Divã alivia dor

Sofrem diariamente o peso de uma dor invisível. São cada vez mais os jovens portugueses que usam da ajuda de especialistas para derrotar fantasmas e vencer esta angústia existencial.

03 de setembro de 2006 às 00:00
Divã alivia dor Foto: Ilustração de Ricardo Cabral
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Não saía da cama, não comia, sentia-me profundamente cansada. Levantar-me de manhã para ir trabalhar era um verdadeiro tormento, como se o meu corpo pesasse mil quilos.” A descrição de Maria, 35 anos, é forte, chega quase a magoar, mas define de forma bastante clara o drama de quem sofre diariamente, muitas vezes sem encontrar uma explicação.

Maria, que trabalha numa editora, é apenas um caso entre os muitos portugueses que recorrem cada vez mais ao divã do especialista para expulsar o demónio e minorar a dor que lhes consome a existência. São jovens, com idades que oscilam entre os 25 e 35 anos.

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“A partir dos 25, dá-se a entrada na vida laboral e muita coisa muda: as responsabilidades são outras o stress aumenta e as pessoas têm maior tendência para não estarem bem”, explica Susana Celestino, coordenadora clínica do Serviço de Apoio Psicológico e Psicoterapia (SAPP), um organismo que desde há três anos lida de perto com estes casos. Psicóloga clínica e psicoterapeuta há 10 anos, Susana diz que são os casos de depressão, ansiedade, fim de relacionamentos e luto que mais levam os pacientes a procurar o SAPP.

Maria toma antidepressivos desde os 28 anos, receitaram-lhe ansiolíticos e antipsicóticos e já chegou a pesar 45 quilos. Apesar de ter reagido de forma positiva à medicação, a jovem sentia-se apenas “funcional”. Deixou de procurar a cama, trabalhava, namorava e saía à noite com os amigos, tudo isto “como se estivesse a desempenhar tarefas sucessivas sem prazer”, descreve. Tem dificuldade no relacionamento com os homens, mas o que antes a magoava deixou agora de a angustiar. “O desencontro, a falta de comunicação, o facto de estar num comprimento de onda e outro noutro diferente” já não a angustiam.

Maria faz psicanálise há três anos, uma decisão que tomou para deixar de se sentir controlada pelos medicamentos. Depois de tantas sessões , diz que se sente como os alcoólicos em tratamento, “vivendo um dia de cada vez”. Já não se sente tão triste, não culpa os que a rodeiam para pela infelicidade que sente e tenta descobrir-se a si própria.

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O psicanalista é o único sobre quem verte a sua ansiedade e angústia, para não sobrecarregar os amigos e o namorado. Nas sessões é ela quem fala durante todo o tempo, sendo apenas interrompida por pequenas observações do seu psicanalista, questões pertinentes que a obrigam a pensar. Está de tal forma ‘viciada’ no divã que teme “não conseguir deixar a psicanálise”.

DEPRESSÃO OU POUCA INICIATIVA

Susana celestino descreve quem sofre de depressão como “pessoas que têm pouca iniciativa”. “O desânimo e a tristeza notam-se bastante, o que acaba por afectar todas as áreas da vida, sobretudo a nível profissional”, relata a especialista. Nas relações, a psicoterapeuta acredita que estas pessoas “acabam por não investir nas relações com o companheiro como seria suposto”.

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Nos casos de ansiedade, que nem sempre estão associados à depressão, “os sintomas relacionam-se com situações de demasiada pressão, nomeadamente laboral”. Alguns casos podem ter na base “algumas situações relacionadas com a infância ou com relacionamentos mal sucedidos”, diz Susana Celestino.

João, 40 anos e pai de uma criança com sete, faz psicoterapia há dois. As sessões surgiram após a morte do pai, um episódio lhe terá desencadeado uma reacção estranha: sentiu o corpo paralisar, foi levado para o hospital por suspeita de acidente vascular cerebral, mas após uma bateria de análises médicas ninguém conseguia explicar o sucedido. Foi o psiquiatra que, após lhe prescrever ansiolíticos e antidepressivos, o encaminhou para a psicoterapia.

Nas sessões, João fala da família, da relação com o pai, da relação da mulher com o trabalho e conta os sonhos que o envolvem, trocando ideias olhos nos olhos com a psicoterapeuta que o acompanha. “O caminho da psicoterapia é difícil”, admite, sobretudo porque o obriga a “lidar com fantasmas da infância”, já de si marcada por conflitos familiares.

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Desde que lhe foi diagnosticada a depressão, João emagreceu mais de 10 quilos. O seu estado de espírito oscila frequentemente: vive perseguido por altos e baixos. O seu principal receio, hoje em dia, é que o filho suspeite do drama que o perturba e sofra a par consigo.

SEGUNDO O SAPP

Esta maior procura de plataformas de apoio, onde se incluem os psicólogos, psicanalistas, psicoterapeutas e psiquiatras, deve-se a uma “maior informação por parte das pessoas”. “A psicologia está muito menos fechada que antigamente, as pessoas estão mais informadas e começam a ter também um acesso mais fácil a esta área, já não existe a ideia de que só recorre à psicologia quem é maluco”, sublinha Susana Celestino.

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E se esta é uma realidade recente em Portugal, nos países da América do Sul o fenómeno é encarado com alguma naturalidade. Bianca é uma artista plástica argentina, com 34 anos, que desde sempre frequentou a psicanálise. No seu país a ideia é consensual: “Todos querem conhecer-se melhor e conhecer melhor os outros”. Há quatro anos em Portugal, os hábitos não mudaram e continua a ir semanalmente às sessões mas, como foi mãe recentemente, coloca a hipótese de espaçar um pouco mais os tratamentos.

Além daqueles que sofrem no dia-a-dia com as pressões e angústias que os rodeiam, existem casos de pessoas que apenas recorrem a estes métodos de apoio para se conhecerem melhor.

Ana tem 38 anos, é mãe de três filhos e foi após o nascimento do terceiro que rebentou e decidiu experimentar a psicanálise. Sentia-se triste e dava por si a chorar sem qualquer razão em concreto. A experiência durou seis meses, mas Ana “nunca se sentiu tão triste como naquele período”, talvez porque tivesse de pensar em coisas que preferia esquecer. Chegou a passar uma hora deitada no divã sem dizer nada, mas o certo é que a psicanálise acabou por dar frutos: perdeu o medo de andar de avião.

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NÃO É PARA TODAS AS BOLSAS

As sessões de psicoterapia ou psicanálise ainda não são acessíveis à maior parte das bolsas. Um tratamento bem planeado exige que o paciente tenha pelo menos uma sessão de uma hora por semana. Em média, os preços rondam os 60 euros. No SAPP, o valor foi diminuído para 45 euros por sessão.

- 5% da população sofre, por ano, de algum tipo de depressão

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- 1 sessão por semana é o tratamento considerado ideal

- 25 anos é a idade perigosa

- 60 euros é o preço médio de uma sessão

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- 340 milhões de pessoas afectadas pela depressão, diz a OMS

- 850 mil suicídios por ano

Os sintomas da depressão afectam toda a família, por isso, é importante apoiar quem sofre. Detectar os sinais é o primeiro apoio. Siga estes conselhos.

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DETECTAR OS SINAIS

O primeiro sinal é a mudança no comportamento. A depressão afecta o humor, a visão sobre a vida e até as funções necessárias ao funcionamento do corpo, como dormir e comer. A tristeza e preocupação são presença constante, a baixa auto-estima e os pensamentos negativos persistem.

CAUSAS VARIADAS

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A depressão não é fruto de um único factor, está muitas vezes relacionada com momentos que marcam de forma particular a pessoa, como a perda de um familiar ou o divórcio. Noutros casos, as pessoas deprimem-se mesmo quando a vida lhes corre bem, pois são mais propensas a entrar em crise.

AJUDA PROFISSIONAL

A psicoterapia funciona como plataforma de apoio para a pessoa e a família. Aprender novos comportamentos e estratégias de actuação face às crises é uma forma eficaz de aliviar o sofrimento. Falar com um profissional ajuda, em muitas partes dos casos, a reduzir e tratar os sintomas de depressão.

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IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA

A família sofre a par de quem passa por uma depressão. Ainda assim, é importante que os membros da família compreendam que a pessoa não é culpada. Dar a entender que os problemas são o resultado da fragilidade da pessoa e sugerir que tente apenas reagir não é a solução do problema.

OPINIÃO DA JORNALISTA DULCE GARCIA

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Há pessoas que passam a vida inteira sem ir ao médico com medo de que ele lhes descubra alguma doença mortal. Absurdo? Talvez – faz lembrar aqueles miúdos que fazem uma asneira e tapam os olhos com as mãos, acreditando que por não verem nada, também não serão vistos. A negação é sempre a primeira arma que se arremessa ao desconhecido…

A situação piora no caso dos psicólogos. Já não são ‘só’ aqueles doutores sem bata que tratam dos maluquinhos, mas continuam a parecer indivíduos pouco acessíveis, mais não seja por questões económicas. Estou em crer que as pessoas que ganham o ordenado mínimo nacional vivem permanentemente debaixo de uma nuvem de angústia e depressão. Mas também me parece que 390 euros não chegam para ir duas vezes por mês ao divã espantar as dores de alma. Sim, sim, há os hospitais e os centros de saúde, mas quem estiver à espera de uma consulta pública para se salvar, mais depressa salta do Viaduto Duarte Pacheco do que chega à fala com o médico.

Basta olhar para os relatórios de saúde para perceber que, infelizmente, aplicamos às doenças do foro psicológico o mesmo tratamento que às constipações de Inverno: comprimidos com fartura. Não é por acaso que entre 2000 e 2005 o consumo de antidepressivos cresceu 45 por cento (segundo o Infarmed). É a crise, dizem os médicos e os sociólogos e depois os jornais. O típico caso da pescadinha de rabo na boca – a falta de dinheiro põe-nos doentes e como não há quem nos trate da saúde encharcamo-nos em pílulas coloridas para fingir que um dia vamos deixar de ser os primos pobrezinhos da Europa. Bem sei que ainda temos o sol, que é uma espécie de bálsamo para todas as desgraças do corpo e da alma, mas o fado continua a ser a canção nacional, lembram-se?

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E o pior ainda está para vir: a Organização Mundial de Saúde calcula que a depressão seja a segunda causa de incapacidade de trabalho daqui por 20 anos. Nessa altura, ou há um milagre no sistema nacional de saúde (altamente improvável), ou entramos de vez para o clube dos drogados. Bom, pode ser que a União Europeia mande dinheiro para a desintoxicação…

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