Lágrimas salgadas

Os imigrantes amontoam-se na barcaça. A viagem é um pesadelo que os leva para longe de África e para mais perto da morte. Mas o seu destino cruzou a rota do ‘Porto Dinheiro’ nas Canárias. Um pescador português guardou para sempre os momentos mais difíceis de uma noite improvável.

12 de junho de 2005 às 00:00
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O homem olha de um barco para o outro e vê-se a si mesmo e aos camaradas à deriva. Olha de cima para a possibilidade mais trágica. Vê os corpos amontoados e torcidos com a dor. Vê o desespero e o terror misturarem-se com o alívio nos olhos de quem olha para si. “Podíamos ser nós naquela situação. É uma imagem chocante, que mexe muito connosco e que nunca mais vou esquecer”, admite Mira Lopes. Os gritos aumentam e afogam o som mecânico das máquinas de bordo.

À frente dos doze pescadores portugueses está uma barcaça branca, artesanal. Em Espanha chamam-se ‘pateras’. Não são mais do que seis metros de madeira, com um motor avariado, onde se conseguem contar trinta e dois homens. Em Espanha chamam-se imigrantes clandestinos. “Alguns sentados e os outros estendidos no fundo, a fazer lastro, com os pés por cima do corpo.” Quatro ou cinco garrafas de água vazias estão espalhadas por entre a massa humana demasiado numerosa para o espaço exíguo.

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Os olhares cruzaram-se a oitenta milhas de Las Palmas. Os da barcaça reagiram primeiro. Há vinte dias que navegavam, há dez que estavam à deriva e sujeitos aos caprichos do mar. Sem alimentos nem água doce, sobreviviam a beber água salgada e urina. Sem motor, improvisaram remos com tábuas da barcaça. E quando ao longe avistaram a silhueta do ‘Porto Dinheiro’, ataram peças de roupa aos remos e levantaram os braços no ar.

O vigia deu o alerta à proa pouco antes da hora do jantar do dia 27 de Maio. “Pensámos todos que era um naufrágio”, lembra Mira Lopes, pescador, 47 anos. A duzentos metros os braços agitavam-se na barcaça. O mestre conta vinte homens, mas o vigia, que consegue ver as cabeças dos que vão deitados, garante que são mais. Cinquenta, talvez. “Assim que os vimos, fomos direitos a eles”, conta Luís Nuno, mestre e armador do pesqueiro português.

MANTER A CALMA

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As leis do mar determinam que não se recuse socorro, mas obrigam a que as autoridades marítimas da região sejam informadas de todos os salvamentos. “A nossa primeira preocupação foi emitir um pedido de auxílio, fornecer a localização exacta e pedir instruções”, descreve o capitão. A voz do outro lado recebe a mensagem e assegura que os meios estão a caminho. O helicóptero chegará primeiro, dentro de uma hora. O salva-vidas virá depois. Até lá, diz a voz, é preciso manter a calma.

Mas como explicar isso a trinta e dois homens desesperados? Agora mais perto, os portugueses conseguem distinguir as feições dos rostos que os fixam. Há jovens que não devem ter mais do que 15 anos lado a lado com homens a caminho dos 50 anos. “A gritaria era tremenda, tentavam passar uns por cima dos outros a querer subir a bordo. Mas não podia ser, não tão depressa. E nós gritávamos para que se acalmassem”, lembra Mira Lopes.

Apesar de tudo, a sorte tinha estado do lado dos imigrantes. Trouxera-os ao caminho do ‘Porto Dinheiro’. Impedira que nos últimos vinte dias tivesse ocorrido uma tempestade que, por mais pequena que fosse, seria o fim da viagem. “Não tinham hipótese.” E agora, a poucos metros de serem salvos, iam deitar tudo a perder. “Tínhamos de os acalmar. Se a barcaça virasse, não sei quantos iam morrer. Mas no estado em que estavam todos, era uma tragédia”, diz o pescador português.

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À PROCURA DE UM SONHO

O Mali é um dos países mais pobres do mundo. Sem acesso ao mar, faz fronteira com sete países, a maior parte deles costeiros. O deserto do Sahara cobre mais de metade do território e empurra a maior parte da população para as margens do Rio Niger. A agricultura e a pesca são as duas principais actividades económicas, mas insuficientes para quebrar os laços de dependência em relação à ajuda internacional.

Apesar de a economia dar sinais de retoma, tendo registado um crescimento anual de cinco por cento entre 1996 e 2004, depois de aplicar os planos impostos pelo Fundo Monetário Internacional, o fosso entre ricos (poucos) e pobres (quase todos) não cessa de aumentar. Num país quinze vezes maior do que Portugal, onde vivem doze milhões de pessoas, a esperança de vida à nascença é de 45 anos.

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Tudo somado, não é de espantar que muitos arrisquem a vida e as economias em busca de um sonho. Redes organizadas encarregam-se da deslocação até à costa, seja na Guiné, no Senegal ou na Costa do Marfim. Os bilhetes custam meses de rendimento, mas o preço pode ser ainda mais alto. Às mãos dos grupos organizados, os imigrantes iniciam viagens sem destino certo. Perto das águas espanholas, são abandonados em botes demasiado pequenos, com motores fracos e mantimentos para escassos dias. Os pesadelos começam nesse instante.

A morte é uma possibilidade séria e os corpos que, de tempos a tempos, chegam às praias espanholas provam-no. Mas o destino dos homens da ‘patera’ branca de madeira, imigrantes do Mali há vinte dias no mar, será diferente.

A bordo do ‘Porto Dinheiro’ o capitão recebe no rádio mais algumas instruções, que irá transmitir à tripulação: nada de comida e água só aos poucos.

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“O que mais me chocou foi ver o desespero com que queriam subir a bordo”, recorda Luís Nuno, mestre de um navio baptizado com o nome de um outro, que naufragou ao largo da Mauritânia, há cinco anos, tirando a vida a treze pescadores.

A ‘abordagem’ começa e acaba em pouco tempo. “Ficaram para ali deitados no navio, contorciam-se com dores”, diz Mira Lopes, que por esta altura já tinha começado a fotografar. “Não sei. Acho que o fiz para não me esquecer.” Estendidos no convés do pesqueiro português, os imigrantes sofrem com princípio de hipotermia. Alguns agarram-se à barriga, dilacerados por dias seguidos a beber água do mar e urina. “Havia casos graves, sim. E nós fizemos o que podíamos.”

Água, chá quente e bolinhos. Os doze portugueses não param. Andam de um lado para o outro. Vão buscar roupa seca, vestem os imigrantes, tentam falar com eles. Mas no íntimo de cada um, há uma ideia que lhes martela a cabeça. “É verdade que eles vieram de propósito na barcaça. Mas nós, se o nosso barco fosse ao fundo, podíamos acabar assim. Dias e dias na balsa...”

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CHORAR A BORDO

As lágrimas não falam línguas e são sempre iguais quer se chore de tristeza ou de alívio. A bordo do ‘Porto Dinheiro’, umas e outras misturaram-se antes de se juntarem ao mar. “Aquela imagem é impressionante. Alguns camaradas meus choraram. Outros, talvez por serem mais fortes, aguentaram. Mas via-se que estavam tristes. Muito tristes”, recorda Mira Lopes. E às lágrimas dos salvadores juntaram-se as dos imigrantes. Aliviados. Quase felizes.

O som do helicóptero ouve-se à distância. Pelo rádio, a equipa de salvamento acerta com o mestre do navio português os últimos detalhes da primeira fase de evacuação. A prioridade é retirar os homens que se encontram em pior estado, os restantes seguirão mais tarde, a bordo do salva-vidas. Os casos mais graves de hipotermia, um homem em estado de choque e um outro com uma fractura enchem os quinze lugares disponíveis no helicóptero. A avaliação é feita ‘in loco’ por tripulantes do helicóptero, que descem até ao convés do pesqueiro português. Depois, os escolhidos são içados até à aeronave e desaparecem no ar. Vão descalços.

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PORTA PARA A EUROPA

De acordo com dados oficiais, um em cada cinco imigrantes ilegais entra na Europa por Espanha. A proximidade geográfica – quer das Canárias, no caso da costa ocidental africana, quer do continente, pelo Estreito de Gibraltar, no caso de Marrocos – é um dos aliciantes. A facilidade com que se pode chegar a França – o Mali é um dos países francófonos – também contribui. E as redes organizadas fazem o resto.

Barcaças de madeira, botes pneumáticos ou até embarcações de pesca, tudo serve num negócio que não pára de crescer. Para um imigrante marroquino, por exemplo, a viagem ilegal até Espanha numa traineira pode custar entre mil e 1500 euros. Evitam-se as rotas mais vigiadas, navega-se durante a noite e dificulta-se a detecção. Ainda assim, nos últimos meses, as autoridades espanholas têm vindo a apertar o cerco às redes de imigração ilegal e há cada vez mais embarcações interceptadas em alto mar.

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Mas há sempre quem esteja um passo à frente. Na segunda-feira à tarde, a autoridade de salvamento marítimo espanhola recebeu um telefonema que dava conta de um pneumático à deriva ao largo de Almeria, com sessenta imigrantes a bordo. De imediato, foram enviados navios e helicópteros para a posição indicada. Depois de várias passagens no local, chegou a temer-se o pior. As equipas de socorro tentaram telefonar para o número que dera o alerta. Uma vez. Duas vezes. Nada. À terceira tentativa, contudo, alguém atendeu. Apenas para se tornar claro que tudo não passara de uma manobra de diversão e que os imigrantes em risco estavam, afinal, em terra. Tinham aproveitado a ausência de vigilância e desembarcado.

SPORTING E BENFICA

Com dezassete imigrantes a bordo, o ‘Porto Dinheiro’ acerta o rumo com o do ‘Salvamar’, a veloz lancha salva-vidas que saíra de Tenerife para socorrer os africanos. “Assim era mais rápido e eles precisavam de ir para terra”, conta um dos portugueses. No convés, pescadores e imigrantes ganham alguma confiança. “Eles falavam francês, embora um falasse mais ou menos espanhol e outro ‘arranhasse’ o inglês. Mas como haviam alguns de nós que falavam francês, lá nos entendemos”, lembra Mira Lopes.

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Os pescadores trazem um poster da selecção nacional. Um dos imigrantes, um rapaz de 19 anos, sorri. Olha para a fotografia e aponta para o lateral direito. “Este é do Benfica”, garante, com o indicador na cara de Miguel. “Este é o Deco”, continua. Mira Lopes, que lhe dera uma das suas camisolas, vai ouvindo. É um dos dois sportinguistas a bordo de um pesqueiro onde impera o vermelho. “Claro que gozaram todos comigo.... A brincar ainda disse ao rapaz que, se soubesse antes, não o tinha salvo”.

Nessa noite, a conversa da tripulação durou até mais tarde. Cinco horas depois de terem avistado a pequena barcaça branca de madeira, os doze portugueses estavam de novo entregues a si próprios e à pesca do espadarte. “Salvámos 32 vidas, sei que sim. O comandante de Tenerife deu-nos os parabéns pelo bom trabalho. Mas também sei que nunca mais vou esquecer aquela noite”, garante Mira Lopes. Com a ‘patera’ vazia a reboque, o ‘Porto Dinheiro’ rumou a Las Palmas.

O barco vai largando a linha. São cinquenta milhas de esperança à espera que o espadarte venha. “Se se amarrar uma ponta do fio ao molhe de Peniche é comprimento suficiente para a outra chegar a Cascais.” A faina é um trabalho que se faz ao fim da tarde, para que o fio estique durante a noite e seja recolhido pela manhã, bem cedo. A cada 15 metros está um anzol, a cada 70 metros uma bóia. E a cada duas milhas está colocado um emissor, para localização em caso de algum acidente imprevisto. As jornadas de pesca medem-se em semanas. Para o ‘Porto Dinheiro’ são seis meses nas Canárias e outros seis em águas portuguesas. Dia após dia. A linha volta à água.

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Navios comerciais, com pavilhão de conveniência, e embarcações de pesca são a preocupação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no que respeita à imigração clandestina por via marítima, um fenómeno que, apesar da dimensão que tem em vários países europeus, não preocupa Portugal.

“A distância entre a costa sul portuguesa e o norte de África interfere nas preferências até ao momento demonstradas pelas ‘pateras’, provenientes das costas mediterrânica e atlântica do norte de África, com destino à costa sul de Espanha e, mais recentemente, às Ilhas Canárias”, adianta à DM fonte do SEF.

As autoridades portuguesas têm vindo a concentrar os seus esforços num outro tipo de transporte clandestino de imigrantes. Os navios comerciais com porto de origem no golfo da Guiné, quase sempre ruínas flutuantes adquiridas para tráfico de pessoas ou produtos, são alvo da atenção do SEF e da GNR. O mesmo sucede com barcos de pesca que tentam aumentar os lucros transportando clandestinos a bordo.

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Em matéria de imigração ilegal, diz fonte militar, Portugal tem o SEF e a PJ à cabeça e a Marinha como braço armado. “Uma das nossas missões é efectuar operações dirigidas. Com base em informação recolhida, executamos ou apoiamos a intercepção”, explica fonte da Armada. “Outra vertente do trabalho é a dissuasão. Mostrar navios e aeronaves em acções de vigilância, para demover quaisquer tentativas”, sublinha.

Doze homens fazem a tripulação do pesqueiro português. O ‘Porto Dinheiro’, de Ribamar é o segundo navio com o mesmo nome. O primeiro, que seria baptizado de Orca II, naufragou na Mauritânia, em Julho de 2000, deixando a pequena localidade perto da Lourinhã em estado de choque com a morte de 13 pescadores. Hoje, metade da tripulação é de Ribamar e a outra metade de Peniche.

UMA VISÃO IMPRESSIONANTE

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Mira Lopes fotografou todos os instantes do salvamento

que começou com o avistar de uma pequena embarcação.

18H30

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O mar estava calmo e o céu limpo quando o ‘Porto Dinheiro’ se cruzou com a ‘patera’ dos imigrantes. A tripulação do pesqueiro português lança um pedido de auxílio às 18h00 e recebe instruções das autoridades espanholas. Era importante manter a calma entre os imigrantes durante a subida a bordo. Não deviam ser alimentados e líquidos, como água ou chá, deviam ser dados em pequenas quantidades. A tripulação cumpriu à risca. Todos deram roupas, todos ajudaram, até à chegada do helicóptero, uma hora depois.

19H30

O ‘Porto Dinheiro’ acertou o rumo com o da lancha salva-vidas. Encontrar-se-iam a meio caminho. Com dezassete imigrantes a bordo, a tripulação portuguesa faz o que pode para ajudar os homens. Fala-se em francês, língua oficial do Mali. Os pescadores distribuem biscoitos pelos imigrantes, trazem um poster da selecção nacional. Tudo serve para ajudar a passar o tempo até ser avistada a lancha salva-vidas que vai evacuar os restantes homens. A ‘patera’, essa, irá a reboque do ‘Porto Dinheiro’ até Las Palmas.

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21H30

A proximidade entre os pescadores portugueses e os imigrantes do Mali a bordo do ‘Porto Dinheiro’ foi interrompida pela chegada da lancha salva-vidas espanhola. Durante várias horas tinham estado à conversa. Falaram da viagem, da vida de cada um e também de futebol. Um dos imigrantes reconheceu dois jogadores da selecção portuguesa. Evacuados para terra, os dezassete imigrantes foram depois levados para o Hospital. De acordo com os médicos espanhóis, nenhum corria risco de vida e a recuperação seria rápida.

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