João Pereira Coutinho: "Nunca soube o que é a inspiração"

A edição portuguesa das suas crónicas no ‘Folha de São Paulo’ foi pretexto para vermos o que lhe interessa.

15 de novembro de 2015 às 15:00
João Pereira Coutinho Foto: Clara Azevedo
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'Vamos ao que Interessa’ [ed. D. Quixote] é o título do livro que reúne uma centena de crónicas originalmente publicadas no jornal brasileiro ‘Folha de São Paulo’, de que é cronista desde 2005. A edição brasileira do livro teve o subtítulo ‘Cem Crônicas da Era da Brutalidade’. João Pereira Coutinho, professor universitário e colunista do ‘CM’, nasceu no Porto no dia 1 de junho de 1976 – repara o próprio – Dia Mundial da Criança, o que alimentou no pequeno a ideia megalómana de que a Criança Mundial era ele. Filho de pais formados em História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, decidiu-se também pela licenciatura em História, embora na variante de História da Arte. Este doutorado em Ciência Política e Relações Internacionais, que também ensina na Universidade Católica de Lisboa, diz que "os alunos são o principal motivo pelo qual a vida universitária vale a pena". A primeira crónica num jornal nacional aconteceu em ‘O Independente’. "Foi em julho de 1998, intitulava-se ‘A guerra’ e hoje, quando a releio, questiono honestamente o significado dela." Em pequeno, João Pereira Coutinho dizia que gostava de ser vampiro quando fosse grande. "De certa forma, colunista é talvez a profissão que mais se aproxima desses sonhos de infância."

Como é que aconteceu a publicação destas 100 crónicas?

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Honestamente, já não sei se fui eu que propus ao editor brasileiro ou se foi ele. Provavelmente fomos ambos, nas nossas conversas correntes. Depois do livro do conservadorismo, talvez não fosse má ideia um livro de crónicas que servisse de continuação ao anterior, ‘Av. Paulista’, publicado em 2008. A ideia de selecionar apenas 100 crónicas, essa, foi minha. A publicação em Portugal deveu-se ao facto de não existir um único livro de crónicas meu disponível. E pelo mesmo motivo: as editoras que publicaram ‘Vida Independente’ e ‘Av. Paulista’ faliram. Agora já percebo por que motivo os editores portugueses fugiam sempre que me viam. (risos)

Porque é que refere que existe no livro um fio condutor?

Porque ele tornou-se evidente quando lia as centenas de crónicas que publiquei na ‘Folha’ entre 2008 e 2015. Ou me ocupava de uma certa cobardia moral que se instalou nas sociedades ocidentais (o respeito pelo politicamente correto; os abusos de "poderes privados" – nos media, na universidade, etc. – que gostam de "pregar" e não de informar ou ensinar; a violência jihadista e as tentativas de "compreender" essa violência), ou então escrevia textos sobre aquilo que me dá prazer. No fundo, é como um túnel: começamos na escuridão e avançamos para a luz, o que não significa que a luz em causa não possa ser de um comboio ao nosso encontro.  

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E quais são, como diz, os assuntos que lhe dão "prazer"?

Tudo aquilo que me afasta da miséria da política. A arte, a literatura, a filosofia, o cinema. O humor, especialmente o humor. Infelizmente, só é possível chegar a estes prazeres quando as misérias da política estão amansadas, ou seja, em sociedades politicamente decentes. Por isso é que, apesar da formação em História da Arte, acabei por me interessar pela Política. Porque sem esta não existe aquela – e quem discorda tem de me dizer que escritor sudanês é que anda a ler ultimamente.

A cobardia moral ou a violência jihadista, as tentativas de compreender essa violência ou até a crise dos refugiados não são assuntos demasiado extensos para a dimensão de uma crónica?

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Não acho. Uma crónica não é um ensaio. É uma espécie de conversa de nós para nós, que partilhamos com os leitores. E, como qualquer conversa, é um exercício leve, ocioso, impressionista. Quem deseja mais do que isto tem de procurar bibliografia adequada.

E escrever para leitores brasileiros é muito diferente de escrever para portugueses?

Nos termos, na construção da frase, sim. Mas o espírito é sempre o mesmo: escrever o que me interessa porque isso é meio caminho andado para interessar os leitores.

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Qual foi a observação mais curiosa feita por um leitor das suas crónicas no ‘Folha de São Paulo’?

Há várias. Mas uma que me ficou, já há uns anos, foi esta: "Você arruinou a piada de contar piadas de português." (risos)

As crónicas abordam temas tão díspares como as campanhas da Benetton, a Palestina, as vuvuzelas no Mundial de Futebol, o Islão, a natureza humana, o Natal ou os funerais... Tem algum tema tabu?

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Não me lembro de nenhum. Como dizia o Millôr Fernandes, citando o poeta, "todo homem é minha caça".

Se fosse obrigado a escolher preferia escrever para o ‘Charlie Hebdo’ ou para a ‘Gaiola Aberta’?

Para nenhum dos dois. O ‘Charlie Hebdo’ porque tem um humor rasteirinho e fácil. O ‘Gaiola Aberta’ porque era o projeto de um homem só. Não faria lá grande falta.

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Qual é a receita de uma boa crónica?

Arranja-se um bom tema; deixa-se o tema de molho; as ideias surgem; vamos anotando o que merece ser anotado; e quando escrevemos, deve haver silêncio na casa para que a execução seja rápida e sem hesitações. E pronto: vai ao forno das rotativas e já está.

Como é que um brasileiro falaria da atual situação política portuguesa?

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Não falaria. O desinteresse do Brasil pela política portuguesa é total. De certa forma, porque eles estão certos sobre um aspeto: Portugal é parte de uma entidade maior, a União Europeia, e o que interessa é acompanhar a política da União Europeia. Faço minhas as palavras deles e é por isso que estou tranquilo com esta loucura da "frente de esquerda". Isto pode ser um manicómio, mas há médicos e enfermeiros a tomar conta dele.

Se o Brasil olha essencialmente para uma "entidade maior" – como disse – que é a UE, como é que acha que as instituições europeias olham para o Brasil e para o atual governo brasileiro?

Talvez com estupefação. Como é possível que uma economia emergente esteja em recessão e com uma grave crise política, que pode levar ao "impeachment" de Dilma?

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E nós poderemos assim esperar sempre tanto da União Europeia? E da Alemanha? E do Reino Unido, já agora, que se prepara para cobrar a sua permanência na União?

A melhor forma de lhe responder a isso é com uma confissão: sempre fui profundamente eurocético, zeloso da nossa soberania e desconfiado do poder de Bruxelas. Tudo isso se foi dissolvendo desde a nossa terceira bancarrota em 40 anos de democracia. Os portugueses não têm grande jeito para governar Portugal. Se tivermos tutela externa, isso parece-me um mal menor. Claro que um mal menor não deixa de ser um mal. Mas não tenho dúvidas nenhumas de que, sem o chicote de Bruxelas, Portugal já teria resvalado outra vez para a miséria e para o autoritarismo.

Como é que um "conservador", um homem que "virou à direita" – isto são palavras suas – vai viver tranquilo no "manicómio" da "frente de esquerda" que se prepara para governar o país?

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Vivo tranquilamente porque, citando um filósofo célebre, o reinado do Dr. Costa, amparado por dois fósseis e com Bruxelas em cima, vai ser uma coisa "feia, brutal, pobre e curta".

Faça-me o parágrafo inicial de três crónicas, uma sobre António Costa, outra sobre Catarina Martins e outra sobre Jerónimo de Sousa.

Muito simples: "António Costa é a ironia em pessoa: consegue transformar derrotas em vitórias; e agora, que chegou a primeiro-ministro, vai saber como é que uma vitória se transforma em derrota."

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"Dizem que o PCP ficou parado no tempo. Verdade. É por isso que Jerónimo de Sousa tenciona fazer em 2015 o que não conseguiu em 1975: pôr uma trela ao PS e ensiná-lo a rebolar e a dar a patinha."

"Catarina Martins é a antecipação em pessoa: demitiu o governo (antes de haver governo) e anunciou um acordo à esquerda (antes de haver acordo). Quando a senhora deixar de aplaudir as medidas do PS é porque as eleições seguem dentro de momentos."  

Em qual destes inícios de crónica se sentiu menos inspirado?

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Em nenhum deles. Nunca soube o que é a inspiração neste negócio das crónicas – e se estivesse à espera disso, provavelmente enlouquecia.

Aquela história de que portugueses e brasileiros são ‘povos irmãos’ não é realmente uma grande hipocrisia?

Pensava que sim. Hoje penso que não. O Eça dizia que os brasileiros são portugueses inchados pelo calor. É a mais pura das verdades.

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