“Passados 50 anos é como se fosse hoje"
Fiz uma comissão de dois anos como 1.º cabo. As imagens dos mortos fazem parte da minha vida. Um dos meus camaradas morto em combate foi enterrado em Angola e as suas ossadas ainda por lá continuam
Assentei praça em 1960, fiz a recruta nas Caldas da Rainha e depois fui colocado no Regimento de Infantaria 3 (RI3), em Beja, perto de casa. Nessa altura era segundo comandante o major Galapés, de triste memória. Esteve metido no assalto ao quartel de Beja, um golpe político comandado pelo general Humberto Delgado, em finais de 1961.
Os revolucionários tentaram tomar as instalações, mas nessa noite o major Galapés decidiu mudar-se com armas e bagagens para o campo contrário. E foi agraciado por isso. Estive também um ano na Madeira como voluntário e a seguir fui mobilizado pelo RI3 para Angola. Parti no paquete Vera Cruz a 12 de Junho de 1961.
Já passaram quase cinquenta anos e ainda me lembro do dia da partida como se fosse hoje: o Vera Cruz atracado na doca de Alcântara à nossa espera e nós, com 21 anos eufóricos, certos de que iríamos viver uma aventura que nos marcaria para toda a vida! Para alguns assim foi, mas muitos ficaram lá e outros vieram de algum modo com sequelas difíceis de sarar, provocadas por um drama que jamais esquecerão.
'Angola era Portugal e íamos defender a mãe Pátria' – ouvimos esta ideia milhares de vezes e como, de uma maneira geral, estávamos despolitizados, aceitávamos tudo aquilo que nos diziam. Após oito dias de viagem, chegámos a Luanda. A minha companhia era constituída por 200 militares, divididos por quatro pelotões. Eu integrava a companhia de comando e serviços, com a função de escriturário.
Quando chegámos, fomos recebidos de braços abertos por uma multidão de gente que se aglomerava na avenida por onde desfilámos, cheios de orgulho e vaidade. Mas, entretanto, com o passar dos dias, fomo-nos apercebendo que a realidade era bem diferente daquela, havendo um foco de tensão muito grande entre as diversas raças e etnias, que dava azo a ressentimentos de toda a ordem. Mesmo assim, encontrámos uma Angola cheia de vida, com um poder de compra muito acima da média do que se registava em Portugal.
No entanto, as desigualdade sociais eram muito grandes. Oliveira Salazar dizia que, nessa altura, Angola era um prolongamento do nosso País. Nós acreditávamos, mas era pura mentira.
Passado um mês no Grafanil, em Luanda, fomos destacados para Negage, no Norte de Angola, onde havia muitos problemas e confrontos com mortes em ambas as partes. Negage estava despovoada, pois a maioria dos habitantes tinha fugido para Luanda, deixando a vila quase deserta. Para chegar à povoação tivemos que atravessar picadas com morros enormes dos lados, sem que houvesse uma estrada digna desse nome. Os obstáculos eram de toda ordem, incluindo árvores que tinham sido abatidas pelos guerrilheiros para dificultar a nossa progressão no terreno.
No segundo dia após a nossa chegada ao Negage vi um dos primeiros mortos do Ultramar. Sofremos um ataque que vitimou um nosso camarada, o soldado barbeiro Evaristo Gomes Patrício, natural de Aljustrel. Duas horas antes tinha-me cortado o cabelo. Estava na caserna, noutro ponto do ataque, e só o vi chegar baleado na cabeça. O Evaristo foi sepultado em Angola e as suas ossadas ainda por lá continuam... No mausoléu, em Lisboa, é um dos primeiros nomes da lista de mortos na guerra do Ultramar.
Este episódio traumatizou-nos muito, além do mais, porque tínhamos falta de preparação, tanto militar como psicológica. Durante muito tempo após aquele ataque não consegui dormir e só descansava quando me excedia no consumo de álcool.
Passado um ano, a nossa companhia, comandada pelo brigadeiro Santos Paiva, foi para Carmona, ainda mais no Norte de Angola. Tínhamos tempo, até para imprimirmos um jornal do comando que se chamava ‘À Pêra’, nome dado a uma operação efectuada na nossa área, que decorreu sem percalços. Nesta cidade, hoje conhecida por Uíge, estivemos aquartelados sete meses e apenas fizemos algumas operações de rotina. Mais tarde, seguimos para Ambrisete, no litoral Norte de Angola, uma vila onde houve muitos problemas com companhias que lá estiveram antes. No nosso tempo os conflitos estavam, felizmente, apaziguados. Até criámos um grupo de futebol, que deu cartas com equipas de maior gabarito do Exército, e passámos momentos de grande camaradagem. Contudo, houve a lamentar a morte de um camarada, mas por motivos de saúde. Não resistiu ao paludismo.
Dois anos depois de ter desembarcado em Angola, onde desempenhei diversas tarefas na companhia, de ajuda ao comando, regressei a Portugal no paquete Vera Cruz, no dia 4 de Setembro de 1963. Quando cheguei, tinha à minha espera, em Lisboa, os meus pais e as três madrinhas de guerra. Era a estas senhoras que escrevíamos e com quem desabafávamos durante as comissões no Ultramar. Todos os dias escrevia um pouco à noite a cada uma das madrinhas.
A nossa amizade criada na companhia era até há bem pouco tempo revivida nos encontros anuais. Um dos últimos foi no Regimento de Infantaria 3, em Beja, onde foi descerrada uma placa de homenagem aos mortos caídos em combate no Ultramar.
Aliás, as imagens dos mortos em combate fazem parte da minha vida. Foram os piores momentos para quem esteve na guerra. Costumo sonhar muitas vezes com cenas de guerra e de bombas, que às vezes até não têm nada a ver com o Ultramar. Apesar dos traumas que sofri, nunca pedi ajuda médica. Ao contrário de muitos dos meus camaradas, felizmente não precisei, com quase cinquenta anos passados sobre a minha comissão em Angola, de receber apoio psicológico, porque tenho contado muito com a ajuda da minha família. Mas, o que é certo é que nunca mais esquecerei aqueles dias de terror: ainda hoje grito de noite com os pesadelos da guerra.
Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?
Envie para geral@cmjornal.pt