Dragão? "O seu poder, segundo os mestres de feng shui, é muito forte nos anos em que reina. Aconselham prudência nos negócios e, aos governos, a procura de harmonia social" - observa Manuela d'Oliveira Martins.
"NA CHINA FALTA A EDUCAÇÃO DO CORAÇÃO, DO AFECTO"
A filha de Cátia Pinto (o nome herdou do marido português que conheceu na Coreia) estudou em escolas portuguesas, embora frequentasse a escola chinesa ao fim-de-semana por causa do mandarim. "A escola lá é mais severa, os professores dizem ‘Cala-te, não fales!' e os alunos obedecem. Cá, os professores não podem bater, nem castigar e os filhos são tratados como príncipes e princesas. Por outro lado, acho que na China falta a educação do coração, do amor e do afecto", explica Cátia, de 50 anos. A asiática aponta também o dedo "aos chineses que vêm para Portugal e mandam os filhos para a China porque querem ter tempo para trabalhar. Está mal, os filhos têm de estar ao pé dos pais, não a ser criados pelos avós do outro lado do Mundo".
MÁXIMAS CHINESAS
"O povo, e só o povo, constitui a força motriz da criação universal" (Mao Tse-tung)
"As oportunidades multiplicam-se à medida que são agarradas" (Sun Tzu)
"Se o inimigo deixa uma porta aberta, precipitemo-nos sobre ela" (Sun Tzu)
"A língua resiste porque é mole, os dentes cedem porque são duros" (Provérbio popular chinês)
"O rio atinge os seus objectivos porque aprendeu a contornar os obstáculos" (Lao Tzu)
"Há três coisas que jamais voltam: a flecha lançada, a palavra dita e a oportunidade perdida" (Provérbio popular chinês)
"A quem sabe esperar, o tempo abre as portas" (Provérbio popular chinês)
"Escava o poço antes que tenhas sede" (Provérbio popular chinês)
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