Teste do Pézinho

É simples, rápido e pode salvar muitas vidas. O Instituto de Genética Médica Jacinto Magalhães, no Porto, alargou o teste do pezinho a mais 13 doenças. Porque os cuidados com a alimentação dos bebés com problemas devem começar nos primeiros dias de vida.

17 de julho de 2005 às 00:00
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A hora da refeição em casa do Francisco, 6 anos, é igual à da maioria dos lares portugueses, com uma simples diferença - o Francisco não pode comer alimentos que contenham fenilalanina. Na sua dieta alimentar estão proibidos produtos como carne, ovos e leite. A alimentação dita "diferente" faz parte da sua vida.Tem um armário na cozinha que é só seu. Lá está toda a sua mercearia: substitutos das bolachas, dos doces, do pão, do ovo...

Francisco nasceu com uma doença metabólica, denominada fenilcetonúria, que, segundo Manuela Almeida, nutricionista do Instituto de Genética Médica Jacinto Magalhães (IGMJM), no Porto, trata-se de um problema enzimático, que leva o fígado a não processar a fenilalanina. E uma acumulação de fenilalanina pode afectar o cérebro e levar a deficiências mentais graves. "Caso a alimentação não seja cumprida, a doença conduz à deficiência mental profunda. Por isso a importância da alimentação ao longo da infância, de modo a evitar o crescimento deficiente do sistema nervoso central", explica. Tal como Francisco, a maioria dos bebés que tem esta doença nasce aparentemente normal e nada apresenta durante o exame médico na maternidade. É por isso que o teste do pezinho é aconselhado (mas não é obrigatório) a todos os recém-nascidos, entre o 3º e o 6º dia de vida.

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PÂNICO CONTROLADO

Rui Barros Silva, 38 anos, arquitecto, nunca se irá esquecer do dia 16 de Junho de 2000, data em que recebeu a notícia e, por coincidência, o dia do seu aniversário. Francisco completava 13 dias de vida. "Recebemos um telefonema do Instituto de Genética a dizer que o nosso filho tinha uma doença metabólica. E ouvir o nome estranho de fenilcetonúria trouxe-lhe uma situação de pânico controlado. Não tendo a noção das consequências e da origem da doença, e só sabendo que é um problema genético, a primeira coisa que pensámos é que seria uma doença grave".

Depois, e com a procura de informação sobre a doença, Rui percebeu que o problema do seu filho era combatido apenas através da diminuição da fenilalanina da dieta. Descobriu também que, se iniciada o quanto antes, a alimentação "alternativa" iria conduzir o Francisco a um crescimento normal. E na procura de mais dados sobre a doença, Rui procurou a Associação Portuguesa de Fenilcetonúria (APOFEN) e é agora o seu presidente.

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Uma outra doença também detectada pelo teste do pezinho chama-se hipotiroidismo congénito. Neste caso, explica Manuela Almeida, trata-se de um problema hormonal, que se trata apenas com um comprimido diário e não precisa de dieta especial. "Mas a sua falta pode levar a danos no crescimento da criança e a um atraso mental, que será tanto maior quanto mais tempo esta falta ocorrer".

Até ao momento, o teste do pezinho apenas despistava estas duas doenças - fenilcetonúria e hipotiroidismo - mas agora o Instituto de Genética Médica Jacinto Magalhães (IGMJM), no Porto, onde está instalado o Laboratório Nacional de Rastreio, vai alargar o rastreio neonatal a mais 13 doenças metabólicas hereditárias, todas com tratamento médico. O estudo piloto já arrancou no Norte do País: primeiro no Grande Porto e depois estender-se-á até ao distrito de Coimbra, numa fase experimental que deverá durar um ano e onde deverão ser rastreadas cerca de 50 mil crianças. Segundo Laura Vilarinho, investigadora, responsável pelo Laboratório Nacional de Rastreios e vogal da Comissão do Programa Nacional de Diagnóstico Precoce, espera-se que, em 2006 seja possível alargar o rastreio neonatal a todo o País.

À primeira vista poderemos pensar que o mesmo teste do pezinho passa a diagnosticar mais doenças. Mas, embora seja com a mesma amostra de sangue, a nova tecnologia, denominada espectrometria de massa (Tandem-Mass), traz muitas mais vantagens do que o teste tradicional. "Grande parte das 13 doenças que passamos a rastrear são urgentes. Isto significa que se não forem acompanhados, os bebés que são portadores descompensam (entram em coma ou morrem) na primeira ou segunda semana de vida. Por isso, é urgente que os testes estejam prontos em 24 horas". Mas o mesmo não acontece com as doenças até aqui rastreadas pelo tradicional teste do pezinho, pelo facto de as crianças com essas patologias (fenilcetonúria e hipotiroidismo) não correrem riscos que as levem a problemas no desenvolvimento mental ou até mesmo à morte em tão curto espaço de tempo.

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MAIS DE 500 DOENÇAS

A história de Germano Fernandes, 37 anos, é bem diferente da de Francisco. Tinha oito anos quando veio para Portugal. Nasceu em Évora mas emigrou com os pais para Angola. Nunca tinha estado doente, era um rapaz cheio de vida e energia. De volta a Portugal, a família instalou-se no Barreiro. Fez amigos e passava as tardes na brincadeira.

Num dos regressos a casa, Germano começou a sentir-se cansado, como nunca se tinha sentido. Caiu à cama, doente, e poucos dias depois entrou em coma. Os médicos não sabiam o que tinha, o que o teria levado àquele estado que o deixou quase um mês inconsciente e mais oito em recuperação no hospital. Passados muitos meses e muitas análises, o médico disse-lhe que tinha um distúrbio metabólico, denominado glicose 6 fosfato desidrogenase, e o que despoletou a doença foi o contacto com as favas.

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Esta doença provoca uma alteração das enzimas fundamentais para a estabilidade da membrana celular dos glóbulos vermelhos. Quando entram em contacto com certos alimentos e medicamentos, os glóbulos vermelhos são destruídos, dando origem a anemia, icterícia e aumento do baço. Quando as duas filhas nasceram, uma com 12 e outra com 2 anos, Germano temeu que também elas sofressem da doença. Embora ainda não saiba se a mais pequena também padece do problema, sabe que a mais velha não. "Mas o meu sobrinho sim, ele também tem a mesma doença. E quando começou com os sintomas a família já desconfiava do que ele teria".

CROMOSSOMA X

Esta situação acontece porque, sendo uma doença herdada geneticamente ligada ao cromossoma X, atinge mais as pessoas do sexo masculino. "São mais de 500 as doenças genéticas e do metabolismo", segundo explica a investigadora Laura Vilarinho. Em comparação com o número existente, poucas são as que têm tratamento. Foi precisamente esse o critério de escolha do diagnóstico das 13 novas patologias, embora a nova tecnologia permita despistar mais algumas. Nesta fase de rastreio, o teste do pezinho passará a diagnosticar algumas doenças do ciclo da ureia, da (beta)-oxidação mitocondrial, aminoacidopatias e acidurias orgânicas.

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Em vários países onde tem sido efectuada, esta nova tecnologia de ‘tandem mass’ tem-se mostrado prometedora nos programas piloto neo-natal pela capacidade de medir numerosos metabolismos através da mesma gota de sangue e com a obtenção de resultados rápidos. A extensão deste programa de detecção de mais doenças também tem o enorme potencial de diminuir a mortalidade causada pelos erros genéticos do metabolismo e, ao mesmo tempo, oferecer aos médicos mais informações de diagnóstico para cuidar e prevenir as doenças em recém-nascidos.

Neste tipo de doenças, tanto os familiares como os médicos só se apercebiam do problema quando as crianças já estavam doentes, o que, segundo a especialista, era muito tarde. "Ou porque ficavam com sequelas do coma ou porque acabavam por morrer".Este rastreio serve, por isso, para evitar que isso aconteça. E, embora, as doenças que vão rastrear não sejam muito frequentes em Portugal, o importante é que todas as crianças com anomalias do metabolismo, para as quais exista tratamento, sejam encaminhadas antes que algo de mal aconteça.

RASTREIO EM PORTUGAL

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O teste para as doenças metabólicas começou em 1962 em Massachusetts, nos EUA, com um projecto-piloto para o rastreio da fenilcetonúria.

Em Portugal, o Programa Nacional de Diagnóstico Precoce iniciou-se em 1979, por iniciativa do Instituto de Genética Médica, incluindo inicialmente apenas o rastreio da fenilcetonúria.

Em 1981 iniciou-se o rastreio do hipotiroidismo congénito. Em 1986, o centro de rastreios do IGM cobria 85% da população nacional.

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Segundo os dados do Programa de Diagnóstico Precoce, referentes ao período de 1980-2003, do total de crianças nascidas em Portugal foram estudadas, através do teste do pezinho, 2 341 179. Nestes últimos 25 anos foram detectados 214 casos de fenilcetonúria e 723 de hipotiroidismo congénito.

Entre 1986 e 1987 procedeu-se ao rastreio experimental da hiperplasia congénita das suprarenais em 100 mil recém-nascidos, no sentido de determinar o interesse da institucionalização deste rastreio a nível nacional. Como apenas foram detectados sete casos, mas só em dois o rastreio antecipou o diagnóstico clínico, a institucionalização do rastreio foi posta de parte.

Em 1990/1992 procedeu-se ao rastreio piloto da deficiência em biotinidase. Esse estudo processou-se em 100 mil recém-nascidos, tendo sido detectados apenas dois casos. Pelos mesmos motivos, este rastreio também não teve continuidade.

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Entre 1992 e 1995 efectuou-se o rastreio experimental da fibrose quística, nos distritos do Porto e de Coimbra, mas também não teve continuidade porque, entre outras razões, "ter uma incidência menor do que a inicialmente esperada na população portuguesa". E, por ser, "fundamentalmente uma doença sem tratamento específico."

ENCAMINHAMENTO E ALIMENTAÇÃO

A partir do momento em que o resultado do teste do pezinho dá positivo, para os pais começa uma odisseia pelo conhecimento da doença. O Instituto de Genética Médica possui seis centros de tratamento - espalhados por Lisboa, Porto, Coimbra, Ponta Delgada, Angra do Heroísmo e Funchal - onde os doentes com hipotiroidismo congénito ou fenilcetonúria podem ser acompanhados por uma equipa especializada e multidisciplinar que engloba médicos especialistas, técnicos de laboratório, nutricionistas e psicólogos.

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Para Rui Barros Silva, presidente da Associação Portuguesa de Fenilcetonúria (APOFEN) um dos principais problemas defrontados pelos doentes é o da alimentação especial. "Porque não adianta diagnosticar se não houver uma alimentação cuidada. E para um crescimento saudável é imprescindível uma dieta hipoproteica, ou seja, restrita em fenilalanina, como no caso da fenilcetonúria".

A alimentação alternativa chega aos doentes através do Instituto de Genética Médica. É de lá que se distribui a alimentação pelas crianças. "Mas, até ao momento, não existia nenhum protocolo com o Ministério da Saúde para o subsídio destes alimentos, existia apenas um acordo no subsídio da compra destes produtos."

Há já vários anos que a APOFEN, segundo o seu responsável, tem lutado por um protocolo que institucionalize este financiamento. "E finalmente conseguimos que, através de um despacho governamental de 29 de Junho, a comparticipação dos produtos dietéticos fosse de 100%". Uma grande luta que terminou bem.

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