Ana Moura: “A timidez faz parte do meu canto”

Continua a desconstruir o fado com o aplauso de todos. Ana Moura é hoje o maior fenómeno da canção de Lisboa

29 de novembro de 2015 às 16:30
Ana Moura Foto: Frederico Martins
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Deu mais de 400 concertos em seis anos, dentro e fora do País. O disco ‘Desfado’, de 2012, foi o álbum nacional mais vendido dos últimos cinco anos, atingindo cinco platinas, quase 77 mil cópias vendidas, e mantendo-se há 145 semanas consecutivas no top de vendas português. Atingiu também o primeiro lugar das tabelas de world music em Inglaterra, Espanha e EUA. Ana Moura é hoje o maior fenómeno do fado. Há três anos, começou a desconstruir a canção de Lisboa, e por aí segue agora com o novo disco: ‘Moura’.

Com tantos feitos na carreira, pode-se dizer que a Ana é, a esta altura, uma ‘Moura’ encantada?

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Sim. Acho que quando o encanto acabar isto deixa de ter graça. O encanto faz parte. É bom sermos surpreendidos constantemente. Não estava à espera, por exemplo, de que o ‘Desfado’ [disco de 2012] tivesse sido recebido tão bem e muito menos esperava que hoje, três anos depois, ainda estivesse na lista dos dez discos mais vendidos.

Este encanto de que fala significa deslumbramento?

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Acho que não. Tenho a certeza de que nunca me deslumbrei. Gosto mais da palavra encantamento.

Sente-se um fenómeno?

(Risos). Não. Tenho muita dificuldade em ver-me de fora. Só quando os outros me chamam a atenção é que eu penso melhor nas coisas. O Carlos do Carmo, por exemplo, perguntou-me: "E agora o que é que vai acontecer ao fado depois do ‘Desfado’, o que é que se vai passar a seguir?" (risos).

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Mas este novo disco parece um ‘Desfado Parte II’. Esta coisa de desconstruir o fado é um caminho irreversível?

Quis que este disco tivesse uma borboleta na capa precisamente para simbolizar a transformação, pela simbologia da metamorfose. Em relação ao ‘Desfado’, este disco tem alguns compositores repetentes, tem o mesmo produtor, mas musicalmente tem algumas coisas diferentes.

E que coisas são essas?  

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O ‘Desfado’ era mais cru. Este já tem guitarras elétricas, por exemplo. A própria guitarra portuguesa foi tratada de forma diferente, com um amplificador de guitarra elétrica, o que lhe dá um som diferente. Em termos de arranjos, há pequenos detalhes bastante diferentes. O som que dá introdução ao disco, por exemplo, é o feedback de uma guitarra elétrica com o arranque de uma gravadora de fita.

É um disco mais livre?

Sim, agora não quero outra coisa (risos). Há aqui detalhes encantadores que eu não tinha feito no ‘Desfado’. Acho que este disco ainda é mais arrojado do que o anterior.

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E sente que já criou um fado seu?

Sim. Sinto isso cada vez mais. Esse é o meu objetivo principal, e acho que estou a consegui-lo.

E esse fado é bem compreendido por todos?

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Sinceramente, deixei de pensar nisso. Depois de gravar o ‘Desfado’, confesso que tive algum receio, mas as pessoas compreenderam-no bem. Acho que já perceberam que não tenho qualquer pretensão de mudar o fado. Simplesmente estou a seguir o meu caminho. O fado está cheio de histórias destas. A própria Amália chegou a ser contestada em vários momentos da sua carreira.  

A Ana volta a trazer para o fado gente que não é do fado, como o Jorge Cruz, que assina o single ‘Dia de Folga’ e que é o vocalista dos Diabo na Cruz, uma banda de folclore punk. Isto é por irreverência ou por prazer pessoal?

Esta gente toda tem uma linguagem muito portuguesa, só que é uma linguagem muito atual e com a qual eu também me identifico muito. O ‘Dia de Folga’ não podia ser mais português, com todas aquelas personagens. Para mim, todos estes compositores têm uma veia fadista.

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Pela primeira vez, gravou um tema do Carlos Tê, o letrista de Rui Veloso!

O Carlos Tê foi o primeiro letrista que cantei, porque quando era pequenina cantava muito as músicas do Rui. Este tema [‘O Meu Amor foi para o Brasil’] foi uma obra do acaso. Foi a Manuela Azevedo dos Clã que me mostrou essa música, porque não tinha chegado a gravá-la e achou que eu ia gostar. Apaixonei-me de imediato, claro. Pedi ao Tê para a gravar e ele disse-me logo que sim. Curiosamente, ainda não nos conhecemos pessoalmente. Estamos para combinar um café.

Começou a cantar naqueles que hoje são conhecidos como os serões da família Moura, era ainda a Ana uma catraia. O que é que ainda existe dessa menina?

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Ainda existe muito. Aliás, ainda existe tudo. É engraçado, porque eu pensava que era uma miúda extrovertida. Tenho um irmão três anos mais velho que eu. Naquela altura das tertúlias com os meus pais e os amigos deles, era o primeiro a pedir para vir para casa. Eu ficava até às tantas a dançar, a cantar e a tocar com o meu pai. Por isso, até há muito pouco tempo tinha a ideia de que tinha sido uma criança extrovertida (risos). 

E porque é que hoje diz o contrário?

Há uns tempos, encontrei-me com umas amigas dessa altura que me disseram: "Ai, que engraçado, continuas a ser a miúda tímida de sempre." Pelos vistos, já o era na altura, mas não sabia (risos).

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E é fácil ser tímida e estar sempre rodeada de multidões?

Hoje reconheço que posso ser tímida, mas sou também uma pessoa que gosta muito de conviver. Sou sociável, mas não propriamente social. Acho que essa é a melhor forma de me descrever.

E como é que combate essa timidez quando está no palco?

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Não combato. Eu hoje aceito-a. Aprendi a aceitá-la com o tempo e a viver com ela. Todas as pessoas que lidam comigo sabem que tenho este traço de personalidade. E é engraçado, porque hoje eu até percebo que a timidez faz parte inclusivamente do meu canto. Há uns anos, dizia-se muito que o artista não podia ser tímido, e eu sou a prova de que isso não corresponde à verdade (risos). E não acho que isso tenha de ser uma coisa que tenha de ser mudada.

Então quer dizer que aquela sensualidade muito característica da voz da Ana Moura, afinal, é timidez?

A minha voz também tem uma dose de timidez, sim. Só que é contida.

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Num dos fados deste novo disco, escrito por Manuela de Freitas, canta: ‘A minha voz de repente/ É a voz de toda a gente/ De tudo o que a vida tem/ Quando a noite chega ao fim/Vou à procura de mim/ E não encontro ninguém’. É sobre si?

Esses versos são de facto bastante descritivos de mim (risos). A Manuela conhece-me muito bem e, portanto, acertou na mouche. Mas também é importante dizer que ando numa fase em que estou a aceitar a diferença na minha vida.

Que diferença é essa?

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Enquanto a maior parte das pessoas tem uma vida de rotina, a minha é tudo menos rotineira. Às vezes, quando parava, dava por mim à procura de mim própria. Sentia um grande vazio. Hoje, já aprendi que a minha vida é diferente.

E foi difícil aceitar esse estilo de vida?

Acho que acabei por aceitá-lo naturalmente. A música e os concertos ensinaram-me muito. Hoje, sinto-me completa, satisfeita e útil. Quando as pessoas vêm ter comigo, por exemplo, para me dizerem que ultrapassaram uma fase difícil da vida com uma letra ou um fado meu, isso deixa-me extremamente realizada. E essas coisas ajudam-me muito a aceitar a minha condição.

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Qual foi a abordagem mais emotiva que já teve?

Recentemente, na gravação do meu novo videoclipe, um dos técnicos perguntou-me se podia ligar ao pai, que gostava muito de me ouvir cantar e que estava com dias de vida. Aquele momento foi muito triste, mas por outro lado deixou-me feliz por poder proporcionar aquele momento àquele pessoa.

E no final dos concertos também é daquelas pessoas que ficam a dar autógrafos durante horas?

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Fico. Gosto muito desse contacto, a menos que tenha um avião para apanhar ou que tenha de me levantar às cinco da manhã no dia seguinte.

O primeiro single do novo disco intitula-se ‘Dia de Folga’. Ainda consegue ter dias para si?

Vou tendo alguns, mas nem por isso me obrigo a afastar- -me da música. Não sinto em nada essa necessidade, até porque a música faz parte da minha felicidade. Há uns tempos, andei à procura de um país onde ir passar férias, e uma das condições foi logo viajar para um país que tivesse boa música (risos). Queria ter sol, praia e descanso, mas ao mesmo tempo ouvir boa música.

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RODEADA SÓ PELOS MELHORES NO NOVO DISCO

Gravado por Ângelo Freire na guitarra portuguesa, Pedro Soares na viola de fado, e produzido por Larry Klein (vencedor de quatro Grammy), o novo disco de Ana Moura tem uma lista de créditos de luxo. Entre eles estão Dan Lutz (baixo), que já gravou com Lizz Wright e Michael Bublé; Dean Parks (guitarras), que colaborou em estúdio com Madonna, Stevie Wonder, Elton John e Diana Ross; Pete Korpela (percussão), que já trabalhou com Robbie Williams e Melody Gardot; Pete Kuzma (teclados), que já teve o nome associado a Jill Scott e Lizz Wright; Vinnie Colaiuta (bateria), que durante décadas acompanhou Frank Zappa e Sting. As misturas foram divididas entre Tim Palmer (U2, The Cure e Pearl Jam) e Tchad Blake (The Black Keys, Arctic Monkeys e U2). ‘Moura’ tem o selo de qualidade dos Henson Recording Studios (Hollywood), onde já gravaram Paul McCartney, The Rolling Stones ou Bruce Springsteen.

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