O homem tenta comunicar: “Coimbra… Abazi…Maria Pureza”. Os militares portugueses destacados no Kosovo esforçam-se por o perceber, sem sucesso. A sensação é de que estaria a falar de futebol.
A primeira tentativa de diálogo perde-se e os tropas do 2.º Batalhão de Infantaria/KFOR seguem o programa estabelecido, enquanto o albanês regressa ao café de onde saíra a correr, pouco antes, ao ver os jipes com a Bandeira Portuguesa a encimar as antenas de comunicações.
Mas o habitante de Gnjilane/Gjilan – 47 quilómetros a sudeste de Pristina, capital da província sérvia – não desiste. Quando os militares voltam, passada meia hora, regressa à beira da estrada, apontando para cinco folhas que ajudarão a desbloquear a conversa.
São salvo-condutos escritos em português, emitidos pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras em 1999. Skender Nuredini, de 37 anos, e a família estiveram refugiados em Portugal durante a guerra no Kosovo.
A história que o homem quer contar assume agora outra relevância e, depois de várias tentativas junto dos transeuntes, um jovem aceita ser nosso intérprete de Inglês-Albanês.
Skender, a sua mulher Fatime, de 33 anos, e os filhos –Grantit, Driton e Hazbije, com idades entre os 12 e oito anos – chegaram a Portugal no dia 6 de Maio de 1999. Na altura, o filho mais novo tinha apenas três meses de vida e a família incluía outras nove pessoas. A eles juntou-se, no dia seguinte, Selim Nuredini, irmão de Skender, que ficara retido pelos sérvios e foi descoberto pela Cruz Vermelha Internacional num campo de refugiados em Stankovic, na Macedónia, onde também esteve a restante família.
Fugiam da guerra, como os outros 1256 refugiados acolhidos no nosso país, e ficaram alojados em Coimbra, no Instituto de Cegos do Loreto, transformado num centro de acolhimento, dirigido por Maria Pureza. O albanês, à época operador de máquinas e hoje segurança numa empresa, chegou apenas com a “roupa do corpo e pequenos sacos de mão com documentos”.
A INSISTÊNCIA
A Insistência de Skender em falar com os militares tem como principal objectivo mostrar o quanto gostou de Portugal: “Foram os três melhores meses da minha vida”, diz, salientando que conheceu o ex-jogador de futebol da Académica de Coimbra, Abazi – também albanês. “Os meus filhos gostaram muito de lá estar e todos queremos voltar, nem que seja apenas por duas semanas, mas não conseguimos falar com ninguém do centro de acolhimento. Não temos contactos”.
Eduardo Abazi, que tem um café em Coimbra, conheceu o conterrâneo quando foi intérprete entre portugueses e refugiados, a pedido da Segurança Social – à semelhança do seu irmão e amigos imigrantes –, e gostava de o rever.
Skender – que vive num município com 130 mil habitantes, de grandes potencialidades agrícolas, onde nalgumas cidades convivem albano-kosovares e sérvios – recorda-se como “foi bem recebido e tratado, da cidade de Coimbra e da praia da Figueira da Foz”. Era costume passarem o tempo nas instituições de acolhimento e em cafés das redondezas.
Por isso, o seu “grande sonho” é regressar a Portugal, para descobrir outros mundos, como aconteceu há oito anos. A sua família, apesar de ter características urbanas, enfrentou algumas dificuldades de adaptação ao centro de acolhimento e passou por momentos insólitos, como aconteceu a outros refugiados.
Os albaneses viveram como “um grande acontecimento” a aquisição de uma máquina de lavar roupa. “No dia da instalação, quiseram vê-la a funcionar e ficaram sentados muito tempo a olhar para o tambor a rodar”, recorda um dos portugueses que lhes prestou auxílio.
A PERMANÊNCIA
A permanência dos refugiados gerou algumas dificuldades, sobretudo devido às diferenças nos hábitos alimentares. Por exemplo, a carne de porco, habitual na ementa nacional, não faz parte da sua dieta. Por outro lado, embora fossem albaneses, havia muçulmanos e cristãos, o que causou conflitos – os mesmos que teimam em subsistir na província kosovar. Em relação aos portugueses, os problemas eram de comunicação e foram minimizados com uma brochura ilustrada com os principais objectos e palavras escritas nas duas línguas.
A Segurança Social distribuiu-lhes ainda cópias do Fraseário Internacional de Emergência Médica.
As autoridades nacionais asseguraram-lhes dormida, alimentação, higiene, roupa, consultas médicas e alguns chegaram a ter aulas de português – não foi o caso de Skender, que apenas articula dois ou três nomes de pessoas. Além disso, a sua família recebeu 165 euros por mês de subsídio de apoio social, que poderia gastar como entendesse e muitos bens oferecidos por gente solidária.
Apesar de não ter autorização para trabalhar, o ex-operário de máquinas gostava de ajudar nas tarefas no centro de acolhimento do Loreto.
A família Nuredini regressou ao Kosovo a 26 de Julho de 1999, levando mais do que trouxe, à semelhança dos outros refugiados. Cada um carregou 35 quilos de bagagem, o máximo permitido nos aviões, sobretudo roupa doada. Dos 1271 albaneses acolhidos em Portugal – 120 em instituições do distrito de Coimbra –, 987 regressaram ao Kosovo, 121 mostraram interesse em ficar e os restantes desapareceram dos centros de acolhimento, desconhecendo-se o seu paradeiro.
A 6 de Novembro de 1999, o Governo decretou o corte do subsídio aos que permaneceram e a 11 de Fevereiro do ano seguinte mudou-lhes o estatuto para imigrantes legais.
Hoje, como há oito anos, Skender continua a viver um futuro incerto, como o do Kosovo – uma província à espera da independência que a Sérvia recusa dar. Por isso, sonha com outras paragens: Tem Portugal “no coração” e deseja regressar. Quer revisitar o paraíso descoberto quando fugiu do inferno dos Balcãs.
A PAZ QUASE INSUSTENTÁVEL
O Kosovo é uma província pobre (ainda) da sérvia que enfrenta três problemas fundamentais: a criminalidade, o desemprego e a instabilidade política. Como a família de Nuredini, a generalidade da população vive suspensa, até ao final do ano, de uma decisão internacional quanto à declaração da independência da região albano-kosovar. A maioria dos habitantes não tem emprego e as máfias do tráfico de droga, armas e pessoas vivem na impunidade.
ÊXODO NA EUROPA DEVIDO AOS BALCÃS
Em 1989, depois de decretado o fim da autonomia do Kosovo pelo governo sérvio, 350 mil albano-kosovares exilaram-se na Europa ocidental e outras cem mil pessoas abandonaram a região durante a crise de 1998. Na sequência dos bombardeamentos aéreos da NATO, que começaram em 24 de Março de 1999 e duraram 78 dias, 848 mil foram obrigados a fugir ou expulsos para a Albânia (444 600), Macedónia (244 500) e Montenegro (69 900). Entre os refugiados acolhidos na Macedónia, 91 057 foram evacuados para 29 países, no âmbito de uma ponte aérea humanitária, tendo Portugal recebido 1 271 refugiados, segundo dados de 2001 do Conselho Português para os Refugiados. Mais de 600 mil regressaram ao Kosovo nas três semanas seguintes à assinatura do plano de paz. Ao mesmo tempo, 180 mil sérvios deixaram o Kosovo em direcção à Sérvia.
FORÇAS INTERNACIONAIS ENTRE ETNIAS INIMIGAS
60 %: A taxa média de desemprego no Kosovo – uma província pouco maior que o distrito de Beja – é de 60%, mas há zonas onde atinge os 90 %. Os melhores empregos são os oferecidos pelas organizações estrangeiras.
10 %: A população sérvia – sem o Kosovo – é constituída por 7,5 milhões de pessoas; 83% são sérvias, 10% albano-kosovares e 7% pertencem a outras minorias. No Kosovo, 92% dos 2,1 milhões de habitantes são albano-kosovares.
15 MIL: A KFOR tinha 38 mil militares em Dezembro de 2001, que passaram para 25 mil em Junho de 2003 e 17 mil em final de 2003. Actualmente são 15 mil militares de 34 países (24 da NATO e dez não NATO).
290: Portugal está representado na força multinacional com 290 militares do 2.º Batalhão de Infantaria/KFOR, 29 dos quais são mulheres. A missão destes militares vai prolongar-se até Março do próximo ano.
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