O boneco

‘O Castor’ é um filme realizado e interpretado por Jodie Foster e é também o regresso de Mel Gibson depois de desaires pessoais. E que regresso...

26 de junho de 2011 às 00:00
Cinema de facto
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Se alguém me dissesse que existia por aí um filme em que um homem irremediavelmente deprimido e suicidário é salvo por um boneco de trapo, através do qual passa a falar e a viver, eu aconselharia tratamento psiquiátrico. Não ao homem do boneco, entenda-se; mas a quem me contasse tal história e, já agora, a quem tentasse adaptar essa história para cinema. Como comédia, a coisa já é suficientemente má. Mas como drama? Drama sério e para ser tomado a sério? Não me lixem.

Eis a melhor forma de apresentar o último filme de Jodie Foster, ‘O Castor’. Sim, o filme tem um homem irremediavelmente deprimido; sim, o homem abandona o emprego e é abandonado pela família; sim, o homem tenta o suicídio; e, sim, existe um boneco de trapo, que dá título ao filme, e através do qual o homem passa a falar e a viver.

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Mas agora vem a melhor parte, leitor: quando isso acontece, ou seja, quando o homem, praticamente catatónico, enfia o braço no boneco e este desata a disparar sentenças com um curioso sotaque britânico, ninguém na sala ri. Como explicar o milagre?

PERTURBADOR

Com o talento de Jodie Foster, para começar. Desde ‘Mentes Brilhantes’ (1991) que Foster é exímia a filmar estes retratos de solidão e incomunicabilidade. E não existe maior solidão do que a solidão do deprimido, esse náufrago que vê o mundo ao longe, sem se sentir parte dele ou de ninguém.

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Em ‘O Castor’, esse náufrago é o mais improvável dos actores: Mel Gibson. Da última vez que vi Gibson no cinema, o homem usava collants e tentava ser ‘Hamlet’. Tive pena. Não dele, mas das ossadas de Laurence Olivier, a dançar o twist na sepultura.

Passaram-se alguns anos. Mel Gibson foi-se afundando em álcool, violência doméstica e vários tipos de paranóia (rácica, anti-semita, homofóbica, etc.). Estas coisas deixam marcas: na carreira, na vida – e, sobretudo, no rosto de Gibson.

É esse rosto, na sua trágica imobilidade, que confere ao personagem de ‘Walter Black’ uma tristeza infinita. É esse rosto que, através de um ridículo boneco, encontra a mais ridícula das vozes para falar aos vivos directamente da terra dos mortos. A terra onde ele, até como actor, foi precocemente enterrado.

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‘O Castor’ é um dos filmes mais inteligentes e perturbantes sobre o sofrimento interior; e sobre a forma como criamos expedientes vários para comunicar o que nos é doloroso e insuportável.

Pelo menos, até ao dia em que percebemos como esses expedientes se revelam, afinal, igualmente dolorosos e insuportáveis.

Sim, esta é a história de um homem deprimido que passa a falar através de um boneco. Mas não se iluda, leitor: todos arranjamos os nossos bonecos; raros são aqueles que se libertam dessas ilusórias salvações.

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RESUMO

‘Walter Black’ sofre de uma depressão até que começa a utilizar um fantoche – o boneco de um castor – para se relacionar com os outros. Esta é a jornada de um homem para reencontrar a sua família e recomeçar a sua vida.

Realizador: Jodie Foster

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Intérpretes: Jodie Foster, Mel Gibson

Em exibição

LIVROS: ‘OS PORTUGUESES’

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Os estrangeiros sempre nos apanharam muito bem – e existe uma longa galeria de visitantes que deixaram cartas sobre a província: da princesa Rattazzi às visitas de Unamuno, sem esquecer os versos de Lope de Vega. Barry Hatton junta-se a esta galeria para analisar as virtudes e os vícios dos portugueses com humor britânico.

Editora: Clube do Autor (313 páginas)

Tradução: Pedro Vidal

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LIVRO: ‘O DIREITO À PREGUIÇA’

Às vezes chego a pensar que a melhor coisa de Karl Marx era o genro. Não brinco. Em o ‘Direito à Preguiça’ de Paul Lafargue a pergunta central ecoa ainda nas nossas sociedades contemporâneas: como é possível sermos tecnologicamente supremos e, no entanto, continuarmos a trabalhar como os escravos do passado?

Editora: Teorema (63 páginas)

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Tradução: António José Massano

DVD: ‘OUTRA VIDA’

Todos temos os nossos fantasmas: memórias ou rostos passados que impedem a possibilidade de um presente e de um futuro. Eis o tema de Clint Eastwood (sempre) e de um filme (este), que a crítica subestimou com grostesca incompetência. Fez mal: também há obras-primas discretas e Matt Damon tem aqui o papel da sua vida.

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Título original: ‘Hereafter’

Realizador: Clint Eastwood

FUGIR DE...

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‘PORTUGAL - ENSAIO CONTRA A AUTOFLAGELAÇÃO’

Que Portugal está perdido, não espanta. O que espanta é alguém escrever um livro sobre a nossa situação, atribuindo-a aos suspeitos da mitologia esquerdista: uma globalização controlada por "credores sem rosto". Boaventura de Sousa Santos rema contra a autoflagelação pátria para as doces águas da autovitimização. Com profetas destes, não vamos longe.

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