Uma rainha coroada pelos patins
Edite Cruz nasceu para atravessar a vida mais depressa que a maioria, em patins. E porque era um talento inato foi coroada rainha no tempo da ditadura. Tudo lhe foi possível, até patinar um fado enquanto Amália o cantava.
Do Benfica. Ainda no ventre materno. Oficializado o nascimento, a 8 de Outubro de 1933, bastaram poucos meses para ir, ao colo do pai, assistir a jogos de futebol no extinto Campo das Amoreiras. Aos três anos, vestiu o fato de ginasta do Sport Lisboa e Benfica (SLB), mas não seria esta categoria desportiva a responsável do êxito. Tão pouco foi o glorioso que lhe deu a glória merecida. Nem a Luz. Edite Cruz suspira sem pena. A sócia 228 tem pés que já não deslizam no rinque, mas não perderam leveza. Basta um breve movimento para descobrir que andar deixou de ser um acto banal. “Já me disseram isso” que o corpo de setenta e quatro anos da primeira patinadora portuguesa a figurar no palanque internacional, talvez, levite ao subtil passo.
“A Rainha do Patim” nunca teve palácio. Edite Cruz tem mais sorte. Um armazém de lembranças, onde os troféus se encavalitam. Dúzias de álbuns com fotos que lhe ditam a fama. “Para contar como é que nasceu a patinagem, tenho que voltar para trás”. A 1942. À Costa da Caparica – lugar sacro para desfrutar as férias de Verão. Bem de frente à sua casa na praia dos Pescadores havia um pavilhão: “Fiquei doida com aquilo que vi!”. Não era para menos. Centenas de garotos que tentavam o equilíbrio num piso amador de madeira. Edite quis fazer o mesmo. Patinar. Convencer os pais significou vários pedidos, muita insistência. E uma birra. “Tinham medo que eu me magoasse”. A filha única de nove anos podia dar um tombo, e santo Deus, um caso de brincadeira podia se transformar-se num sério. Mas o Sr. José Cruz acabou por alugar um par de patins. Edite calçou-os. “Agarrei-me à vedação e lá fui eu”. Foi e tomou-lhe o gosto. Os fins de tarde desse Agosto só conheceram um passeio: o recinto. “Não tínhamos professor” e nem era preciso. Há coisas que, se calhar, vêm com a anatomia. O convite para participar numa gincana não tardou. O que também não tardou, e por outra razão, foi a resposta do pai. “Disse-me não”. Uma nega que só durou meio-dia.
Mas a família regressou a Lisboa, a jovem voltou às aulas e aos exercícios de ginástica. A patinagem, que não se tinha abreviado a uma curta paixão, crescia no seu horizonte. “Tinham-me dito que existia um rinque no Jardim Zoológico”. As manhãs de Domingo ganharam nova rotina ao lado do Sr. Xavier – o homem que lhe ensinou as primeiras técnicas.
Botas brancas. Queria umas e genuínas. A distância que vai do verbo querer até ao conseguir, já nesse tempo, era longa. O pai só cedia ao dócil capricho se ela fizesse a “andorinha” – uma figura que as patinadoras criam em andamento. Por ser uma prática demasiada complicada para uma aprendiza, o senhor pensou que jamais gastaria dinheiro em calçado desportivo. Enganou-se. Edite fez uma, duas, e tantas, andorinhas.
Após meses de treino, o mestre Xavier informou que nada mais restava para ensinar à pequena. Foi para o Benfica que apesar de não contar com peritos na especialidade, tem um ringue. Para estar a par das evoluções relativas ao tema “Vi filmes, li livros”.
Aos 11 anos, estreia-se numa prova oficial. Consagrou-se, na Amadora, a “Princesinha do Patim”. No ano seguinte, o mesmo município atribuiu-lhe o prémio “A Rainha do Patim”. A pequena majestade natural de Alfama, engrandecia a patinagem portuguesa, percorrendo o País em exibições com fins de beneficência. Não houve aldeia que não tivesse aplaudido a miúda.
Em 1948, as palmas bisaram. A Federação Portuguesa de Patinagem convocou-a para acompanhar a equipa nacional de hóquei, que ia disputar a Taça das Nações em Montreaux, Suíça. Dois anos mais tarde, chegou a vez de se deslocar a Antuérpia, onde foi a pioneira no exame das “Figuras de escola” – a gramática da patinagem, baseada em desenhos semelhantes ao algarismo oito, com diâmetros de medida certa e que variam consoante as categorias.
Em 1952 viaja com o Académico do Porto para o outro lado do Atlântico. A imprensa brasileira fez manchete da sua presença. As fotografias falam por si. Getúlio Vargas – o presidente do Brasil, mano-a-mano com Edite Cruz. “Ainda hoje guardo na memória as suas palavras”.
Segue para a Argentina. O velho ditador Peron recebeu-a. Quando regressou à capital de um Portugal atrasado, o SLB fez-lhe uma homenagem. Até hoje, a única.
A Rainha do Patim não tem coroa verdadeira, mas fez o que mais ninguém conseguiu. Durante uma festa nos jardins do Conde de Farrobo, Amália Rodrigues cantou e Edite dançou o fado a patinar. A direcção do Benfica, que teimava em apostar no futebol, de vez em quando, esquecia a bola e mandava vir uns treinadores europeus que amestravam, no Pavilhão dos Desportos, os últimos gritos do patim em rodas. Foi lá que conheceu o técnico belga Eulaer que, diante da sua agilidade, não hesitou em lançar o desafio: fazer, por seis meses, um estágio em Antuérpia. Para além da espantosa aprendizagem, o acaso ficou do seu lado. Nessa exacta altura, a Companhia amadora de Roller Skating encontrava-se na cidade belga. Convidaram-na para uma digressão na Bélgica, Holanda e Alemanha. “Foi maravilhoso!” Trouxe taças. Medalhas. Experiência.
Chegou a Portugal com vinte anos, com outra visão, e de calças. “Fui uma das primeiras mulheres a vesti-las”. Salazar, que não se tinha enervado com as farpelas usadas pelas patinadoras, que mostram mais do que os joelhos, não se aborreceu com as modernices, que iam mais longe do que Badajoz. “Eu só tinha dois agentes policiais”. Os pais. A Pide, de carne viva e ossos calcificados, estava infiltrada no Benfica. Alguém garantiu que Edite era uma opositora ao regime. “Chamaram-me de espiã”. Disparate. Nunca foi. Não tinha paciência. O sócio que militava no clube da Luz, e num outro de tochas apagadas, sediado Rua António Maria Cardoso, resolveu a justiça às quatro da manhã. Foi buscar o coitado que repetiu o zunzum e refrescou-lhe as ideias da feição que entendeu: afundou-lhe a cabeça numa tina de água gelada.
Em 1958 casou. E a carreira profissional estancou nesse parágrafo. Tal como as hospedeiras que deviam ser solteiras, as patinadoras não fugiam à regra de Salazar. Ainda deu aulas no Paço de Arcos e no Benfica, mas o evo da patinagem, apesar de não estar enterrado, morria. Nos anos 70 recebeu uma carta. O remetente pedia-lhe que actualizasse a sua efeméride. Um representante da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira pedia-lhe dados biográficos. “Fartei-me de rir”. Edite ri mais, quando fica a saber que sobre a sua intensa caminhada estão meia dúzia de linhas no site do SLB.
DA CAPARICA PARA O MUNDO
Ainda criança pequena descobriu a paixão da sua vida num pavilhão na Costa da Caparica, durante as férias com a família. José Cruz, o pai, nunca se lhe pode opôr, a filha era um talento natural. Hoje em dia, aos 73 anos, conserva a posse elegante e um andar que mais parece que desliza.
A casa onde mora é testemunho de uma vida sobre patins e em glória, que a levou aos quatro cantos e a fez conhecer gente como Getúlio Vargas, o presidente brasileiro, ou o ditador argentino Peron.
O pai de Edite condicionou a profissionalização da filha: se ela lhe demonstrasse ser capaz de fazer a andorinha, uma figura que as patinadoras criam em movimento, deixaria-a seguir o sonho. Edite provou que era um talento inato. A sua graciosidade era inegável. Na foto ao lado, Edite com uma classe de ginástica
O encontro das rainhas, Edite Cruz e Amália Rodrigues deu azo a uma originalidade na história da canção nacional. A rainha dos patins ‘patinou’ um fado enquando a rainha do fado o cantava.
ENCICLOPÉDIA GANHA AO SPORT LISBOA E BENFICA
Nos anos 70 recebeu uma carta da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Queriam adir dados biográficos. Mas a sua intensa caminhada sobre patins só vale estão meia dúzia de linhas no site do Sport Lisboa e Benfica – um clube que é seu desde o segundo da gestação, é sócia número 228, e que só lhe deu dois emblemas. “Um de prata, outro de ouro” – oferta universal para todos os sócios que completam um quarto e meio século de associativismo.
A recordação da apresentação de Edite Cruz nos Açores ficou num postal. A Rainha do Patim percorreu o País de lés-a-lés, não houve terra que lhe escapasse, nem palmas que ficassem por bater. Depois veio também o estrangeiro. A colecção ‘Ídolos do Desporto’ trouxe à capa o seu talento, sobre as rodas numa graciosidade nunca antes vista naqueles tempos de ditadura.
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