VIVEMOS 18 MINUTOS DE HORROR
Eduardo Grilo e Ana Santos são dois dos 304 passageiros que, a 24 de Agosto de 2001, faziam a viagem Toronto/Lisboa, na Air Transat. Relato de quem passou uma eternidade a olhar para a morte
Magazine Domingo (MD): Vinham de Toronto, num voo que parecia sem problemas. Qual foi o momento em que deram conta de uma situação de perigo?
Eduardo Grilo (EG): Quando começaram a servir o pequeno almoço à pressa. E mais tarde, quando nos mandaram vestir os coletes. Isso só acontece quando vamos amarar. Ainda para mais, mandaram-nos esticar os braços para frente e baixar a cabeça, para ficarmos dobrados. Estava visto para o que é que nos estavam a preparar. E há sempre alguns que se salvam.
Ana Santos (AS): Acho que foi quando eles viram que só traziam um motor. Aquilo vinha tudo aos solavancos, parece que estava numa auto-estrada cheia de buracos. Aí é que toda a gente acordou, e foi nesse momento que a tripulação se apercebeu da situação que ia viver. Ainda vieram vender os souvenirs. Depois começou cada um deles a correr para o seu lado.
MD: E como é que se aperceberam de que corriam perigo de vida?
EG: Pela da reacção dos elementos da tripulação, porque quando um comissário de bordo ou uma hospedeira entram em pânico, caramba, há qualquer coisa ali de gravíssimo.
AS: O avião já não ia mais longe, até porque o piloto tentou aguentá-lo o mais possível no ar. Foi ali porque não havia mais hipóteses. Se a ilha não estivesse lá ele tinha aterrado na água. Ficámos no aeroporto, mas o piloto tinha dito que estava a embicar para a Praia da Vitória, para ficar mais perto da costa. A ideia era sermos assistidos pela Marinha, que também já estava de prevenção.
MD: Desde que momento é que foram informados de que o avião não tinha gasolina?
EG: Soubemos que havia problemas muito cedo, porque vínhamos do Canadá, e quando se faz essa travessia o voo é feito contra o sol. Alguns dos passageiros habituados a fazer aquela viagem aperceberam-se de imediato de que algo não estava bem, porque o sol estava na cauda. Mas a maior parte das pessoas soube um quarto de hora antes da aterragem.
MD: Os elementos da tripulação não sabiam de nada?
EG: Creio que não. Só souberam mesmo quando já não havia gasolina. Até lá julgavam ser apenas mais um problema com solução à vista.
MD: Foram 18 minutos de terror?
EG: Foram 18 minutos de pânico, a ver outras pessoas a chorar. Eu não estava a rezar, estava a pedir ao piloto para me salvar. Era nele que acreditava. Mas podemos dizer que são 18 minutos de horror, de sensação de morte. Um tipo despedir-se porque vai morrer não é nada fácil.
MD: Surgiram muitas situações anormais?
EG: Surgiram. Quando o avião cai sem combustível num poço de ar não oferece resistência, desce muitos metros em poucos segundo e as máscaras de oxigénio disparam. A minha ainda tinha oxigénio mas a da minha mulher já não; fui eu que lhe pus a dela porque ela já não conseguia. Em terra também aconteceram coisas estranhas. Acho que não houve qualquer tipo de acompanhamento por parte do Governo português, ninguém se preocupou connosco. Note que fizemos uma viagem de cinco horas de barco, da Terceira até São Miguel, isto depois de termos caído num avião que se enterrou a 500 quilómetros/hora na pista e termos ultrapassado um série de traumas. Fomos maltratados em São Miguel, onde tivemos que fazer novamente o check-in, com crianças a chorar e toda aquela tensão.
MD: Estava tudo pronto para a amaragem?
EG: Estava. Não havia preparação para aterrar, dentro do avião tudo o que foi feito foi para a amaragem. Era para em vez de morrermos 90 morrermos 88.
Foi algo muito traumatizante...Em termos emocionais, foi devastador. Nós despedimo-nos, falámos da nossa vida num minuto; dos filhos, dos netos... despedimo-nos, demos um beijinho, demos a mão... Deixou mazelas. A minha mulher não quer andar mais de avião; eu, como tenho menos, juízo arrisco. Mas estou convencido que há muita gente que continua afectada. E até eu às vezes sonho com aquilo
AS: Foi uma experiência muito má.
MD: Nessa altura, quais foram os grandes sinais de pânico que viram?
EG: Havia muita gente em pânico, a abrir coletes lá dentro (o que é proibido), a chorar, aos gritos; aquilo é uma cena do caraças, parece tirada dos filmes. Mas foi a realidade e passou-se connosco e com todos os outros 302 passageiros que lá iam. Mas o português é um indivíduo diferente quando se fala em reacções. E há coisas interessantes. Quando o avião bate a primeira vez na pista, quando ainda não estava seguro, e torna a levantar, começaram logo todos a bater palmas. Devemos ser o único povo do mundo que bate palmas aos pilotos.
SÓ ACONTECE AOS OUTROS
MD: O acidente de avião tem a particularidade de nos fazer crer que apesar do aspecto perigoso da máquina, nada de mal vai acontecer connosco...
EG: Exacto, até porque depois de uma viagem maravilhosa que fizemos ao Canadá, nunca pensámos que tal viesse a acontecer. Aquela gente com quem falámos e de quem ficámos amigos, fez com que fosse algo de inesquecível. E depois isto...
MD: Mas no meio do azar ainda houve uma série de dados que jogaram a favor...
EG: A nossa sorte é que no dia anterior tinha havido uma tempestade nos Açores e não levantavam nem aterravam aviões. Se fosse nessa altura tínhamos morrido todos. Tudo estava propício a que conseguíssemos aterrar. Também tivemos a sorte de não se terem partido os trens de aterragem (acho que só se partiu um). E aconteceu outra coisa; quando saímos do avião, por aquelas mangas de borracha colocadas nas portas de emergência, havia gajos que estavam a tirar as bagagens, como se nada tivesse acontecido. Ainda tive que empurrar um à minha frente e dizer: “é pá, você largue a bagagem da mão”. Só queria sair de lá de dentro.
MD: Mas nem todos tiveram essa reacção!?
EG: Eu tinha uma senhora ao meu lado que me deu cabo da cabeça. Enquanto aquilo durou ela chorava, gritava, batia nos meus braços e só dizia: “Ó vizinho vamos morrer”. E eu respondia: “É pá, sente-se, ponha o cinto, sei lá se vamos morrer, eu ainda não caí”.
AS: Era algo indescritível. Só passando pela experiência, até porque uma pessoa vai no carro morre e acabou. Ali vivemos 18 minutos a sofrer, a pensar: “É já, é agora, é depois”.
MD: Deve ser uma angústia terrível.
EG: E o piloto a avisar: “Faltam oito minutos, se calhar vamos conseguir chegar a terra”, mas ele não estava confiante. Depois dizia: “Faltam cinco”. Era uma contagem decrescente terrível mas necessária, até para estarmos preparados. E depois há outra coisa que não sei se alguém chegou a falar. Quando chegámos a Angra do Heroísmo, o avião deu uma volta porque quando chegou às Lajes ia alto demais. Imagine que aquilo cai em cima da cidade. O tipo ainda conseguiu fazer essa manobra.
MD: No que é que pensaram?
EG: Pensei na família, nos netos, no facto de estarmos casados há trinta e tal anos. Não podia fazer mais nada, estava amarrado.
MD: Mesmo assim é uma atitude calma...
EG: Deve ter sido por ter estado em África, isso talvez me tivesse dado uma certa calma, ou então porque sou inconsciente. Nunca sabemos porque é que há tipos que estão mais calmos, a aceitar aquilo de forma natural – e estavam lá vários, eu era um deles – e outros aos gritos e a chorar.
MD: É a resignação?
EG: Acho que sim, não havia nada a fazer. Tem mais a ver com isso do que com qualquer acto de heroísmo. É pensar: “É hoje e acabou”. E também há pessoas que nunca se convencem de que vão morrer. A minha mulher confessou-me depois que nunca acreditou que a vida dela acabava ali.
AS: Não dizia nada, mas não acreditei que fosse a minha hora. Pensava: “Não posso morrer aqui, tenho que ver os meus netos”. Mas também pensava que num acidente de avião ninguém escapa, que isso é um milagre.
MD: Foi uma enorme luta interior?
AS: Foi. Hoje quando penso nisso, ou quando qualquer coisa me assusta, começam logo as mãos a tremer-me. Nos primeiros tempos não dormia e ia ao médico de clínica geral, que me receitava algo para os nervos.
MD: A descida deve ter sido muito violenta. Como reagiu o corpo?
AS: Já vinha dormente. Quando aterrámos foi preciso o meu marido bater-me no estômago e dizer para sair dali. Se aquilo tivesse explodido acho que não tinha sentido nada, porque o ar começou a faltar e eu comecei a adormecer. Fazia muito calor, não havia ventilação.
EG: Eu é que tive de tirar o cinto e puxá-la de lá. E quando o avião pára quem abre a porta nem é o comissário, é um tipo que vai à minha frente. O comissário ficou parado, em choque.
MD: Como é que as crianças reagiram?
EG: Choravam muito. Isso foi o que mais me impressionou. Quando chegámos a Lisboa os miúdos andavam em pé, mas quando a tripulação começou a dizer para as pessoas se sentarem, as crianças começaram a correr dentro do avião, com medo.
MD: E o piloto?
AS: Ao que dizem, depois de aterrar desmaiou. Mas não temos certeza se de facto isso aconteceu.
Depois disso, fizeram dele um herói.
EG: E foi. Nós não lhe podemos tirar o valor, porque estávamos na mão de um indivíduo que conseguiu de facto resolver o problema. Mas, creio eu, também houve ajudas em terra.
MD: Quando o avião parou foi uma espécie de salve-se quem puder?
EG: Foi tudo a sair o mais depressa possível, menos o que estava a tirar a mala.
AS: Mas não conseguiu. Eu queria passar e disse-lhe que depois alguém a vinha buscar. Ele ainda perguntou se achava que isso ia acontecer. Eu nem sabia se estava em terra, só quando cheguei à porta do avião é que me lembro de ouvir o meu marido gritar: “Manda-te, manda-te”. E eu mandava-me como, se aquilo não tinha escadas nem corrimão? Dei um salto, ainda me arranhei de lado, num braço, e levei um pontapé de outra senhora que saltou depois de mim.
MD: Qual foi a primeira coisa que fizeram quando chegaram a terra?
EG: Foi telefonar para a filha, que estava no Algarve, e depois ir ter com ela, para dar-lhe um beijo e um abraço aos netos.
MD: E no momento em que saíram ?
EG: Quando o avião aterrou nós fugimos, afastámo-nos, e aí é que começámos a chorar. Depois já éramos três, dez, 15. Toda a gente chorava.
AS: Aí é que mandámos para fora tudo o que estava lá dentro e que não libertámos dentro do avião.
MD: Passando por uma experiência dessas vê-se a vida de outra maneira...
EG: É verdade. Preocupamo-nos menos. Passamos a dar mais valor à vida e menos às coisas mesquinhas, àqueles atritos sem jeito. E tentamos viver mais intensamente a vida, porque há que aproveitar enquanto cá estamos.
AS: Quando não pensamos no que se passou é indiferente, mas quando vem à memória, procuramos aproveitar o mais possível.
O PILOTO FAZ DESTINO
MD: Acham que o destino vos salvou?
EG: Tem mais a ver com piloto, foi ele que fez o destino. Quando apareci ao pé do meu irmão disse-lhe que não tinha sido a minha hora e sabe o que é que ele respondeu? “Não foi a tua hora não, não foi a hora do piloto”. E tem razão, se fosse a hora do piloto eu também ia.
MD: São crentes?
EG: Sou ateu, sou do contra. Acredito mais em si do que no Espírito Santo. Mas havia uma senhora que passou a viagem a rezar e que pode dizer agora que foi por causa do terço.
MD: Tiveram apoio de Psicólogos?
EG: Absolutamente nada, o que era necessário. Creio que a minha companheira precisava disso quando chegou. Eu como tenho a mania de que sou valente, acho que passei. E ninguém sabe avaliar o que é que isso nos fez por dentro. Todo o nosso corpo sofreu, devido às alterações que ocorreram naquele momento. Estamos a falar de ver a morte, de senti-la. Não é algo súbito.
MD: Voltavam a andar de avião?
EG: Não sendo algo muito desejado, se precisar não o negarei. É claro que não andarei como antes do acidente. Mas perspectivas de ter um desastre daqueles só daqui a 100 anos. Estou a pensar que já não me acontece a mim, embora seja certo que há cada vez menos cuidado em relação às questões de segurança do próprio aparelho.
AS: Eu não volto a andar.
MD: Já algumas vez tinham vivido uma situação tão assustadora, em que sentissem a vida em perigo?
EG: Iguais àquelas nunca vivi, mas, também com a minha mulher, já levei com um carro de frente.
AS: Mas isso foi num curto espaço de tempo, enquanto aquilo do avião parece uma eternidade.
MD: Hoje, como encaram os acidentes de avião que aparecem nos noticiários?
EG: Esse é um dos motivos que faz com que a minha mulher não volte a voar. E cada vez há mais acidentes, porque há menos cuidado.
MD: A que se deveu o incidente?
EG: Segundo consta, havia um problema numa asa. Perdeu-se o combustível de uma lado e o avião desequilibrou-se. Para compensar, passou-se o combustível de um dos lados para o outro, para equilibrar. Na minha opinião, acho que iam os dois (piloto e co-piloto) a dormir lá em cima, porque é impossível não perceber que algo dessa gravidade está a acontecer. Não deu por isso? Acho esquisito, até porque acabou por vazar o avião todo.
MD: O caso está em tribunal?
EG: Está, embora a situação das indemnizações seja ridícula. Estão a propor 8500 dólares por pessoa. Há muitos que vão aceitar. Eu, por exemplo, tenho um advogado no Canadá, com quem costumo falar, e que diz estar a fazer os possíveis. Mas não tenho hipótese de estar lá, falar, discutir.
MD: Por que motivo fala em negligência?
EG: A negligência foi provada porque antes de tudo isto acontecer há um mecânico que telefona para o supervisor e diz que o avião não está capaz de voar, que tem uma deficiência, falta ou está estragado um tubo, exactamente aquele que vai fazer um dos motores perder gasolina. Mas ainda assim supervisor manda voar. Tendo noção do risco que aquilo pode acarretar, o mecânico volta a telefonar e grava a conversa, com medo do que pode acontecer, e o outro dá a mesma ordem. Isto é grave, há uma negligência total por questões económicas. Põe-se em causa a vida de 300 pessoas por mero acaso.
MD: Pensam voltar ao Canadá?
EG: Se voltar a andar é para todo o lado. Posso é não ir na mesma companhia. Achei graça porque os amigos que lá fiz queriam que eu voltasse no São Martinho e, a brincar, disseram que pagavam a viagem. Eu disse que ia, e eles não mandaram o bilhete; pensavam que eu ia dizer que não.
MD: Ficaram com má imagem da aviação?
EG: Se você fizer uma pesquisa, quantos aviões já caíram desde Agosto do ano passado? Ainda a semana passada caiu um no Brasil. É impressionante, os números aumentam pela negligência e pela ganância das companhias.
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