A revolução tinha 21 dias quando saiu a ‘Gaiola Aberta'. José Vilhena escarnecia dos políticos e da igreja e ainda mostrava mulheres nuas.
Por mudança de ramo, trespassa-se estabelecimento à rua António Maria Cardoso, nº 20." Poderia ser um inocente anúncio classificado, colocado numa nova revista acabada de chegar às bancas. Uma revista que, estranhamente, abria com duas páginas de anúncios classificados. Todos falsos. Porque na rua António Maria Cardoso, nº 20, funcionava a DGS, a sucessora da tristemente célebre Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a tenebrosa PIDE, que foi um dos sustentáculos da ditadura salazarista.
E assim inaugurava José Vilhena o seu primeiro projeto editorial em liberdade. Vinte e um dias depois da revolução, a ‘Gaiola Aberta’ chegava às bancas a 15 de maio, com uma capa bastante sóbria – o general Spínola, que aceitara receber o poder dos revolucionários, encostado a Camões com os versos dos Lusíadas a servir de legenda: "E aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando." Mas, lá dentro, o "quinzenário de mau humor" iniciava uma série de caricaturas impiedosas, a que nenhum político, do velho ou do novo regime, escapava. Salazar, Hitler e Mussolini conversavam no inferno na ‘Gaiola Aberta’ número um, Marcelo Caetano estava à sanita na capa do segundo número. Mas em breve José Vilhena escolheria como alvos Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal ou António de Spínola. Vestidos ou nem por isso, em poses ridículas ou obscenas, Vilhena fez da sátira política, misturada com desenhos eróticos e muito anticlericalismo, a receita para o sucesso de vendas.
"ERA PRECISO CORAGEM"
O escritor Rui Zink, que em 2002 viria a lançar um livro que juntava os melhores desenhos e cartoons de José Vilhena, lembra que o autor, editor, proprietário e distribuidor da ‘Gaiola Aberta’ foi sempre um caso muito peculiar: "Fazer aquele tipo de humor no dia 26 de abril era normal, estava-se a aproveitar a onda de liberdade. Mas para o fazer no dia 23 de abril era preciso tomates. E José Vilhena já tinha 70 livros publicados quando aconteceu a revolução. Foi preso pela PIDE. Para fazer o que ele fazia era preciso coragem."
Criado em Freixedas, aldeia do concelho de Pinhel, no seio de uma família abastada, José Vilhena cursou Belas Artes e Arquitetura no Porto. Mas depressa mergulhou no mundo dos jornais e, no final dos anos 50, começou a editar os seus próprios livros. Erotismo e crítica social eram ingredientes presentes desde a primeira hora e fintar a PIDE e a censura tornou-se um hábito. "Ele começa pelos livros porque a imprensa era obrigatoriamente submetida a censura prévia. Vilhena sabia que os seus desenhos e textos nunca seriam aprovados pelos censores. Como o regime achava que ninguém lia livros, estes podiam ser publicados sem exame prévio", conta Rui Zink.
‘Maria’, colaboradora de longa data de José Vilhena (que pediu para não ser identificada), lembra os tempos em que saíam da editora do autor duas carrinhas cheias de livros: "Uma já se sabia que ia ser apanhada pela PIDE, a outra fazia um percurso diferente e conseguia levar os livros para as lojas. Os livros tinham muito sucesso."
Em entrevista ao ‘CM’ em 2003, o próprio José Vilhena explicava a sua rotina sempre que lançava uma nova edição: "Sabia que, quando o livro saísse, não podia ficar em casa, pois no dia seguinte era quase certo que fossem lá bater à porta para me apanhar. Fazia a mala e ia para um motel na marginal de Cascais, com vista para o mar e tudo, do qual saía ao fim de uma semana, pois a partir daí já não havia problemas em regressar a casa." Ainda assim, Vilhena foi preso em três ocasiões: "Fui parar em três ocasiões à sede da PIDE [1962, 1964 e 1966]. Só numa delas é que me meteram um processo, do qual, felizmente, nunca fui a julgamento devido a uma amnistia do presidente Américo Tomás", contou ao ‘CM’
"A FLORIDA FESTA DO POVO"
O 25 de Abril derrubou a censura e abriu a Vilhena a possibilidade de ter a revista quinzenal que sempre desejara. "Ele era o único, e assim continuou a ser, que tinha capacidade de lançar uma publicação como a ‘Gaiola Aberta’ em tão pouco tempo. Era uma espécie ‘Capitão da Indústria’ do humor em Portugal porque era ele que fazia, editava e distribuía as revistas", lembra Rui Zink.
João Miguel Lameiras, professor universitário e especialista em banda desenhada e ilustração, sublinha outra característica que distinguia José Vilhena dos seus pares: "Ele não poupava nada nem ninguém. Acima de tudo, preservava a liberdade, nunca alinhou com qualquer partido ou força política." Paulo Seabra, autor do documentário ‘Estética, Propaganda e Utopia no Portugal do 25 de Abril’, diz que "o erotismo exagerado" que Vilhena usava nos seus desenhos eram também uma marca distintiva. "Ele era um provocador, era muito original. Foi vítima da reduzida dimensão do País, porque num sítio com mais leitores ter-se-ia tornado uma estrela."
Apesar de ser batizado, a Igreja Católica era outro alvo permanente da sátira de Vilhena. "Ele não perdoava o facto de a Igreja ter sido um sustentáculo da ditadura", diz Rui Zink. Habituado a lutar pela liberdade de expressão quando isso podia custar a liberdade física, Vilhena não poupava os arrivistas que o 25 de Abril fez democratas de um dia para o outro. O seu primeiro editorial da ‘Gaiola Aberta’ arranca com fina ironia: "Faltam-me as palavras justas para descrever o que, de há uns tempos para cá, se passa nesta rejuvenescida República, onde as pessoas parecem outras, bem dispostas, conversadoras e desinibidas… inclusive as que estão um pedaço (e compreensivelmente) à rasca, mas que fazem os possíveis por disfarçar e integrar-se na grande e florida festa do povo."
SOARES, A PEIXEIRA
Vilhena cultivava a distância dos protagonistas dos seus cartoons. ‘Maria’, sua assistente durante anos, lembra um episódio revelador: "Um dos alvos preferidos do José Vilhena era o dr. Mário Soares. Retratou-o vestido de peixeira, com as calças em baixo, de rabo ao léu... Um dia recebemos no escritório uma chamada do Conselho de Ministros. Disseram-nos que o dr. Soares era um admirador das caricaturas do Vilhena e pediu se podia mandar um carro a buscar umas cópias. Passados uns dias, apareceu um senhor para recolher os desenhos."
Apesar da linguagem brejeira da revista, Vilhena foi sempre um homem educado. "Nunca lhe ouvi um palavrão", conta ‘Maria’. Solitário por opção, viveu sempre rodeado de mulheres, "mas fazia sempre tudo para evitar amores e complicações", conta ‘Maria’. As fotomontagens de mulheres famosas em corpos desnudados valeram-lhe vários processos. O mais famoso foi-lhe movido pela princesa Carolina do Mónaco, mas acabou com um acordo em tribunal.
Vilhena publicou várias revistas depois da ‘Gaiola Aberta’. ‘Vida Lisboeta’, ‘O Fala Barato’, ‘O Cavaco’ ou ‘O Moralista’ continuaram a sátira pelos anos fora. E só a doença, que aos 86 anos o deixa alheado da realidade num lar de Lisboa, o fez parar de publicar.
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