Uma vida entre Domingos e Belle

Nasceu na época de ouro dos travestis e comemora 35 anos de carreira. A vida do homem que ficou famoso de saias e batom

17 de julho de 2011 às 22:00
Domingos Machado, Belle Dominique Foto: Sérgio Lemos
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A timidez de um contrasta com a exuberância do outro e, acredita o primeiro, talvez tudo se explique "com os signos". Domingos Machado, alentejano de Moura e criação, nascido em 1950, é tigre no horóscopo chinês. Belle Dominique, feita mulher em Lisboa, ainda no rescaldo da revolução de Abril, é dragão.

À avó Berta, Domingos, então com 25 anos, regressado há pouco mais de um ano do Ultramar, não conseguiu dizer para que queria de verdade aquelas roupas de mulher que lhe pediu para costurar. "É para uma brincadeira de Carnaval, para a gente se divertir um bocadinho" - disse na altura à senhora, que prontamente ‘cozinhou' dois exuberantes trajes para fazer feliz o neto que regressara da guerra e que, sem que ela alguma vez tenha sabido, viriam a ser usados em espectáculos de travestis no final da década de 70, em tudo quanto era movida lisboeta, antes de Domingos ter capital para comprar roupas já feitas.

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Primeira actuação

Riscando do álbum de memórias os circos da infância - no celeiro da casa do Alentejo com um bando de miúdos da mesma rua - e as cantorias em que imitava as divas de então perante os aplausos da tia Manuela, foi em Angola, em plena guerra colonial, que Domingos Machado vestiu pela primeira vez roupas de mulher improvisadas. Pintou-se como sabia e podia num meio (quase) exclusivamente masculino. Um entre quatro homens de barba rija que desafiaram os preconceitos de então e prepararam um número para animar o Natal das tropas, em 1973, em Luanda.

"Houve um, mais maluco, que teve a ideia de fazer um concurso de misses para incluir no espectáculo de variedades: eu era a ‘Miss Mensagens' porque a minha especialidade na tropa era radiotelegrafista. Ficou tudo em êxtase, um delírio: comandante, segundo comandante, com as esposas e filhos, oficiais, soldados, ninguém da hierarquia faltou ao espectáculo" que, à distância destes anos, parece um insólito da época. "É verdade que estamos a falar do início dos anos setenta, de um cenário militar, mas eu acho que a grande responsável desta liberdade de costumes foi a mística de África". Quando aterrou "com o fogo todo" na "cinzenta e claustrofóbica Lisboa", em Dezembro de 1974, na mala trazia já o "embrião da Belle Dominique", uma espécie de preâmbulo para a personagem que nasceria em 1976 depois do desafio de um amigo para actuar no Memorial, um dos poucos sítios onde o ambiente não era exclusivamente gay ou hetero.

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Domingos e Belle nunca mais se largaram - apesar das tais diferenças vítimas do horóscopo: "O Domingos é discreto, prefere que não dêem por ele; a Dominique é exuberante, cavalona, marca presença". Para ele, ela é mulher e irmã. "Mulher porque dorme comigo todas as noites; irmã porque farto-me de falar com ela". Funciona como "terapia porque é uma forma de extravasar a minha parte feminina, o facto de ser um pouco afectado femininamente enquanto homem. A Belle tirou-me tiques e permitiu-me ser um homem mais normal".

Uma década antes do nascimento do travesti, em 1966, Domingos abandonava o Alentejo profundo, "por dificuldades económicas da família", e instalava-se em Lisboa, junto com o pai, farmacêutico, "um homem do antigamente, muito alheio", a mãe, doméstica, e as três irmãs. Tinha 16 anos e teve de se habituar a uma outra rotina - esperava-o um trabalho como paquete, "moço de recados de um fornecedor de navios" no Cais do Sodré, onde haveria de se manter até voltar do Ultramar, para ajudar a família com alguns tostões.

Continuou os estudos à noite [curso geral de Comércio] e, entre uma e outra obrigação, desdobrava-se em aulas de inglês, francês, italiano e balé - nesta modalidade pagava metade por ser rapaz. "Nunca contei a ninguém que andava no balé, porque isso era sinal de mariquinhas". Já o hobby, partilhou com a família. "Como tinha os antecedentes de criança, não ligaram muito, mas não somos muito de nos metermos na vida uns dos outros. Tenho uma sobrinha-neta que quando me vê na televisão diz: ‘Olha o tio mascarado'".

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Sobre preconceitos alheios, não hesita: "Antigamente as casas enchiam, havia um espírito aberto para conhecer o que havia de novo. Claro que havia aquela coisa de ‘que maricas, vestidos de mulher', mas hoje a nova geração não vai aos shows porque não quer ver os paneleiros", explica, lamentando também a frequência com que "se confunde travestismo com homossexualidade. Andar vestido de mulher não é ser gay".

Guerra

Em Angola não chegou nunca a conhecer as agruras do combate - "nunca andei no mato" -, tão-pouco sofreu de saudades românticas: "Tinha tido uns namoricos com meninas antes, mas como nunca tinha sido nada de muito consistente não deixei ninguém à minha espera: nem meninas nem rapazes, com quem também tive romances mas nada de coisas sérias". Ainda assim, já homem feito teve "três paixões de caixão à cova", mas que não vingaram. "Sempre achei que uma relação emocional podia ser castrante para quem é tão livre como eu". Livre ficou também para viver como protagonista as histórias dos camarins - locais privilegiados para todos quantos pisaram alguma vez o palco. "Era um espaço muito íntimo, onde fiz muitas loucuras que me souberam muito bem, situações picantes e muito saborosas. Até namoricos havia lá dentro porque havia público masculino que tinha uma grande atracção por nós e nos visitava nos camarins" depois dos espectáculos.

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Em 1977 começou a trabalhar no Scarlaty Club - propriedade de Guida Scarlaty, um travesti contemporâneo de Belle Dominique - espaço que abandonou para fundar, com sete amigos, a Travecoop, uma espécie de cooperativa de travestis que trabalhavam para o mesmo bolo.

"Sempre fui a ala esquerda do travesti. Votava PCP, APU, tinha ideias corporativistas. Por isso saímos da casa da Guida, porque nos sentíamos explorados por ela: pagava-nos mal, trabalhávamos muito, o proveito era pouco". Foi então que, juntos, "chegámos à conclusão de que éramos capazes de trabalhar em qualquer lugar porque tínhamos capacidades para tal". A divergência teve honras de "notícia no ‘Diário de Lisboa'" e as pazes haviam de ser feitas "anos mais tarde, até porque ela tinha um fraquinho por mim". Entre todas "havia uma rivalidade construtiva", fomentada dentro e fora do palco, nomeadamente no Ronda 77, no Monte Estoril, onde hoje dá cartas a discoteca Bauhaus. Só com Lydia Barloff as relações nunca foram cordiais.

"Era a única com quem não tinha amizade, chegou a prejudicar-me em termos de trabalho" - revela. No fim dos anos setenta e em toda a década de oitenta os espectáculos de travestis "inundaram Lisboa" - dizia em 77 a revista ‘Opção', que calculava em meia centena aqueles que trabalhavam nos bares e discotecas da capital. Apesar "de terem sido tempos de prosperidade económica, em que se ganhava muito bem - receber 25, 30 contos por noite era excelente à época" -, Domingos não abdicou de ter um emprego normal e manter a Belle apenas como part-time. "Concorri para técnico administrativo da RTP em 1981, mas nunca exerci a função. Trabalhei no apoio às equipas de reportagem durante quatro anos e depois passei a assistente de realização". Conheceu de perto as caras que iam chegando. "Lembro--me do Rodrigues dos Santos, ainda miúdo, da Judite de Sousa quando veio do Porto para Lisboa..." Durante meses escondeu dos colegas a existência de Belle, "mas foram-me encontrando nos espectáculos e não deu mais para evitar".

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Programa na TV

Em 1995 foi convidado por Manolo Belo para co-apresentar com Júlio César o programa ‘Minas e Armadilhas', na SIC, na primeira vez que um travesti teve tal visibilidade no pequeno ecrã, e meses depois integrou o júri do ‘Big Show SIC'. "Não foi um choque, mas foi uma pedrada no charco na televisão e na sociedade da altura", recorda Júlio César. "Ajudei a quebrar tabus" - prefere Domingos. Trabalhar na RTP e na SIC simultaneamente quase lhe trouxe dissabores. "O José Eduardo Moniz, que era meu director na RTP, veio falar comigo, mas o caso resolveu-se porque juridicamente havia duas entidades: o Domingos e a Belle, cada um trabalhava para o seu canal".

A par da televisão, continuou a actuar em casas de espectáculos: "De manhã ia para a televisão, à noite fazia shows, deitava-me à hora que fosse. Porque depois dos espectáculos não se ia logo dormir: ia-se beber um copo, namorar, cear". Economicamente não lhe faltava nada. "Com a Belle conseguia tirar quase mais um ordenado, deu para viver muito bem".

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Em 2003 rescindiu amigavelmente com a RTP e, juntamente com a personagem, reformou-se. Durante quatro anos pôs o sono em dia, até receber o Prémio Carreira na Gala dos Travestis em 2009, que o incentivou a voltar. "A verdade é que sentia falta da Dominique. Mas, quando reparei, tinha-me deixado engordar, os fatos que tinha guardado não me serviam, tive de agir". Regressou aos palcos - embora o cachet "seja contado muito por baixo comparando com o passado" - e tem nas Docas uma exposição comemorativa da carreira. No último ano perdeu 19 quilos, fez uma tatuagem e furou as orelhas, depois de anos a aguentar brincos de mola. Compra a bijuteria que usa nos espectáculos em lojas de chineses, mas Belle não se importa com a contenção de Domingos. Já o conhece há 35 anos.

Musical ironizava com o FMI... em 1983

Em 1983, quando o FMI entrou pela primeira vez em Portugal, Belle Dominique criou um vestido com as cores da bandeira nacional - num espectáculo que estreou no Ronda 77 e que recuperava um musical francês. O ‘parceiro' que com ela dançava vestia um smoking, que representava... o FMI. ‘Je cherche un millionaire' era um dueto que simbolizava Portugal à procura de um milionário, o FMI. "Hoje era bastante actual, visto que voltámos a precisar de ajuda externa. Mas se repetisse o número já não vestia a bandeira nacional, vestia-me antes de mendiga". Antes do 25 de Abril, Domingos Machado chegou a participar "em duas manifestações e a colar cartazes contra o regime, junto com amigos que estudavam no Técnico. "Mas, felizmente, nunca fomos apanhados pela PIDE".

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