“Sofro mais por eles do que por mim"
João Moura comemora 40 anos de alternativa no Campo Pequeno a tourear com os filhos.
Não há dia que não seja de trabalho e ‘afición’ na Herdade das Arengozinhas, perto de Elvas. É por ali que ultimamente se encontra João Moura e o seu clã a preparar a temporada tauromáquica. Este ano, o patriarca comemora 40 anos de alternativa e vai celebrar a data precisamente na Grande Corrida do Correio da Manhã, num cartaz em que se junta aos filhos, João Moura Júnior e Miguel Moura, e ao sobrinho, João Augusto Moura.
Encontramo-los a domar os cavalos logo bem cedo pela manhã, num dia em que chovem picaretas do céu. No picadeiro, cada um em cima do seu cavalo, saem à vez para a frente da tourinha. Ora atua o patriarca sob o olhar atento dos filhos e dos sobrinhos, ora é a vez de João Moura observar, descontraído mas atento, as lides dos filhos.
Aos 58 anos e já depois de alguns incidentes (como a queda de um cavalo em 2014, de que resultou um traumatismo cranioencefálico grave), João Moura mantém em forma o seu estilo de toureio e acompanha a par e passo todos os momentos da preparação de uma corrida. No dia seguinte à reportagem do ‘CM’, por exemplo, iria à Golegã conhecer os touros que vai desafiar no dia 7, no Campo Pequeno.
Aos filhos dá apoio e bons conselhos. Afinal, são eles que darão seguimento ao negócio e ao nome da família. Mas quando estão na arena, frente a frente com o touro, são acima de tudo sangue do seu sangue. E isso fala sempre mais alto que tudo o resto.
"Esta é uma profissão que vivi sempre muito intensamente e talvez por isso os meus filhos também a quiseram seguir. Dei-lhes sempre todo o meu apoio. Mas também é uma profissão de risco e sofrida e eu sofro mais quando eles toureiam do que quando sou eu que lá estou", confessa João Moura.
Como quase todos os da sua profissão, João Moura é um homem de fé. Devoto de Santo António, não dispensa alguns rituais religiosos antes de enfrentar o touro. "Benzo-me e rezo um bocadinho também. E entrego-me à sorte. Acho que para tudo precisamos de ter um bocadinho de sorte", frisa João Moura que, além de Miguel e de João, é também pai de Rita Moura (26 anos), Tomás (nove anos) e Madalena (seis anos).
Afinal, também em João Moura a ‘afición’ despertou muito cedo e igualmente por influência familiar.
Estava habituado a acompanhar o tio ganadeiro, Cláudio Moura, e o pai, João Augusto de Moura, que foi equitador de competição e cavaleiro tauromáquico amador e "adorava aquele meio".
Tornou-se cavaleiro no tempo em que os pés ainda mal chegavam aos estribos e tinha pouco mais de sete anos quando começou a tourear. Corria o ano de 1967 e o feito fez-se lenda na praça de touros de Portalegre, quando apareceu pela primeira vez em público durante os festejos da cidade. Demonstrando uma intuição invulgar e uma forma de toureio que logo deu nas vistas, três anos depois, a 24 de setembro de 1970, debutou na Monumental do Campo Pequeno, partilhando cartel com os mais destacados cavaleiros de então: João Branco Núncio, José Mestre Baptista, Manuel Conde e Luís Miguel da Veiga. Desde então já fez mais de quatro mil corridas.
Os números impressionantes somaram-se desde cedo. Ainda muito jovem foi para Espanha. Em 1977, com 83 corridas toureadas e 146 orelhas, o ‘niño’ Moura era, aos 17 anos, o cavaleiro mais solicitado e premiado da Península Ibérica.
De novo em Portugal, a 11 de junho de 1978, na Monumental Celestino Graça, recebeu então a alternativa de cavaleiro tauromáquico, sendo seu padrinho o mítico David Ribeiro Telles.
Em 1981 realiza a sua primeira digressão à América Latina, estreando-se no México e na Colômbia. Dos grandes feitos, João Moura gosta de salientar alguns: "Ter aberto por nove vezes a Porta Grande da Monumental de Las Ventas, em Madrid", recorda. Um feito sem igual entre os cavaleiros portugueses e que levou o antigo Presidente da República Mário Soares a agraciá-lo como Comendador da Ordem Civil do Mérito Agrícola, Industrial e Comercial (1991). Em 1998, foi a vez da Real Federación Taurina, de Espanha, atribuir-lhe o prémio de Mejor Rejoneador, pela mão do rei Juan Carlos.
Em família
"Hoje, quando passo em revista estes últimos 40 anos da minha vida, acabo por verificar que tive uma carreira com muitos triunfos, quase todos os que eu queria: além das nove vezes que abri a porta grande em Madrid, triunfei em quase todos os sítios onde há corridas de touros no Mundo. Já foram muitos e muitos touros", recorda.
São glórias que nunca se esquecem mas, agora, há outras coisas que lhe dão igual emoção: " O melhor desta carreira de 40 anos, o que me dá mais satisfação, é mesmo ter os meus filhos ao meu lado nestas lides. E, por isso, é um grande orgulho estar no Campo Pequeno com eles e com o meu sobrinho", garante. Uma família unida no triunfo, mas também no sofrimento.
Na família vive-se os touros por todos os poros desde há várias gerações: há toureiros, bandarilheiros, forcados, novilheiros e os que simplesmente guardam no peito toda a ‘afición’ e apoiam incondicionalmente, sofrendo nas bancadas.
Miguel Moura, o mais jovem, ainda hoje recorda a sensação que lhe apertava o peito quando via o pai e depois o irmão a tourear e as coisas corriam menos bem. "Muitas vezes assistia da bancada com a minha mãe. E claro que nos preocupávamos. Mas faz parte." Talvez por isso nunca houve lugar para outro sonho que não fosse o de seguir as pisadas do pai e, como ele, vencer o touro e somar triunfos. Tinha seis ou sete anos quando começou a montar e perto de dez quando participou na sua primeira tourada, provando que a bravura também reside no peito dos meninos franzinos. Tomou a alternativa das mãos do pai, há quatro anos, tornando-se assim cavaleiro tauromáquico profissional.
"Grande parte desta devoção passa por desejarmos arduamente defender e continuar o nome do nosso pai. É o que tentamos fazer sempre que estamos na arena. Não é fácil, pelo contrário, porque o nosso pai teve uma carreira ímpar. É uma grande missão e uma grande responsabilidade mas é tudo aquilo a que aspiro desde que me lembro de ser gente", conta Miguel Moura.
Tais aspirações não são coisa que se estranhe ali no monte das Arengozinhas, que tem sina de ser casa de gente dos touros. Aquela que é agora residência de João Moura Júnior, o filho mais velho de João Moura, e da sua mulher, Concha Rodríguez Díaz, pertenceu inicialmente ao cavaleiro tauromáquico José Luís Cochicho e depois ao ganadeiro e coudeleiro Inácio Ramos. Há dois anos, pouco tempo depois do enlace com a higienista oral de Badajoz, João Moura Júnior adquiriu a propriedade.
O primogénito carrega agora outras coisas nos braços para além do nome da família. A primeira filha, Maria da Conceição, nasceu há cinco meses e meio. Toureiro que é toureiro, ainda por cima de nascença, não tem medo do perigo, mas João Moura Júnior sabe que tudo mudou desde que ela nasceu. E não foram as noites que, segundo diz, continuam a ser "bem dormidas, porque a Conceição é uma bebé muito tranquila".
"Mas agora, antes de uma corrida, é diferente. De cada vez que me despeço dela, sei perfeitamente que posso não voltar a vê-la. Sei que isto é uma profissão que acarreta alguns riscos, e isso não é fácil. Mas, por outro lado, quando volto da arena e a reencontro é muito bom. Felizmente, tem tudo corrido sempre muito bem. Ela ainda não assiste às corridas nas bancadas com a mãe, mas quase sempre viaja comigo porque gosto de estar perto dela. Dá-me força", conta o cavaleiro de 29 anos. João Moura Júnior não quer que a filha lhe saia cavaleira tauromáquica. "Mas pode vir a ser uma grande cavaleira e gostava que tivesse muita ‘afición’, claro!" Para durões, na casa dos Moura, bastam os homens.
Trabalho diário
João Moura Júnior assumiu em grande parte a herança do pai na gestão da atividade profissional. É ele o braço-direito de João Moura. É ele também quem já dá conselhos aos mais novos que lhes querem seguir as pisadas. "Digo sempre ao meu irmão que ponha os olhos no meu pai, pois só ele pode ser o nosso melhor exemplo."
Seja nas Arengozinhas seja na quinta de Santo António, em Monforte, o trabalho é em família e tem de ser diário. "De manhã domam-
-se os cavalos, à tarde toureiam-se umas vacas. Só há pausas para o almoço. Faça chuva ou faça sol", ilustra o cavaleiro que recebeu a alternativa há cerca de dez anos , precisamente numa corrida ao lado do pai e do irmão no Campo Pequeno. João Moura Júnior considera que esse foi, até hoje, o momento mais emocionante da sua carreira, mas a verdade é que desde então já somou triunfos nas principais praças, muitas vezes além fronteiras. Colômbia e Espanha é onde estão as suas praças favoritas. "Esta profissão também me dá a possibilidade de conhecer outros países, outras culturas e até formas diferentes de encarar o toureio. Para onde vou levo sempre a minha mulher e agora a minha filha, que é uma forma de me distrair naquelas intermináveis horas de espera que sempre antecedem as corridas", conta.
Todavia, não há praça nenhuma nem crítico estrangeiro que substitua a coroação do público na principal praça do seu País: o Campo Pequeno. "É a nossa praça mais importante e por isso é para lá que estamos a focar toda a nossa atenção. Há dez anos, quando tomei a alternativa das mãos do meu pai, fizemos esta mesma corrida. Correu bem e queremos que se repita", remata. É pelo triunfo aos olhos do público que arriscam tudo. "Para o contentar, para o fazer sentir que viu um bom espetáculo", explica, por sua vez, Miguel Moura.
O nome e a bravura da dinastia Moura comprova-se já no próximo dia 7, naquela que será a XX Grande Corrida do ‘Correio da Manhã’, no Campo Pequeno. João Moura, João Moura Jr. e Miguel Moura lidarão toiros das ganadarias de Manuel Coimbra e Francisco Romão Tenório. Nesta noite que se quer de glória, pegam os Forcados Amadores de Portalegre, Monforte e Arronches. No final da corrida, o novilheiro da família, João Augusto Moura, regressará às arenas para lidar um novilho-toiro de Torre de Onofre.
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