António Domingues: O capital agora é outro
Entre 2003 e 2013, quando era administrador do BPI, ganhou com a venda de ações do banco mais de nove milhões. Foi um dos passos em direção à fortuna que terá feito, entre 2000 e 2015, de mais de 19 milhões de euros. O presidente da CGD Tem 59 anos e já andou com a guedelha grande e uma barra de ferro dentro da meia. Longe vão os tempos da militância no MRPP. As ações agora são outras e não têm ideologia
Usava cabelo comprido. Mesmo que tivesse a tradicional barra de ferro escondida dentro da meia, na perna direita, não lhe serviu para nada. Foi preso. No dia 28 de Maio de 1975. Em Lisboa. Provavelmente na Rua Barão de Sabrosa, 159 - A, a morada da editora Vento de Leste. O ataque ao Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP) efectuado pelas forças, digamos, militares do COPCON, encabeçado por Otelo Saraiva de Carvalho, trouxe a consequência: 400 detidos. Saiu um balúrdio ao partido criado pelo triunvirato Arnaldo Matos, Fernando Rosas e João Machado o sequestro do guineense Marcelino da Mata, levado a cabo por um grupo de militantes liderado por Saldanha Sanches, que o entregou à assembleia de soldados do RAL1 para ser torturado. António, com o apelido de pai e de mãe Domingues, angariado pela intuição do saudoso marido de Maria José Morgado, era, segundo um antigo camarada, um partidário, "um simpatizante activo e enérgico". Ainda há quem se lembre do dia em que José Luís Saldanha Sanches trazia a boa nova: "Vamos ter outro camarada." E tiveram. O actual presidente da Caixa Geral de Depósitos, nascido no dia 30 de Dezembro de 1956, em Sabadim, uma freguesia do concelho de Arcos de Valdevez, alcunhado pelo avô de ‘Pinta’, descendente de pequenos comerciantes rurais, vindo ao mundo no seio de fa- mília onde o dinheiro não boiava, embora nunca nada lhe tenha faltado.
O recém-recrutado vinha da Federação dos Estudantes marxistas-leninistas, em Lisboa. Recrutado, ponto e vírgula. António Domingues já chegara a ser representante da estrutura para a juventude, em Braga. A influência dos livros que lera na casa do tio, na altura em que completava o liceu em Guimarães, terá sido determinante. José António Ribeiro Santos, um dos quadros da referida federação, haveria de ser assassinado em Outubro de 1972 em Económicas, no então ISCEF, actual ISEG, o estabelecimento de ensino superior de Economia que daria, mais tarde, a licenciatura a António Domingues. Desde que os tiros da PIDE tinham acertado na vida do jovem estudante de Direito, o ISCEF transformara-se num dos pólos mais activos do MRPP. No período quase imediato que antecedeu a Revolução de Abril de 1974, António Domingues participava em acções de rua, e ainda não ingressara na faculdade.
A sua biografia política teve, talvez, duração curta, de 1973 a 1975 – mas a intensidade dessa fase vale por um século inteiro, suspira um ex-militante. Depois de os cravos terem ganho no Largo do Carmo, António Domingues deixou de colar cartazes, de fazer vigilância nos comícios e de pintar as paredes. A sua incumbência, digamos, inclinou-se para a área cultural. Tida como uma pessoa incapaz de se envolver em guerras políticas internas, como todos os jovens que por lá andaram – tirando algumas excepções, corrige um idealista –, não lhe faltava discurso. A sua saída, contudo, sentencia alguém que viveu esse tempo, ficou marcada. Expulso, se alguma vez foi militante oficial.
O "troca-tintas"
Ainda existe um membro do MRPP que o chama de "troca-tintas". As duas correntes que agitavam o MRPP dividiam-se em cores. António Domingues, no início, seguia a inspirada por Arnaldo Matos, que circunscrevia o Partido Comunista como o fundamental inimigo político – a ‘Linha vermelha’. Mas depois ter-se-á abeirado na ‘Linha negra’, governada por Saldanha Sanches, que defendia uma avizinhação aos comunistas. Logo a seguir a ter sido libertado, e o PREC vivido muito antes do 25 de Novembro de 1975, António Domingues bate com a porta e não quer saber de nada que venha daqueles lados. Línguas com aftas pesam-se ao quilo: "Não tenho dúvidas nenhumas: António Domingues saiu do MRPP porque começava a ver que a nível profissional não ia a lado nenhum." Não ia, não.
Começava o curso de Economia com modéstia e terminaria no quadro de honra com 16 valores de classificação final de licenciatura. Contactados pela ‘Domingo’, os antigos colegas de Economia no quadro do Louvor não se recordam de António Domingues: "Ele estudava no horário nocturno." A namorada da época, que mais adiante será sua mulher, Ana Figueiredo, aluna de Arquitectura oriunda da zona de Viseu, permanecerá ainda no partido, colabora com a revista do partido ‘Yenan’ e participa em diversas actividades em conjunto, como por exemplo no mural no Instituto Superior Técnico, durante a campanha do general Ramalho Eanes nas eleições presidenciais de 1976.
Licenciado de fresco, e longe fisicamente da ideologia marxista, estreia-se na qualidade de economista no gabinete de estudos e planeamento do Ministério da Indústria e Energia, no começo de 1980, no governo de Francisco Pinto Balsemão.
Seguem-se IPAME, o Departamento de Estrangeiro do Instituto Emissor de Macau, a assessoria técnica do Departamento de Estrangeiro do Banco de Portugal, o Banco Português do Atlântico, em Paris.
Até chegar à administração do BPI, conheceu as direcções financeiras e internacional. O convite de Mário Centeno para comandar o maior banco português encostou para canto a vice-presidência do Conselho de Administração do banco presidido por Fernando Ulrich.
Não quer mostrar quantas casas e quantos barcos tem. O património assemelha-se à roupa interior: não se mostra. Recusa-se que se saiba em quê, afinal, transformou os cerca de nove milhões de euros com a venda de acções.
Com o fruto destes títulos, e a somar os 10 milhões de euros auferidos em remunerações fixas e variáveis como administrador do BPI entre 2000 e 2015, o novíssimo presidente da Caixa Geral de Depósitos, que jura a pés juntos que não entregará a declaração de património e rendimentos no Tribunal Constitucional, ganhou, de 2000 a 2015, para cima de 19 milhões de euros.
No início da carreira, saiu do Banco de Portugal e não quis conservar o elo à instituição, deixando o chefe de boca aberta. Interessa-se por História, especialmente dos séculos XIX e XX. Não é um perfeccionista, mas gosta das coisas bem feitas. É sensível à escrita, à boa escrita, aprecia Jorge Luis Borges, adora navegar, praticar vela, é sócio da Associação Naval de Lisboa. De música clássica e jazz, gosta, e muito, e de sistemas de som. Está, assegura fonte próxima, sempre disponível para os amigos. Salvou José Freire Antunes quando o estômago do ex-camarada de MRPP se alagou de sangue.
Pai orgulhoso de Leonor, uma engenheira civil, discreto, sereno e um negociador feroz, sem precisar de elevar a voz, tique que aprendeu na China. Outrora fez ciclismo e corre na zona da Estrela. Não é o dinheiro que o faz correr, avisa um colaborador. É a palavra: "A senhora não duvide: Mário Centeno terá garantido a António Domingues que não era obrigado a entregar a declaração de rendimentos", assegura em off um amigo socialista.
Encontrar alguém que possa falar em on sobre o novo CEO da CGD é obra. António Repolho Correia não fala. Graça Gonçalves Pereira não devolveu a chamada. Jorge Braga de Macedo foge a sete pés. Ricardo Baião Horta não se lembra se António Domingues trabalhou consigo no governo. Álvaro Barreto esteve reunido o santo dia. Curioso. José Pena Amaral, do BPI, não teve vagar para ajudar a construir este perfil, pertencia ao MES (Movimento Esquerda Socialista). António Domingues era, aliás é, ex-MRPP: "Isto não nos passa", sentencia um ex-seguidor.
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