Novas faces do incesto de leitura obrigatória
Graciano Dias e Maria Flor são Carlos da Maia e Maria Eduarda na adaptação de ‘Os Maias’ de João Botelho.
Admitir que nunca lera o romance de Eça de Queirós ao homem que lhe ofereceu o principal papel feminino de ‘Os Maias – Cenas da Vida Romântica’ foi o primeiro desafio que Maria Flor superou. A poucos dias da estreia da adaptação cinematográfica do livro de leitura obrigatória, que além de fazer um retrato do Portugal do final do século XIX comparável ao do início do século XXI narra o incesto de amantes que, por partida do destino, descobrem ser irmão e irmã, João Botelho disse à ‘Domingo’ que "a brasileira caiu do céu, mas eu escolhi-a".
"Havia muito mais mediáticas, mas queria uma atriz que trabalhasse mais em cinema do que em telenovela, e esta rapariga fez muitos filmes. É uma menina delicada, morena, com as sobrancelhas todas encostadas, e que se transformou numa loura maravilhosa", acrescenta o cineasta, de 65 anos, que juntou a sua Maria Eduarda ao Carlos da Maia interpretado por Graciano Dias nos ensaios que antecederam as dez semanas de rodagem do filme que chega na próxima quinta-feira a 19 salas, na "versão curta", de 137 minutos, e ao Cinema Ideal, em Lisboa, na "versão longa", com 187 minutos. Tal como fez com ‘O Filme do Desassossego’, Botelho iniciará em novembro uma digressão nacional com as duas versões da longa-metragem, que também passará na RTP, em formato de minissérie, em meados de 2015. O orçamento de 1,5 milhões de euros foi suficiente graças a "muita preparação" e a soluções engenhosas, como as enormes telas do pintor João Queiroz que aparecem como edifícios de Lisboa antiga ou quintas no Douro.
Antes de ter visto uma única cena do filme, que só chegará ao Brasil em novembro, Maria Flor, de 31 anos, recordou à ‘Domingo’ as dúvidas que sentiu quando Botelho a convidou para interpretar uma personagem marcante da literatura portuguesa, que só conhecia através da série da Globo baseada no romance de Eça de Queirós, "um autor reconhecidíssimo aqui": "Imagine... Não falo o português de Portugal, não sou loura... Mas ele queria, de qualquer jeito."
Fabricar o sotaque de Maria Eduarda, apresentada pelo romancista como a suposta mulher de um brasileiro endinheirado, embora seja portuguesa e tenha vivido em França e Inglaterra, foi o passo seguinte. "Ela fez um trabalho magnífico, com uma professora, para tentar encontrar um sotaque que fosse meio português, meio francês e meio português do Brasil", diz o realizador.
O ‘detalhe’ de a atriz não conhecer um romance que não é de leitura obrigatória do outro lado do Atlântico depressa se resolveu, como recorda Graciano Dias: "Começámos os ensaios antes de ela ter lido e fomos os dois a uma livraria para comprar ‘Os Maias’. Havia duas edições, e ela escolheu a mais antiga, de dois volumes."
Sempre a crescer
Para o primeiro Carlos da Maia do cinema – até agora a obra só tivera adaptações para teatro e televisão –, foi tudo mais simples. Como gerações de adolescentes portugueses, antes e depois dele, Graciano Dias descobriu ‘Os Maias’ no ensino secundário, feito nas Caldas da Rainha. Mas o ator de 33 anos reconhece que sentiu "enorme dificuldade em interpretar o livro nessa altura". Regressar às mesmas páginas, já adulto, foi diferente. "Não só reler, como ir interpretar uma personagem, fosse qual fosse, porque todas elas são de grande responsabilidade, mesmo as mais pequenas. Se existe um verdadeiro protagonista em ‘Os Maias’, esse é o Eça de Queirós. A melhor forma de interpretarmos um papel é guiarmo-nos pelas outras personagens, porque todos dependem uns dos outros."
Dito isto, a verdade é que Graciano foi escolhido por João Botelho para protagonista, entrando em dezenas de cenas. O convite apareceu há dois anos, "antes de saber sequer quem seriam os outros atores", após papéis secundários em filmes anteriores do cineasta, como ‘A Corte do Norte’ (2008) e ‘O Filme do Desassossego’ (2010).
Vislumbrar Carlos da Maia em Graciano Dias sucedeu "aos bocadinhos" na mente de Botelho. "Não me convenceu logo à partida. É um ator muito bonito, uma coisa esplendorosa, e chega lá pelo trabalho. Foi sempre a crescer, e a crescer. Tive dúvidas, e passei a ter certezas após os primeiros contactos."
Ainda com poucos filmes no currículo, entre os quais a curta-metragem ‘Putas Marcianas’, o ator tem trabalhado sobretudo no teatro. E recebeu o Prémio Santareno de 2010, na categoria de Revelação, por ‘O Príncipe de Hamburgo’, encenado por António Pires.
Interpretar o médico rico e influente, criado pelo avô Afonso da Maia (João Perry) após a fuga da mãe e o suicídio do pai, pode ser um trampolim para outros papéis de protagonista, mas Graciano não pensa muito nisso. "Fiz alguns papéis principais, no teatro, e outros menos importantes. É nos últimos que sinto sempre responsabilidade acrescida, pois parece que tenho espaços vazios para preencher. Quando somos nós a conduzir a história, tudo é mais contido", assegura quem acredita que "interpretar uma personagem principal, ou outra menos importante, é exatamente igual".
Cenas marcantes
Para Maria Flor, esta foi a segunda experiência fora do Brasil. Antes, em 2011, rodara ‘360’, do compatriota Fernando Meirelles (‘Cidade de Deus’), em que era uma brasileira sentada num avião ao lado de Anthony Hopkins. "Fiquei apreensiva e foi um desafio muito grande contracenar com ele", admite.
Mesmo sem vencedores de Óscares ao lado, o tempo passado, em outubro e novembro de 2013, a rodar ‘Os Maias – Cenas da Vida Romântica’ levam a atriz a querer voltar. "O cinema que é feito aí é de muita qualidade. Fiquei muito impressionada com a equipa", diz a filha de uma argumentista e um engenheiro de som. "Havia qualquer coisa nela de bicho de cinema que me interessou", refere Botelho.
Sobrevivente à ‘maldição’ de contracenar com animais e crianças – "O cão não tem a importância que tem no livro, e por isso, graças a Deus, não tive de ficar muito tempo com ele", graceja, enquanto Sara Mestre, a menina que faz de Rosa, sua filha, "era esperta e chegava com o texto bem decorado" –, elege a cena em que Maria Eduarda conhece Carlos da Maia como a sua favorita. "É muito bonita e marcante", diz.
Mais complicada, e ainda mais marcante, foi decerto a cena em que o incesto é consumado, depois de o protagonista descobrir tudo sobre a mulher com quem se envolveu. "Queria uma cena que não fosse delicada. Uma cena de macho e de fêmea. Há ali uma excitação louca, porque o proibido é apetecível", diz João Botelho, que pôs os atores "relativamente à vontade", iluminando apenas pequenas partes dos seus corpos. "É uma cena violenta, mas não voyeurista", assegura o cineasta, para quem o incesto de ‘Os Maias’ é "um incesto político: já não há ninguém com quem dormir; tem de se dormir com a irmã".
Eça de Queirós gostaria de ver o filme que estreia nesta quinta-feira? Graciano Dias deu por si a pensar nisso ao regressar a casa, no fim dos dias de rodagem. Botelho leu o livro cinco vezes seguidas, "para saber o que cortar", mas garante: não há uma única palavra do argumento que não seja do escritor.
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