A obsessão de um pai pela filha desaparecida

Alice tem 3 anos quando desaparece. Assim. Sem mais nem menos. Desaparece deixando os pais órfãos. Como é que uma mãe e um pai superam a ausência da filha? Não superam. Não ultrapassam. Respiram esperança cada vez que alguém lhes sussurra que viu a pequenina algures.

02 de outubro de 2005 às 00:00
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Arranjam lugar cativo perto do telefone e anseiam que este toque. Que do outro lado da linha surja um sinal, uma voz. E quando nada dá certo, os pais, apenas decidem – ou não – continuar a viver. É possível viver com a ausência de um filho? Com a incerteza se este, está ou não vivo?

Mário e Luísa são um casal jovem que reside na zona do Cacém. Um dia, Mário leva a filha Alice – vestida com um casaco azul – ao infantário. Nunca mais voltam a vê-la. Seis meses e meio mais tarde – exactamente 193 dias – começa, aos olhos do telespectador, o enredo de ‘Alice’, um filme realizado por Marco Martins e com estreia marcada no País para a próxima quinta-feira, 6 de Outubro.

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Esta película funciona como uma viagem. Uma viagem à insustentável dor de um pai e de uma mãe e ao seu inconsciente. Uma mãe que desperta mal amanhece e pede ao marido que leve “um copo de leite morno” à filha. A mãe volta a adormecer, perdida na sua amargura e esquecendo, por breves instantes, que a filha já não mora ali.

O papel do pai – em particular da sua obsessão – revela-se central nesta trama. Ao contrário do que é habitual, aqui, é o pai e não a mãe que fica obcecado e que busca um sinal, uma pista, uma luz…

É este mesmo pai que à noite pisa o palco para fazer os outros rir e durante o dia mantém uma rotina inalterável: faz o caminho até ao infantário, espalha e distribui cartazes com a foto da filha e filma.

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Filma tudo e todos. Instala onze câmaras pela cidade de Lisboa, em casa de amigos ou em locais que conhece. E todos os dias visiona as cassetes buscando no meio daquela multidão de passos apressados e rostos anónimos o rosto que o persegue há exactamente 193 dias: o da filha que, entretanto, completara 4 anos de idade.

Durante quase duas horas, o telespectador acompanha a busca louca, por vezes irracional, do pai pela filha. A obsessão de um homem que recorre a um sistema paralelo para encontrá-la. Para ele, esta busca incessante é a única arma que possui. É a única forma de se manter vivo. E quando está perto, muito perto, de uma eventual verdade, recua. Porque já não acredita, porque está tremendamente cansado e porque simplesmente no meio daquele desgaste em que se encontra, desiste. Mas não esquece. Jamais esquecerá Alice.

Marco Martins, 33 anos, jovem realizador com um vasto curriculum, pegou no caso de Rui Pedro – o menino que desapareceu a 4 de Março de 1998 da Lousã – e ‘transformou-o’ em ‘Alice’. Com esta longa-metragem arrecadou o Prémio Regards Jeunes para Melhor Filme da Quinzena de Realizadores no Festival de Cannes 2005.

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Além da trágica história em si – que retrata a dor dos pais perante o desaparecimento de um filho – este filme prima também pela forma como foi filmado, pelos azuis-cinzentos da fotografia e, claro, pelo desempenho bestial dos actores, em particular dois deles: Nuno Lopes e Beatriz Batarda que representam o pai e a mãe. Curiosamente, Nuno Lopes foi filmado no meio das multidões que palmilham Lisboa em hora de ponta. À saída do metropolitano ou à entrada do comboio que liga a cidade com os centros suburbanos. Sem recurso a figuração porque, tal como Marco Martins em tempos afirmou, “os subsídios não dão para tudo”. E assim se prova que com profissionalismo consegue-se um excelente trabalho.

Apesar do papel principal pertencer a um Nuno Lopes maduro – completamente distinto das telenovelas ou dos ‘sketchs’ do programa de Herman José – e por isso, uma enorme revelação; a verdade é que os aplausos também se concentram nas poucas mas intensas aparições de Beatriz Batarda. O papel de mãe desesperada representado por esta actriz é simplesmente brutal. Resta também salientar a música de Bernardo Sassetti que acompanha as emoções de todos os intervenientes.

Do elenco fazem ainda parte Miguel Guilherme, Ana Bustorff, Laura Soveral, Gonçalo Waddington, Carla Maciel, José Wallenstein, Clara Andermatt, Ivo Canelas, Teresa Faria e Carlos Santos.

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OS 'RUIS PEDROS' DE PORTUGAL

Marco Martins inspirou-se na história de Rui Pedro – o menino que desapareceu da Lousã a 4 de Março de 1998 – e das tentativas infrutíferas de mãe para o encontrar. Entrevistou-a e conseguiu transmitir na perfeição as angústias de quem se vê privado do riso de um filho.

Milhares de fotografias de crianças povoam os ‘sites’ nacionais e internacionais. Em Portugal, por exemplo, o ‘site’ da Polícia Judiciária dá-nos conta de sete crianças desaparecidas, entre as quais o Rui Pedro. Mas, o caso mais longo que é apresentado é o de Cláudia Alexandra Silva e Sousa, uma menina de Oleiros – na altura com 8 anos – que desapareceu em 1994.

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“Desde 5 de Maio de 2004 chegaram ao Instituto de Apoio à Criança 31 casos de crianças desparecidas”, disse Manuel Coutinho, coordenador da SOS Criança. O inspector-chefe Dias André revela que na área de intervenção da Polícia Judiciária de Lisboa (cobre as zonas de Elvas, Évora, Vila Viçosa, Portalegre, Santarém, Lisboa e Cascais), em 2004 foram registados quatro casos de desaparecimentos de menores e em 2005, 24: “Quase todos estão relacionados com o poder paternal. Ou são adolescentes que saem uns dias de casa. Na realidade, tirando um caso em que nada podemos fazer, não temos situações alarmantes”, referiu.

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