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À espera de fumo branco

A escolha dos Papas nem sempre foi como hoje a conhecemos. A eleição feita por alguns membros do clero – únicos com o poder de votar num Papa – é ‘recente’ na História da Igreja: ‘só’ têm cerca de mil anos.

17 de abril de 2005 às 00:00

Vários Papas a partir do segundo milénio – o alemão Leão IX (1049-1054), Nicolau II (1059-1061) e Gregório VII (1073-1085) – preocuparam-se em criar um grupo de poucos e autorizados membros do clero romano com poderes de eleger o bispo de Roma e impedir que outros o elejam: os ‘cardinalis’. Como ainda hoje se passa.

Nos começos da Igreja, na Roma pagã, a escolha dos sucessores de S. Pedro era feita clandestinamente, em lugares improvisados. Com a liberdade de culto, a eleição do pontífice romano passou a ser feita pela comunidade cristã, à luz do dia. Com a cristianização do império e a influência da nova religião na vida civil e nas autoridades, a escolha passou a ter a inevitável ingerência do imperador e dos seus representantes. Mas nessa altura o papel do Papa era muito reduzido: perto do ano 1000, Roma perdera a sua grandeza imperial, era uma pequena cidade (20 mil habitantes), sem força nem influência. À sua volta, nos outros países e cidades-estado, os bispos eram nomeados pelos reis e imperadores, que lhes davam títulos nobres e os retiravam da esfera do Papa.

A nova forma de eleição, a introduzida pelos Papas acima referidos, acompanha o desejo de centralizar a Igreja. Como se poderia dizer hoje, tornar Roma a sede de uma poderosa multinacional. Uma transformação cujas bases eram: impôr o celibato (para a sua dedicação total à missão religiosa), ordenar que os bispos fossem só nomeados pelos Papas e o Papa fosse só eleito por aqueles que os Papas tinham escolhido, os cardeais. Essa primeira grande revolução ficou marcada pelo decreto ‘In nomine Domini’ (1059), que fez nomear bispos principais, com funções fundamentais, isto é, bispos ‘cardinalis’. Este adjectivo passou a substantivo e assim apareceram os cardeais.

A segunda revolução foi introduzida por Alexandre III, em 1179, que indicou a necessidade de dois terços para a eleição de um Papa, negando que se pudesse recorrer dessa votação. Hoje, continua essa regra, o quorum é de dois terços de votos mais um voto, para as primeiras votações. Mas se persistir o impasse, os cardeais reunidos em conclave podem decidir passar a escolher só com a maioria simples. A partir de amanhã, os 115 cardeais reunidos na Capela Sistina só escolherão o Papa quando um deles recolher 77 votos – e logo nessa tarde haverá uma primeira votação. Se ninguém conseguir reunir tantos votos, mais para o final da semana os cardeais já poderão decidir eleger um Papa só com a maioria simples. Isto é, com 58 votos.

Foi Gregório X, em 1274, quem decretou que os cardeais deveriam reunir-se num lugar fechado e isolado. A razão para isso é a da escolha rápida. Mas para ela própria adoptar esse método, a Igreja teve de ser um pouco pressionada. Já em 1216, esse sistema de fechar os cardeais, pressioná-los e, até, agredi-los era utilizado pelo poder político, para obrigar os eleitores a escolher convenientemente. Em 1241, doze cardeais foram encerrados no mosteiro Septizonio, pelo imperador Frederico II, e ali ficaram em condições insuportáveis. Um dos cardeais morreu e os outros, para ganharem algum tempo, votaram no mais doente de todos: Celestino IV foi eleito por unanimidade, proclamado Papa na igreja de São João Latrão. E morreu 17 dias depois.

Em 1268, em Viterbo, uma cidade a poucas dezenas de quilómetros de Roma para onde o Papado se tinha deslocado, os cardeais foram fechados à chave (‘con clave’, daí o termo conclave), e até murados. Eram alimentados a pão e água, deitados por um buraco feito no tecto, que também ajudava, fazendo passar o frio e a chuva que convenciam os teimosos a decidirem-se. Mesmo assim, bateu-se ali o recorde do mais longo período de tempo sem Papa na Igreja Católica: a eleição durou três anos e vários meses.

Também foi Gregório X, em 1275, que decretou uma norma que durou muitos séculos na Igreja: os conclaves fazem-se no lugar onde o Papa morre. Regra que levou a que os Papas não fossem particulares adeptos de viajar. E foi, recentemente, um Papa viajante, João Paulo II, quem revogou a norma, decretando que, em caso de morte fora de Roma, será o Colégio dos Cardeais e tratar do transporte e a convocar a assembleia na Capela Sistina.

No séc. XIX, previa-se a eleição ‘presente cadavere’, frente ao corpo do Papa morto. O cardeal camerlengo tinha poderes para convocar todos os cardeais e fazê-los eleger um novo Papa diante o féretro do antecessor. A notícia da morte era dada ao mesmo tempo que a notícia do novo Papa. Era um ‘Rei morto, Rei posto’, em simultâneo. E este era mais um dos sinais da vontade da Igreja em manter-se liberta das pressões exteriores. Os acontecimentos de 1378, quando dois Papas foram eleitos no mesmo conclave – tendo Clemente VI sido escolhido pelos franceses e seus aliados e ido para Avinhão, e Urbano VI ficado no Vaticano, abrindo-se o grande cisma do Ocidente que durou 40 anos – determinaram essa preocupação constante de independência.

É pouco provável que alguém fora do conclave seja eleito Papa, embora tal fosse possível. Por exemplo, o arcebispo de Milão, Giovanni Battista Montini, não era ainda cardeal, mas recebeu votos no conclave de 1958, que acabou por eleger João XXIII. Ainda não tinha chegado a hora de Montini, que seria, em 1963, eleito Papa com o nome de Paulo VI, o primeiro a visitar Fátima. Teoricamente, qualquer laico, desde que baptizado, pode tornar-se Papa.

Em 1904, o Papa Pio X decretou a eliminação dos direitos de veto que alguns governantes europeus ainda tinham. É uma ironia porque ele próprio só foi eleito porque o imperador da Áustria, Francisco José, e a Alemanha tinham vetado a possibilidade de eleição do cardeal Rampallo, o secretário de Estado do Vaticano no pontificado anterior. Perante a recusa do germânicos, os cardeais tiveram de escolher o inofensivo cardeal de Veneza, Giuseppe Sarto, uma boa alma que fez questão, ao longo de todo o conclave, de dizer que tinha comprado o bilhete de ida e volta, Veneza-Roma-Veneza. Aliás, para sublinhar o veto, aconteceu um estranho envenenamento geral entre cardeais: na última noite, a farmácia do Vaticano teve de aviar 50 receitas por causa de indisposições. Enfim, votaram em Sarto, que escolheu o nome de Pio X e acabaria santificado.

Ainda hoje, quando se repetem regras que demoraram séculos a apurar, o conclave continua a receber o ar dos tempos, ao mesmo tempo que os influencia. De dentro para fora: quem, hoje, duvida do papel de Karol Wojtyla na queda do bloco soviético? E de fora para dentro: como podem ser insensíveis aos jornais e televisões os 115 homens vindos dos quatro pontos cardeais e que passaram uma semana sobre pressão antes de entrar na Capela Sistina? Até acontecimentos folclóricos como a explosão de TotoPapas, as apostas que indicam favoritos, podem ter repercussão nos votos. Não é sem razão que, a meio desta semana, todos os jornais italianos indicavam o alemão Joseph Ratzinger como favorito, dizendo até que já teria garantido mais de centena de votos. Segundo especialistas do Vaticano, essa revelação poderá fazer enquistar a sua oposição, favorecendo assim os candidatos italianos. Na verdade, o conclave é a política no estado puro.

O QUE OS GRANDES QUEREM

O presidente brasileiro tem um candidato a Papa: “Se o cardeal Cláudio Hummes for Papa, sou o mais feliz dos homens”. O presidente brasileiro tem horror a que um cardeal seja eleito Papa: o cardeal Dom Eusébio Oscar Scheid, do Rio de Janeiro. Este disse de Lula, ao desembarcar em Roma, para as exéquias de João Paulo II: “Lula não é católico, é caótico”.

Aos grandes líderes mundiais não é indiferente o que se vai passar na Capela Sistina. George W. Bush, bombardeado por João Paulo II sobre a questão do Iraque, deve estar a rezar para que se eleja um Papa mais cordato. O seu favorito, diz-se nos meios católicos americanos, é o alemão Walter Kasper, conhecido pelas suas posições sobre integridade do Ocidente, contra os ortodoxos do Leste e os islâmicos. Por outro lado, Bush não veria com bons olhos um Papa latino-americano. Por exemplo, um mexicano que, mudando o que há para mudar, teria papel similar ao de João Paulo II com o mundo soviético: empolgando a América Latina contra o poderoso vizinho do Norte.

Também Putin pretende um Papa que não o incomode: qualquer repetição de candidato do Leste, como o checo Vlk, seria desagradável. Jacques Chirac aspira a um cardeal do Terceiro Mundo, como o nigeriano Arinze ou o hondurenho Maradiaga.

A Gerard Schroder só interessa um papa de língua alemã. São seus candidatos o óbvio Ratzinger e o cardeal de Viena, o jovem Christoph Schonborn. Nos países islâmicos, deseja-se sobretudo não ver na cátedra de Pedro o reformista Carlo Martini, ex--arcebispo de Milão que vive em Jerusalém, estudando a Bíblia judaica.

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