"Conheci os três majores assassinados"

Estive em várias frentes de combate em Angola e na Guiné, nalguns casos comandando companhias. Fomos muitas vezes alvo do fogo inimigo e muitos camaradas não regressaram.

04 de janeiro de 2009 às 00:00
"Conheci os três majores assassinados"
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Fui alferes em Angola (1962/63) e capitão em Angola (1965/67) e na Guiné. A minha história refere-se à comissão na Guiné, onde cheguei no princípio de Fevereiro de 1969. Estava com a companhia que comandava no cais do Pijiguiti, em Bissau, à espera que o resto do batalhão desembarcasse do navio que nos transportara da Metrópole, quando se aproximou uma lancha da Marinha que depositou no cais, ao pé de nós, 47 caixotes de madeira tosca, que continham os corpos dos camaradas falecidos no desastre da jangada no rio Corubal, no Sudeste do território, durante a evacuação de Madina do Boé.

Nós estávamos destinados a Catió, na foz do rio Corubal, ‘chão Manjaco’, que não escapava a flagelações diárias de concentrações de tiros de canhão sem recuo. O quartel tinha uma antena de comunicações que fornecia ao inimigo um ajuste perfeito da direcção. Outra das companhias foi para Cufar, onde ficou sujeita ainda a uma maior intensidade diária de fogos. O sector dispunha de uma companhia adida aquartelada em Guileje, que era a ‘carreira de tiro’ do inimigo, após a evacuação de Madina do Boé. Fomos sempre ripostando com a nossa artilharia pesada, tarefa a que me dediquei por ser de Artilharia, efectuando tiros de retaliação sobre os constantes ataques de morteiros pesados dos bigrupos comandados pelo Nino (Bernardino Vieira, actual presidente do país) ou seus subordinados, quer ao nosso quartel, quer aos quartéis vizinhos das nossas tropas.

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Mais tarde fui substituir o capitão Santana Pereira, ferido com uma mina antipessoal na zona de Có-Pelundo (‘chão Felupe’), onde se construía uma estrada entre Bula e Teixeira Pinto. Nunca podíamos descurar as minas colocadas nos trilhos, que já haviam vitimado um alferes e ferido o capitão. A minha companhia foi depois destacada para Teixeira Pinto, no Oeste, onde substituiu a actividade operacional das três companhias de Forças Especiais, deslocadas para Buba, onde a situação se complicara. Teixeira Pinto estava sob tréguas fingidas, propostas por um suposto grupo dissidente do PAIGC, que convenceu tudo e todos que se iria deixar integrar no Exército Português, chegando a ter postos atribuídos. Após algum tempo, a minha companhia, bastante experiente, pois vinha da zona do Morés, foi de novo deslocada para Norte, para a zona do rio Cacheu, na fronteira do Casamance, onde reforçou o batalhão de Cavalaria ‘Os Chicotes’, em intensa actividade operacional.

Passámos a actuar na zona onde vieram a ser barbaramente assassinados com catanas os três majores mais prestigiados do Exército (Raúl Passos Ramos, Joaquim Pereira da Silva e Esteves Osório) e um alferes miliciano que os acompanhava em missão pacífica de estreitamento de relações com o falso grupo de integracionistas, que os traiu e os matou de surpresa. O major Pereira da Silva havia sido meu comandante na minha primeira comissão em Angola; o major Osório, que era o oficial de operações, ia sempre à entrada e à saída da minha companhia em todas as operações em que participei, fosse a que horas fosse, para dar uma palavra de estímulo ou de apreço, e o major Passos Ramos, chefe de Estado-Maior, normalmente sobrevoava num avião de reconhecimento DO27 o agrupamento na mata, referenciando-me aí com granadas de fumo.

O capitão destinado a substituir-me, requisitado à Metrópole, chegou entretanto, mas eu mantive-me em sobreposição com ele várias semanas, pois sendo aquele um oficial de qualidade faltava-lhe a necessária experiência para uma área de risco elevado, visto tratar--se da sua primeira comissão no Ultramar e a minha já era a terceira. Depois, o oficial superior que me comandara uns meses antes em Có achou por bem convidar-me para seu oficial de operações no batalhão que, entretanto, iria comandar. Por isso, segui em demanda de Piche, no Leste , ‘chão Fula’, onde estive uns meses em operações intensas até à chegada de um batalhão de Cavalaria. Destaco nessa zona uma forte actividade inimiga que havia já produzido 72 baixas num só ataque. Os corpos de militares e civis reunidos no posto de socorros produziam na valeta da rua um apreciável caudal de sangue. Tempos depois, durante uma operação de envergadura para retaliação sobre posições inimigas junto à fronteira, houve um intenso contra-ataque dos guerrilheiros sobre Buruntuma onde estava uma companhia, comandada por um juiz, que se defendeu com denodo. Regressei a Bissau mas o descanso ainda estava longe, pois fui nomeado para comandar a companhia de Encheia, sobre o rio Mansoa, a 50 km de Bissau, para intensificar as operações militares na península do Queré, como medida de protecção à ilha de Bissau, visto estarmos em vésperas de Natal, altura predilecta para ataques do inimigo. Numa noite, ao princípio da madrugada, enquanto aguardava a hora aprazada para embarcar com parte da minha companhia para mais uma operação, ouvíamos rádio e bebíamos uma última cerveja, quando de súbito irromperam gritos do locutor em linguagem nativa, transparecendo algo de grave. O administrador do posto, dono do rádio, informou que estávamos sintonizados para a rádio Conacri. Os guarda-marinhas que nos iam pôr no mato com as suas lanchas de desembarque ouviam atentamente e concluíram que era um ataque àquela capital feito pelas nossas tropas, pois na véspera todo o material naval da base de Bissau tinha saído para parte incerta. Era a operação ‘Mar Verde’, cujo melhor resultado foi a libertação de 35 elementos do nosso Exército presos em Conacri e o pior a deserção do grupo de 17 homens pertencentes ao batalhão de comandos africanos que efectuou o ataque. A missão deste grupo era tomar a rádio e, se tivesse sido levada a cabo, não nos tinha possibilitado ficar com o conhecimento em tempo real desta operação até aí mantida em completo segredo. Por fim, a 4 de Dezembro de 1970, regressámos à Metrópole.

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FEZ QUATRO COMISSÕES EM ANGOLA E GUINÉ EM 37 ANOS DE CARREIRA

José Paulo Pestana casou em Março de 1964, aproveitando o curto período entre duas comissões no Ultramar, com Maria Teresa Albuquerque Teixeira, que na altura era enfermeira no Instituto Português de Oncologia, com quem teve quatro filhos. Tem 3 netos. Como oficial de carreira, além de três comissões em Angola e Guiné, ainda fez uma curta comissão em Angola, como major, no período conturbado da descolonização, em 1974/75. A sua vida militar durou 37 anos.

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