O milionário que só joga de cabeça

Jorge Mendes é o agente que mais dinheiro movimenta. Um percurso fulgurante que começou numa discoteca.

04 de março de 2012 às 00:00
O milionário que só joga de cabeça Foto: Manuel Araújo, Record
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A Petrogal os juntou, a Petrogal os separou. Os dois amigos, vizinhos da praça de Goa, ambos filhos de funcionários da Petrogal da Bobadela, Loures, e residentes no bairro da empresa, quiseram também eles entrar na companhia petrolífera. "Concorremos os dois para a Petrogal. Eu entrei e o Jorge não. Pouco depois, ele mudou-se para o Norte, onde foi viver com o irmão".

Mário Dias, de 45 anos, lembra assim o episódio que fez o amigo Jorge Mendes deixar a Bobadela. Aos 19 anos, com o 11º ano completo e o serviço militar despachado, Jorge foi à procura de melhor sorte. E melhor sorte não poderia ter tido o homem que, aos 46 anos, é o mais influente (e rico) agente de futebol do Mundo. Pelo caminho ficaram empresários como Manuel Barbosa, o primeiro agente a ter uma licença da FIFA, e José Veiga, que chegou a fazer os maiores negócios da história do futebol e viu a sua empresa fechar, com dívidas acumuladas e vários processos judiciais para responder.

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MAIS ALMA DO QUE TALENTO

Jogador mediano, Mendes começou no Grupo Desportivo da Petrogal. Quando se mudou para Viana do Castelo ainda alinhou por clubes como o Vianense, o Caminha, o Lanheses ou o Neves. Mas depressa percebeu que não era com os pés que haveria de ficar rico: "Ele era um jogador muito esforçado, deixava em campo tudo o que tinha, mas não se pode dizer que fosse um fora de série", conta Énio Maria, vizinho do 3º andar do prédio onde Jorge vivia com os pais, no rés-do-chão. Énio lembra-se de outras qualidades do rapaz a quem todos chamavam ‘Cabanas’, alcunha que herdou do pai. "Era um rapaz irreverente, estava sempre a magicar qualquer coisa. Foi o primeiro de nós a ter carro. Era um ‘chaço’ velho, mas dava para nos levar para os copos. Dividíamos a gasolina."

Em Viana, Jorge Mendes teve vários negócios. Abriu um clube de vídeo, explorou um bar de praia e depois comprou uma discoteca em Caminha. Firmou conhecimentos e amizades no mundo do futebol no Norte e na Galiza, mas o episódio que lhe mudou o destino foi quando entrou na discoteca um tal de Nuno Espírito Santo, então guarda-redes do Vitória de Guimarães. "O Jorge foi-me apresentado por amigos que tínhamos em comum. Gostei dele, percebi rapidamente que era uma pessoa em quem podia confiar. Ele tornou-se o meu empresário", conta Nuno à Domingo.

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A primeira jogada fora de campo de Jorge Mendes revelou desde logo um instinto apurado. No início da época 1996/97, Nuno era disputado pelo Guimarães e pelo FC Porto. Entrou em litígio com os vimaranenses, não aparecia aos treinos e durante várias semanas ninguém sabia dele. Quando o mercado abriu em Janeiro de 1997, Nuno assinou com o Deportivo da Corunha e jogou em Espanha durante seis épocas. Sempre com o apoio de Mendes. "Mais do que meu agente, o Jorge é meu amigo. Esteve sempre presente nos momentos importantes. E nunca tivemos um contrato", lembra o guardião, que ingressaria mais tarde no FC Porto e na Selecção. Hoje com 38 anos, retirou-se do futebol há duas épocas.

NEGÓCIOS CHORUDOS

A carteira de jogadores começa a preencher-se e os milagres sucedem-se. Um dos primeiros grande feitos de Mendes foi pegar em Costinha, um discreto médio do Nacional da Madeira, clube da II Divisão B, e colocá-lo no Mónaco. Costinha haveria de voltar a Portugal anos depois para ser campeão nacional e europeu pelo FC Porto. Criada a empresa Gestifute, os negócios prosperavam. Mendes chegava a todos os clubes. A venda de Hugo Viana do Sporting para o Newcastle por 12,5 milhões de euros fez sensação em 2002.

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INIMIGOS DECLARADOS

Mendes começava a ameaçar o império de José Veiga, então o grande dominador dos negócios da bola. Em 2000 e 2001, Veiga protagonizou as maiores transferências do futebol, ao roubar Figo ao Barcelona para o Real Madrid por 60 milhões de euros. E a seguir fez os ‘merengues’ pagar 70 milhões por Zidane, que jogava na Juventus. À frente da Superfute, Veiga parecia invencível.

A rivalidade entre os dois acentuou-se. Em 2002 foram protagonistas de um episódio insólito no aeroporto de Lisboa, quando trocaram agressões e insultos depois de se cruzarem à saída do mesmo voo. Consta que Mendes ganhou essa sessão de pancadaria, tal como haveria de ganhar a guerra – jogadores como Quaresma, Ronaldo, Tiago e até o próprio Figo abandonaram Veiga e passaram-se para a Gestifute.

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Hoje, a Superfute de José Veiga já não existe e as dívidas que deixou são assunto dos tribunais. O empresário ainda foi director desportivo do Benfica, foi ele o responsável pela contratação do treinador italiano Trapattoni, que deu o campeonato de 2004/05 às águias. Demitiu-se quando a polícia lhe bateu à porta de casa para lhe apreender vários bens, à conta de um processo movido por um banco luxemburguês. O negócio da venda de João Pinto para o Sporting, em 2000, começa a ser julgado em Abril. Veiga e João Pinto são acusados de fraude fiscal e branqueamento de capitais.

REGRESSO DE DECANO

"Este negócio funciona por ciclos. Um empresário que esteja hoje por cima pode amanhã ser afastado. José Veiga provou o veneno que ele próprio espalhou. Lembro-me de Veiga ter ‘roubado’ o Simão Sabrosa ao José Manuel Mendes, que o descobriu e o trouxe para o Sporting, e fez o mesmo com outros jogadores. Depois perdeu-os todos para o Jorge Mendes." Quem assim fala é Manuel Barbosa, que chegou a ser detentor da licença nº 1 da FIFA para os empresários de jogadores. Foi ele quem trouxe para o Benfica craques como Mozer, Valdo ou Aldair, permitindo receitas extraordinárias para o clube (e para ele próprio).

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A carreira de Manuel Barbosa teve um sério percalço quando, no final dos anos 90, foi acusado em França de ter sido intermediário num negócio ilegal com Bernard Tapie, então presidente do Marselha, que viria a ser condenado e a cumprir pena. Barbosa escapou incólume ao processo, mas nunca mais voltou a ter o protagonismo desses tempos, mas está de volta a um mercado que ele considera estar minado: "Lembro-me de o José Maria Pedroto ter dito que o poder no futebol tinha transitado dos treinadores para os presidentes dos clubes. Pois eu verifico que o poder passou agora dos presidentes para os empresários. Neste momento, sou consultor de um grupo de investimento. Apostamos em novos talentos. Mas é difícil chegar a certos clubes, que protegem determinados empresários. É um jogo viciado", diz Manuel Barbosa.

O decano dos agentes portugueses afirma que os contratos que hoje são celebrados entre jogadores e agentes deixam os atletas numa situação de "escravidão". "Quando fazem um contrato, os jovens são muitas vezes obrigados a pagar 10% do que vão receber nos anos do contrato aos seus agentes. E se houver problemas de ordenados em atraso, são os jogadores que ficam prejudicados", diz Manuel Barbosa.

Octávio Machado, ex-treinador de futebol, esteve à frente das equipas do Sporting e do FC Porto, sentiu na pele o poder que os empresários de futebol têm nos clubes. "Quando eu entrei no Futebol Clube do Porto, o presidente Pinto da Costa disse-me que eu deveria ter cuidado com duas coisas – o facto de o Jorge Mendes ser agente de 19 jogadores do plantel e com o jogador Ibarra, que estava na lista de transferências. Eu até sugeri ao presidente que, se achava o Jorge Mendes assim tão perigoso, o melhor seria contratá-lo como meu adjunto, para eu o poder ter debaixo de olho".

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O ex-treinador explica que mudou muita coisa nos departamentos de prospecção dos clubes. "Antigamente os clubes tinham os seus olheiros, avaliavam os jogadores mais promissores e avançavam para contratações. Hoje estão dependentes daquilo que os empresários lhes mostram e por isso é que se vêem tantas contratações falhadas no futebol português."

O MELHOR DO MUNDO

Actualmente, Jorge Mendes não tem nenhum jogador seu no Futebol Clube do Porto. "Isto é por ciclos, os empresários vão variando", explica Octávio Machado. No Sporting, Mendes é agente de Daniel Carriço, Rui Patrício e do peruano Rodríguez e no Benfica tem Nelson Oliveira. Mas é no estrangeiro que Mendes movimenta o grosso dos seus negócios – só no Real Madrid, o empresário gere a carreira de cinco jogadores e do treinador: Pepe, Di María, Cristiano Ronaldo, Ricardo Carvalho, Fábio Coentrão e José Mourinho. Um plantel que tem paralelo na verdadeira armada portuguesa que Jorge Mendes instalou no Besiktas, da Turquia. Bebé (o jovem jogador que protagonizou uma surpreendente transferência na época passada, viajando do Vitória de Guimarães para o Manchester United por nove milhões de euros), Simão Sabrosa, Ricardo Quaresma, Manuel Fernandes e Hugo Almeida foram convencidos pelo agente a mudarem-se para a Turquia.

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Não é a primeira vez que Jorge Mendes constrói um plantel a partir dos seus jogadores. A primeira experiência correu mal. Em 2005 o empresário colocou no Dínamo de Moscovo Jorge Ribeiro, Maniche, Derlei, Danny, Frechaut, Luís Loureiro, Cícero e Nuno Espírito Santo, numa tentativa de reconstruir a equipa que dera o título de campeão europeu ao FC Porto na época anterior. Desse lote, só Danny vingou na Rússia – hoje joga no Zenit de São Petersburgo. "A experiência correu mal porque o clube não tinha as condições a que estávamos habituados. Não nos conseguimos adaptar ao futebol russo", conta o guarda-redes Nuno. No ano seguinte, quase todos os futebolistas estavam fora da Rússia. Mendes empenhou-se em arranjar colocação para todos em clubes europeus.

Vencedor nos dois últimos anos do prémio de empresário do ano, atribuído pelos restantes empresários reconhecidos pela FIFA e pela Associação dos Clubes Europeus (ECA), Mendes é apontado pelo site Futebol Finance como o agente que mais dinheiro movimenta no mundo do futebol. O site diz que Mendes gere uma carteira de 83 futebolistas que valem 536 milhões de euros, embora o site da própria Gestifute mencione apenas 54 atletas no activo. O segundo classificado, o fundo inglês Stellar Football , está muito longe destes valores – tem mais jogadores, 209, mas o valor dos respectivos passes fica-se pelos 274 milhões de euros.

Outro estudo, do Observatório de Futebol da organização suíça Centro Internacional de Estudos do Desporto, coloca Mendes no topo dos empresários que mais dinheiro movimentaram em transferências realizadas nos cinco principais campeonatos europeus: Espanha, Inglaterra, Itália, Alemanha e França.

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Segundo o relatório, durante a sua carreira Mendes foi intermediário em negócios que movimentaram 369,8 milhões de euros entre clubes destes cinco campeonatos. O documento fala no caso específico do Real Madrid e analisa o facto de José Mourinho, treinador agenciado por Mendes, ter trazido para o clube seis atletas representados na totalidade ou em parte por Mendes (é dito que o empresário português foi intermediário nas compras dos jogadores Özil, Khedira e Altintop para o Real Madrid).

Quando Jorge ganhou pela primeira vez o prémio de empresário do ano, em 2010, Mourinho – que veio do Inter de Milão para Madrid por 8 milhões de euros – explicou porque é que achava que a escolha só poderia recair sobre o seu agente: "Com todo o respeito pelos outros agentes, ele merece ganhar. Se o critério for os negócios feitos este ano, é ele. Se forem as verbas envolvidas, é ele. Se forem as relações com os clubes e os treinadores, é ele. Não há hipótese." E explica o porquê de Mendes ser o melhor: "Os jogadores dele estão sempre motivados e respeitam os compromissos e as relações com os clubes. Estes, quando querem manter um jogador, falam primeiro com ele, que perde muitas vezes boas oportunidades de negócio para proteger os clubes."

O IRMÃO MAIS VELHO

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O maior negócio da carreira de Mendes é também a maior transferência da história do futebol. Em 2009, Cristiano Ronaldo saiu do Manchester United para o Real Madrid por 80 milhões de libras, cerca de 94 milhões de euros. Um negócio que resultou de uma longa amizade que une o agente e o jogador. O jogador lembrou o dia em que conheceu Mendes, em 2002: "Foi um dia feliz na minha vida, tive logo uma imediata empatia com ele e não tardei a perceber que estava perante um homem leal e honesto, com quem estabeleci uma relação fantástica." O craque luso chega mesmo a apelidar Mendes de "irmão mais velho". Jorge é o padrinho do filho de Cristiano e é visita frequente do clã Aveiro.

No Verão do ano passado sofreu um acidente de carro quando ia a caminho do aeroporto de Madrid com três familiares de Cristiano Ronaldo. O agente está sempre presente em todos os acontecimentos sociais que envolvem a família de CR7.

Agente e jogador moram no mesmo condomínio nos arredores de Madrid, La Finca de Pozuelo, uma das várias casas que Mendes tem. Ronaldo está a construir um luxuosa mansão no Gerês, mesmo em frente àquela que Mendes tem no Parque Natural do Norte do País.

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Jorge Mendes tem ainda outra casa na Foz, uma das mais caras zonas do Porto, mas quando vem a Lisboa prefere ficar instalado no Hotel Tivoli. Isto apesar de manter a casa onde cresceu, na Bobadela. "A casa vale muito pouco, mas ele disse-me que a quer manter porque tem valor sentimental", conta o amigo de infância Énio Maria. Em 2009, Mendes viveu dias difíceis, ao perder a mãe e o irmão, já com 61 anos. O sobrinho, Luís Correia, é um dos homens de confiança de Jorge na Gestifute. O agente tem uma filha do primeiro casamento e outra da sua relação actual.

AGENDA PRECIOSA

A chave do sucesso de Jorge Mendes é o talento que cedo demonstrou para fazer contactos e amizades. Numa das raras entrevistas que concedeu (o empresário esteve indisponível para a Domingo), confessou ao jornal ‘A Bola’ que já chegou a passar 18 horas ao telefone num só dia. Tem três telemóveis e neles guarda os contactos dos nomes que importam no mundo do futebol.

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É amigo de Florentino Pérez, presidente do Real Madrid, e tinha excelentes relações com Joan Laporta, presidente do Barcelona até 2010. A contratação de Ronaldo pelo Real Madrid evidenciou a faceta diplomática de Jorge Mendes. Alex Fergusson, o eterno treinador do Manchester United, não queria que o clube libertasse Ronaldo, que há muito dava sinais de querer deixar Inglaterra. Mendes foi crucial em convencer o atleta a jogar mais uma época em Old Trafford, onde voltou a ser campeão. Fergusson, que foi visto a jantar com Mendes em várias ocasiões, acabou por concordar em deixar sair Ronaldo no final da época 2008/2009. Outra prova da confiança do treinador escocês em Mendes foi a contratação de Bebé, em 2010. Fergusson admitiu que pagou nove milhões de euros por um jogador que "nunca tinha visto jogar", gesto inédito na sua carreira.

Mendes tem inimigos e detractores e a própria FIFA anunciou uma investigação aos seus negócio no Verão do ano passado, por causa do envolvimento de Mendes num fundo de investimento irlandês. O empresário defendeu-se afirmando que era um mero consultor do fundo, não havendo por isso qualquer conflito de interesses. O caso terá sido arquivado.

VIDA EM AVIÕES

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Atento a todos os sinais do mercado, o empresário passa boa parte da vida a bordo dos aviões privados que aluga. Quando é preciso assinar um contrato, Jorge Mendes está lá em pessoa, e é isso que o distingue dos demais empresários. Nem que seja no Uzbequistão, onde Mendes colocou o treinador Luiz Felipe Scolari.

O próprio Jorge Mendes explicou em entrevista a sua filosofia de negócio: "A vida faz-se ao longo de muitos anos, não podemos ganhar tudo de um momento para o outro. Eles é que são importantes. O contrato com os jogadores é uma relação pessoal. Nunca levámos e nunca levaremos um jogador a tribunal."

No bairro da Petrogal, na Bobadela, restam poucos amigos dos tempos das futeboladas na praça de Goa, mas Mendes não esquece as suas origens. Em Dezembro último participou num jogo de futebol com os seus vizinhos e amigos e tudo acabou numa jantarada. Énio Maria lembra esse jantar: "Ele foi impecável, convidou-nos a ir ver o Real Madrid-Barcelona e alguns colegas foram mesmo. Lembro-me que ele foi embora por volta das três da manhã, porque tinha de ir a Cascais e depois para o Porto apanhar um avião para Espanha. A vida dele é um corrupio constante."

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MERCADO INGLÊS MOVIMENTA MAIS JOGADORES

De acordo com o ranking do site português Futebol Finance, a Gestifute está bem à frente da concorrência no que diz respeito ao valor dos atletas que representa (536 milhões de euros). Na segunda posição aparece a empresa inglesa Stellar Football, que resulta da sociedade dos agentes David Manasseh (inglês) e Ertan Goksu (alemão).

A Stellar gere as carreiras de 209 jogadores, a maioria do campeonato inglês. Ashley Cole, Peter Crouch , Touré e Saha são os nomes mais sonantes, mas o valor médio dos passes da Stellar é de 1,4 milhões de euros, bem abaixo dos 6,45 milhões que vale em média cada jogador de Jorge Mendes. O top 3 do ranking completa-se com a empresa inglesa Base Soccer Agency, que gere uma carteira de 114 futebolistas, avaliada em 239 milhões de euros.

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