Retrato de um duro
A decisão do juiz Carlos Alexandre em mandar Oliveira e Costa para a prisão vai marcar uma era na Justiça. Maria José Morgado defende mesmo que “pode ter sido o Cabo Bojador da investigação criminal”.
O juiz Carlos Alexandre não é um novato nem um desconhecido. Há muito que a sua experiência, conhecimento da Lei e ousadia fazem dele o mais temido magistrado do País, particularmente nas esferas políticas e económicas. Titular do Tribunal Central de Instrução Criminal, conhecido na gíria judiciária como ‘Ticão’ por concentrar os processos de criminalidade complexa que envolvem várias comarcas, Carlos Alexandre tem uma rara sensibilidade em matéria de combate ao crime económico. Esta característica faz dele um forte esteio de defesa das investigações numa época de enorme adversidade construída a partir da própria lei processual penal. A decisão que tomou ao aplicar a prisão preventiva a Oliveira e Costa pode vir a marcar uma era na Justiça portuguesa. Maria José Morgado, os magistrados Edgar Lopes e Gabriel Catarino, bem como o investigador da Polícia Judiciária Carlos Anjos, vão todos no mesmo sentido, embora o digam com palavras diferentes – a decisão de aplicar a prisão preventiva a um banqueiro é boa para a imagem que os cidadãos têm da Justiça. Maria José Morgado, que vê na decisão uma clara progressão na repressão deste tipo de crime, diz à Domingo que esta medida de coacção 'pode ter sido o Cabo Bojador da investigação criminal'. Mas, para lá dessa possibilidade que seria mais histórica, há outros efeitos imediatos, como os que aponta o magistrado Edgar Lopes, vogal do Conselho Superior de Magistratura: 'É uma decisão com um carácter simbólico que comprova perante o cidadão comum um tratamento igual das pessoas na Justiça, seja no crime económico ou noutro tipo de criminalidade.' Carlos Alexandre demonstrou, afinal, que apesar das dificuldades colocadas pela lei em vigor desde Setembro de 2007, e essas são iniludíveis, ainda é possível ir trabalhando.
Edgar Lopes e Gabriel Catarino, juiz desembargador na Relação de Coimbra que já foi director da PJ, concordam nesse ponto. 'Se o sistema de Justiça, na vertente da investigação, funcionar eficazmente, a resposta natural será a que foi encontrada', declara Gabriel Catarino. Na verdade, neste caso há uma feliz conjugação de quatro inquéritos sobre a mesma realidade, a gestão danosa do BPN, que proporcionaram um desenvolvimento qualitativo quando parte importante da informação já havia sido obtida na ‘Operação Furacão’. A investigação criminal levada a cabo pelo magistrado Rosário Teixeira, do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), liderado por Cândida Almeida, obteve há meses o quadro geral das empresas que migravam para paraísos fiscais a partir das operações clandestinas feitas no ‘balcão virtual’ do Banco Insular e, mais tarde, as participações de Miguel Cadilhe e de Vítor Constâncio trouxeram ao conhecimento da investigação os donos das mesmas.
Na prática, quando o banqueiro Oliveira e Costa é levado pelo Ministério Público perante Carlos Alexandre são--lhe imputados indícios muito fortes dos crimes de branqueamento de dinheiro, burla qualificada, falsificação de documento e gestão danosa. Mesmo assim, numa altura em que há uma opção política clara contra a aplicação da prisão preventiva, e as normas do processo penal reflectem isso, não era óbvia a decisão do juiz. Carlos Alexandre abriu caminho com a sua interpretação dos factos e o País viu as imagens de um homem verdadeiramente poderoso – tanto na economia como na política – a ser levado num carro celular para a prisão.
'A carga simbólica dessas imagens diz-nos que a Justiça tem uma transversalidade social importante e que isso pode repetir-se', diz um magistrado da Relação de Lisboa que pede o anonimato. Amigos ou meros admiradores das decisões de Carlos Alexandre apontam a coragem como o grande motor de uma situação que tem tudo para ser histórica. 'A decisão, que não surpreende, porque o trabalho de Carlos Alexandre fala por si, é corajosa e importante, acima de tudo, para a imagem que os cidadãos têm da Justiça. Muita gente vai perceber que o crime não compensa', afirma Carlos Anjos.
A coragem do juiz é uma moeda de duas faces e tem-no colocado também como alvo de uma enorme hostilidade de alguns arguidos, acabando mesmo por vir a beneficiar de segurança pessoal desde Setembro de 2007. Tem desde aí uma escolta de polícias que o acompanha 24 horas por dia.
Foram vários os episódios que determinaram a exigência de segurança pessoal. O mais grave aconteceu um mês antes da protecção policial ter sido decidida. Assaltaram a casa de Carlos Alexandre, em Linda-a-Velha, mas nada de relevante levaram. Os ladrões preferiram deixar um aviso que o juiz entendeu. Ao lado de uma fotografia do seu filho foi deixada uma arma desactivada. Os papéis estavam remexidos, as gavetas viradas do avesso. No quarto do casal havia diversas fotografias espalhadas em cima da cama. Tal como aconteceu com Baltazar Gárzon – numa fase em que investigava não apenas a ETA mas vários ex-ministros, polícias, banqueiros e empresários, alguém decidiu mostrar a fragilidade da sua protecção ao entrar em casa e deixar uma folha de plátano em cima da cama.
Na altura, Carlos Alexandre já estava sujeito a forte exposição mediática. Tinha a seu cargo as investigações ao caso ‘Portucale’ e o processo relativo aos negócios com submarinos. O Serviço de Informações e Segurança (SIS) ainda avaliava o risco relativo à segurança do juiz quando tudo aconteceu. A luz verde foi dada de imediato à PSP.
Antes do episódio do assalto, Carlos Alexandre também tinha pedido que lhe dessem outras condições de trabalho. Requereu uma viatura à Direcção-geral da Administração da Justiça (DGAJ) para se deslocar nas diligências. Na garagem do ‘Ticão’ estava um Fiat Uno comercial de 1993, o carro de serviço destinado ao juiz de instrução, e o pedido demorou vários meses a ser deferido. Afinal, os problemas no ‘Ticão’ permaneciam os mesmos desde que a titular era Fátima Mata-Mouros, antecessora de Carlos Alexandre, cujas decisões também se notabilizaram pela frontalidade.
Outro incidente envolveu, recentemente, a família de Carlos Alexandre. A sua mulher foi vítima de uma tentativa de atropelamento. Mais uma vez o magistrado não entendeu a situação como um acaso e deu conta ao Conselho Superior da Magistratura que a sua segurança e a dos seus familiares próximos tinha de ser reforçada.
Aos amigos mais próximos, Carlos Alexandre ironiza. Diz que não sabe se amanhã estará vivo, mas rodeia-se de todos os cuidados. Até com o irmão só fala telefonicamente e em dias previamente combinados. De resto, só usa os telefones que considera seguros.
A falta de condições de trabalho e a segurança não o fazem recuar. Pelas mãos dele passam alguns dos maiores segredos da Justiça portuguesa. Do caso ‘Furacão’ ao ‘Portucale’, do ‘Apito Dourado’ à investigação aos submarinos. Carlos Alexandre acumula ainda os julgamentos da 8.ª Vara da Boa-Hora.
Ultimamente, a questão da segurança voltou inesperadamente a público. A PSP defendeu que a segurança pessoal ao juiz não se justificava mas o magistrado não concordou e teve o apoio do Conselho Superior da Magistratura, que defendeu a manutenção da mesma.
A atribuição de segurança pessoal ao magistrado também é defendida, segundo uma fonte próxima do processo, pelo facto de Carlos Alexandre ser o magistrado que conhece a identidade da maioria dos agentes infiltrados utilizados pela Polícia Judiciária nas investigações às redes de tráfico de droga. Na verdade, a esmagadora maioria dos casos de tráfico internacional de droga que implicam a utilização de infiltrados passam pelo ‘Ticão’, como acontece há anos.
O juiz é ainda das poucas pessoas que conhece as escutas telefónicas da ‘Operação Furacão’, que investiga uma extensa e continuada fraude fiscal, alegadamente feita por gestores de algumas das maiores empresas portuguesas e que envolve quatro bancos (BPN, Millennium BCP, BES e Finibanco). Ou, ainda, as escutas do caso ‘Portucale’, que numa fase intensa da vida política apanharam conversas sensíveis entre alguns dos protagonistas. Parte delas está integrada no inquérito ‘Portucale’ mas outras são relevantes para o processo dos submarinos ou, de outro modo, evidenciaram comportamentos censuráveis, como aconteceu no negócio do Casino de Lisboa.
Carlos Alexandre acumula o trabalho no Tribunal Central de Instrução Criminal com o serviço na 8.ª Vara do Tribunal da Boa-Hora (que funciona no mesmo edifício) e, por isso, esteve também em vários julgamentos mediático, como o caso recente de Maria das Dores, mandante do homicídio do marido, o empresário Paulo Cruz, ou das suspeitas que recaíam sobre Teresa Maltez, ex-funcionária da PGR. Também tem sido alvo de vários incidentes de recusa de arguidos que põem em causa a sua imparcialidade. Nenhum teve provimento. Os exemplos são vários. Isaltino Morais avançou para a Relação de Lisboa dizendo que suspeitava da imparcialidade do juiz porque aquele tinha uma casa que foi embargada pela Câmara a que preside. Carlos Alexandre não se atemorizou e respondeu. 'Deve ser indeferido o pedido porque não há nenhum acto, praticado no processo ou fora dele, na vida pública ou particular do juiz visado, que motive suspeita sobre a imparcialidade', disse, realçando: 'O que há é uma sucessão de notícias que motivam juízos de valor (...), partindo-se de tal conhecimento público para a consideração de que estas acarretam risco grave e sério que compromete a sua imparcialidade e bem assim que no processo o signatário se determine por tais actos terem acontecido na vida pessoal'.
Pinto de Sousa, do Conselho de Arbitragem da Federação, quis afastar o juiz do processo das classificações, o velho ‘sistema’, alegando que o mesmo já tinha tido intervenção na fase de inquérito. Também não lhe foi dada razão.
DOIS PERDÕES FISCAIS A PATRÃO DO BPN
O professor Cavaco Silva alguma vez falhou? Alguma vez falhou?' A frase era lançada pelo então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Oliveira e Costa, para a multidão que, em êxtase, gritava: 'Não! Não!' Corria a Primavera de 1991 e o PSD preparava-se para enfrentar mais uma batalha eleitoral. Oliveira e Costa, que dominava a distrital de Aveiro com mão de ferro, desmultiplicava-se em comícios e sessões de esclarecimento na propagação da palavra de apoio ao líder e primeiro-ministro Cavaco Silva mas, também, em defesa da sua própria pessoa.
Por essa altura, o já famoso ‘Zeca Diabo’, como era chamado pelos funcionários do Fisco, enfrentava um dos maiores desafios da sua vida política: o perdão fiscal de 500 mil contos à Cerâmica Campos. Uma investigação do ‘Expresso’, feita pelo então jornalista e actual bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho Pinto, denunciou o caso que envolveu Oliveira e Costa num dos mais fortes escândalos do Cavaquismo, acabando numa comissão parlamentar de inquérito. A maioria social-democrata jogou no seu próprio interesse e ilibou o secretário de Estado mas não conseguiu esconder as fragilidades de todo o processo. O relatório final fala de um despacho 'pouco claro' e de fraca sustentação jurídica e deixa claro que a esmagadora maioria dos factos imputados a Oliveira e Costa se confirmou, desde logo a reunião com os administradores da Campos e da Caima, que ia comprar esta desde que a situação fiscal ficasse limpa.
Para trás ficava o longo percurso de um caso que mostrou todas as fragilidades do político e futuro banqueiro. Tudo começou a 4 de Outubro de 1988, quando o Tribunal de Instrução Criminal de Aveiro e a Polícia Judiciária enviaram um documento, extraído do processo ‘Aveiro-Conecttion’, para as Finanças. Era aí pedida a 'urgente averiguação' de um eventual delito fiscal na distribuição de dividendos da Campos. Os investigadores da PJ de Aveiro, então liderada por Teófilo Santiago, chegaram à Campos através de um dos principais arguidos no caso de contrabando, o capitão Vasco Silva, que era também administrador da empresa. No interrogatório, quando perguntado sobre as somas avultadas encontradas nas suas contas e da mulher, invocou o que teria recebido da cerâmica.
Os homens da inspecção tributária rapidamente apuraram que a empresa não só não distribuía dividendos como estava envolvida numa fraude. Mais de 40 por cento da sua produção era vendida à margem da contabilidade oficial e mais de meio milhão de contos foram distribuídos pelos administradores e por um grupo restrito de accionistas. Dois dos administradores foram presos mas libertados mediante o pagamento de cauções alguns dias depois. Um deles, anos mais tarde, apresentou uma versão dos factos e das circunstâncias do perdão à Campos na comissão parlamentar de inquérito arrasadora para Oliveira e Costa.
A polémica criada com esta empresa desencadeou a denúncia de dezenas de casos de perdões fiscais evidenciando a existência de uma rede clientelar na Administração Fiscal com ligações ao financiamento partidário. Na zona Centro foram apontados indícios da existência de um grupo de advogados, ligados ao PSD, que recebia uma soma mais ou menos ‘tabelada’ para arranjar reuniões com quem tinha o poder de negociar os perdões mediante o pagamento de uma contrapartida. Na altura, algumas destas situações, que poderiam configurar o crime de tráfico de influências, não foram investigadas por falta de previsão deste tipo de crime na legislação nacional.
CÂNDIDA ALMEIDA E ROSÁRIO TEIXEIRA SALVAM 'FURACÃO'
Para que a ‘Operação Furacão’ chegasse a algum lado e o caso BPN adquirisse a expressão que tem, Cândida Almeida teve uma árdua luta por meios e por uma interpretação legal que não liquidasse o inquérito a meio do caminho. Um momento decisivo foi quando conseguiu, no início de 2008, uma equipa de 25 inspectores tributários, cinco magistrados, dois funcionários e cinco administrativos. Essa ‘equipa especial’ constituída sem alarido e com o empenho do procurador-geral da República deu a Rosário Teixeira os meios para recuperar milhões a favor do Estado e para chegar mais longe no BPN. A primeira interpretação contra os prazos restritos impostos pelo novo código de processo penal foi validada por Carlos Alexandre mas essa é uma guerra que ainda não acabou.
AMIZADE FEITA NO CONSULADO CAVAQUISTA
Dias Loureiro e Oliveira e Costa conhecem-se desde a liderança de Cavaco Silva no PSD. Um e outro emergiam a meio da década de oitenta nas distritais laranja de Coimbra e Aveiro quando a vitória de Cavaco Silva na Figueira da Foz os uniu. Dias Loureiro e Fernando Nogueira foram os defensores dos interesses da distrital coimbrã, após a morte de Mota Pinto, nas intensas negociações de bastidores do congresso e dali saíram para a secretaria-geral do partido e para uma vice-presidência. Oliveira e Costa dominava Aveiro por conta de Ângelo Correia mas rapidamente conquistou autonomia, espalhando os seus homens por cargos em todo o distrito. Na fase quente do perdão à Campos, Dias Loureiro era o poderoso secretário-geral do PSD.
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